No tempo em que eu era menino
A infância, em especial da década de 1970/1980, é
mitificada. Vista como um tempo idílico, nas palavras de
um mundo atual que é fruto de muitas transformações nas
décadas seguintes. Foi muito bom esse tempo de “Sessão
da tarde”, mas tem coisas de que devemos nos
envergonhar, necessitando ajustes sim. A lei de
progresso nos recorda essa necessidade de mudar, em
especial sobre algumas coisas que não nos deixam nenhuma
saudade.
É fato que o mundo pode não ter evoluído tanto assim
nesses quesitos que serão tratados aqui, mas o repúdio
dessas práticas, ainda que no discurso, mostra que já
foi dado um primeiro passo, de uma longa caminhada. O
progresso é uma força inexorável, mas depende de nós
como se dá o seu ritmo.
Quando eu era menino o desrespeito se materializava
pelas palavras que ofendiam pessoas pela cor da sua pele
ou pela sua orientação sexual, nas piadas ou nos
xingamentos. A escola era um lugar de ofensas por
características pessoais, fazendo do espaço de
aprendizado um local de sofrimento.
Quando eu era menino, se prendia passarinho em gaiola. E
se matava eles com atiradeira; se maltratavam gatos e
cães como uma cultura de curiosidade mórbida sobre os
animais e as suas reações. Como reis da natureza, nos
sentíamos no direito de destruir as coisas, de sermos
causadores de sofrimento coletivo, patrocinando desde
balões de festas junina até jogar lixo
indiscriminadamente em rios ou no mar.
Quando eu era menino, ter deficiências de aprendizagem
era ser tachado de burro. Ter problemas psicológicos era
ser chamado de maluquinho. Ser deficiente era ser
apelidado de aleijado e outras alcunhas. Sair do normal
era ser rotulado, o que fazia muitas dessas pessoas se
esconderem nas suas casas, se privando do convívio
social. Mais sofrimento!
Quando eu era menino, não se usava cinto de segurança,
não se respeitavam regras de trânsito, semáforos ou
coisas similares. Não tinha assentos segregados para
deficientes, prioridades em filas para idosos e assim
vivíamos, contando com a boa vontade de quem tinha
alguma consciência coletiva, para dar o lugar no ônibus,
entendido como um sinônimo de cavalheirismo o ato de
mitigar o sofrimento do próximo.
Encantados por uma ideia de um mundo chato, de um
conceito difuso de politicamente correto, minimizamos
avanços na fraternidade e na mitigação do sofrimento na
vida em sociedade, esquecidos da lição de “O Livro dos
Espíritos”, na sua questão 766, que nos impõe um dever:
“Deus fez o homem para viver em sociedade”.
Mas esse viver coletivo precisa ter progressos
coletivos, que se espelham no indivíduo. Uma felicidade
presa no passado de nossa memória pode se mostrar
postiça, aprisionada em uma visão individualista, que
não respeita outros indivíduos. Não é por isso que os
Espíritos trazem o contido na pergunta 777 do mesmo
livro, que deixamos de fecho neste texto, para a
reflexão:
777.
Tendo o homem, no estado de natureza, menos
necessidades, isento se acha das tribulações que para si
mesmo cria, quando num estado de maior adiantamento.
Diante disso, que se deve pensar da opinião dos que
consideram aquele estado como o da mais perfeita
felicidade na Terra?
“Que queres! é a felicidade do bruto. Há pessoas que
não compreendem outra. É ser feliz à maneira dos
animais. As crianças também são mais felizes do que os
homens feitos.”
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