O bom espírita e o espiritão
O item 2 do capítulo 20 de “O Evangelho segundo
o Espiritismo”, de Allan Kardec, tem uma frase
na qual passei a prestar a atenção e da qual
passei a gostar muito quando li o livro Celebrando
o Evangelho segundo o Espiritismo, da
historiadora e escritora fluminense Sônia
Campos. Essa frase abre o último parágrafo do
referido item, é da autoria do Espírito
Constantino, e diz o seguinte: “Bons espíritas,
meus bem-amados, sois todos trabalhadores da
última hora”.
Sônia ressalta que não basta ser espírita; é
preciso ser um bom espírita! Se isso acrescento,
é porque o dito de Constantino está em um livro
espírita. Se fosse num livro importante de outra
religião, lá estaria escrito bons católicos,
bons muçulmanos, bons evangélicos, bons judeus
etc. E os ateus? Bem, acredito que, se houvesse
uma espécie de livro sagrado dos ateus, estaria
lá grafado: bons ateus.
Saindo do âmbito religioso, se dermos uma boa
lida no código de ética de várias profissões,
encontraremos não de forma explícita, mas nas
entrelinhas, o seguinte: bons médicos, bons
assistentes sociais, bons jornalistas, bons
pedagogos, bons psicólogos... E mesmo nas
profissões de saber não acadêmico, mas técnico,
encontraremos contido, no dia a dia do
profissional, algo similar a bons motoristas,
bons encanadores, bons eletricistas e por aí
vai. Isso porque, segundo a questão 621 de O
Livro dos Espíritos, também de Kardec, a lei
de Deus está escrita na consciência. Ninguém,
portanto, precisa ser espírita para saber o que
é agir corretamente dentro da profissão, sem
dores de consciência. Isso significa amor ao
próximo, um dito do Cristo que está implícito
no modus operandi da nossa sociedade,
quer percebamos, quer não.
Voltando ao tema que dá título a esse artigo,
religião não é salvo-conduto para ninguém, muito
menos para os espíritas, que, muitas vezes, se
acham uma espécie de povo escolhido por ter mais
acesso às verdades além-túmulo. Não somos uma
confraria de eleitos pelo Senhor porque somos
espíritas. Isso não existe. Ser espírita não é
suficiente. É preciso ser um bom espírita.
E como se reconhece o bom espírita? “Pela sua
transformação moral e pelo esforço que empreende
para domar as más tendências”, como diz o item 4
(não por acaso intitulado ‘Os bons espíritas’)
do capítulo 17 também de “O Evangelho segundo o
Espiritismo”.
O bom espírita é, desse modo, alguém que está
tentando melhorar a si próprio, não os outros.
Resolvi escrever a esse respeito porque já vi
muitos espíritas deveras preocupados em policiar
o comportamento alheio para ficar se comparando
– e se achando melhor – do que esse ou aquele
trabalhador ou frequentador do centro. É o
espírita que se acha mais espírita que o outro
espírita.
Depois de muito pensar a respeito, criei um
personagem chamado João, o espiritão.
Trata-se daquela figura folclórica, caricata
até, que inventou um modelo de espírita a ser
seguido e acredita piamente que se encaixa nele
com perfeição. João, o espiritão, e os
que em torno dele gravitam, costumam pensar da
seguinte forma:
- João
tem 10 tarefas no centro espírita. Vítor tem
duas. Ah, então João é muito mais espírita que
Vítor!
- João
é heterossexual. Leonardo é gay. Ah, então João
é muuuito mais espírita que Leonardo!
- João
está casado há mais de 30 anos com a mesma
mulher. Fábio é divorciado. Ah, então João é
muuuuito mais espírita que Fábio!
- João
não põe uma gota de álcool na boca. Maurício é
apreciador de bons vinhos. Ah, então João é
muuuuuuito mais espírita que Maurício!
- João,
no carnaval, participa dos encontros de mocidade
e da família que o movimento espírita promove.
Samuel, há muitos anos, junto com um grupo de
amigos, desfila no Salgueiro. Ah, aí não tem nem
comparação! João é muuuuuuuuuuuito mais espírita
que Samuel!
Quem disse que é assim que a banda toca? Quem
disse que existe uma receita de bolo prontinha
para seguirmos à risca a fim de nos tornarmos
modelos de espírita a serem seguidos? E quem
disse que ser um bom espírita implica ser um
modelo a ser seguido? Pelo que sei, modelo não é
o presidente do centro, o médium famoso ou a
palestrante badalada. Modelo, só o Cristo. Para
mim, ele está de ótimo tamanho.
Que bom que João consegue ser muito dedicado ao
movimento espírita! Que bom também que o
casamento dele deu certo e que ele é
bem-sucedido em se desviar de hábitos que podem
resultar em vícios! Deus o conserve assim! Ao
mesmo tempo, ele não tem o direito de ficar se
comparando com os companheiros de lida espírita.
Ele não é impoluto. Ele não está acima de
ninguém. Ele só é chato, sectário e arrogante
com esse comportamento.
Se o verdadeiro espírita é aquele que se esforça
para melhorar, é bom deixar claro: todos nós
estamos neste barco do esforço pessoal. E todos,
incluindo João, estão sujeitos a altos e baixos.
Além disso, como estabelecer um parâmetro de
comparação? Em que somos mais ou menos espíritas
que esse ou aquele trabalhador do centro do qual
fazemos parte? Não sejamos descaridosos. Cada um
é espírita do jeito que pode e consegue. E nisso
está o grande barato da doutrina espírita. Ela
dá as coordenadas para que cada um trilhe o
próprio caminho da forma que melhor convier,
desde que isso implique burilar a si mesmo,
respeitar o próximo e contribuir para um mundo
socialmente justo e equânime.
No entanto, João, o espiritão, ainda é
comum de encontrar. Já deparei com vários. Desde
o sujeito que ficou falando meses a fio do grupo
que foi a um congresso espírita na Europa e
aproveitou a viagem pelo Velho Continente para
degustar alguns vinhos, à dama que ficou
escandalizada porque um dos jovens da mocidade –
aluno de belas artes – havia conseguido um
estágio como assistente de um conhecido
carnavalesco do Rio de Janeiro. Isso sem falar
nos que acham o fim da picada haver homossexuais
fazendo palestra, evangelizando mocidade ou
atuando em reuniões mediúnicas. É bom ter
cuidado com o julgamento. No momento em que
julgamos, abrimos um perigoso precedente para
também sermos julgados, conforme alerta Jesus.
Certa vez, li algo muito interessante sobre o
Super-homem, famoso super-herói norte-americano.
Conta-se que, tão logo os gibis do Homem de Aço
foram lançados, em meados do século 20, o
sucesso foi imediato. Tempos depois, as vendas
inexplicavelmente despencaram. A editora, então,
encomendou uma pesquisa e descobriu o seguinte:
os leitores estavam cansando do personagem.
Motivo: perfeito demais, invencível demais;
estava ficando sem graça. Foi então que surgiu a
ideia de criar a kriptonita. Trata-se de
fragmentos de rocha do planeta natal do herói –
Kripton. A kriptonita tem o poder de tirar as
forças do Super-homem, deixando-o frágil como
qualquer um de nós. As histórias em quadrinhos
do herói, então, voltaram a vender.
Moral da história: não banque o perfeito, o espiritão.
Muito menos o exemplo a ser seguido. Senão, mais
dia, menos dia, a sua kriptonita aparece e você
irá ao chão como ser humano imperfeito que é.
Sei de uma história muito boa envolvendo um espiritão.
No próximo artigo, eu conto. Até lá!
Referências:
1- CAMPOS,
Sônia. Celebrando o Evangelho segundo o
Espiritismo. Edição independente, 2015, Rio
de Janeiro, RJ.
2- KARDEC,
Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.
2ª edição, 8ª impressão, 2018, Federação
Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
3- _____________. O
Livro dos Espíritos. 60ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília,
DF.
4- MORRIS,
Matt; MORRIS, Tom. Super-heróis e a filosofia
– Verdade, justiça e o caminho socrático. Ed.
Madras. 1ª Ed., 2006, São Paulo, SP.