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por André Ricardo de Souza

 

Um imprescindível esclarecimento feito por Léon Denis e Paul Singer


Após a desencarnação de Allan Kardec, em 1869, Léon Denis (1846-1927) se tornou talvez o maior propagador do Espiritismo, tendo sido este francês da aldeia de Foug, próxima à cidade de Tours, fiel à codificação do grande compatriota de Lyon. Por sua vez, o economista Paul Singer (1932-2018), judeu austríaco de Viena e emigrado ao Brasil com sua mãe aos oito anos de idade, devido à perseguição nazista, foi docente da Universidade de São Paulo e também gestor de relevantes políticas públicas.

Tendo sido meu professor e amigo próximo, Singer foi a pessoa mais espiritualizada que conheci nesta existência. Foi também o grande ideólogo e incentivador de um amplo conjunto de experiências de produção, consumo e crédito pautadas por princípios igualitários e democráticos. Tal conjunto tem o nome de economia solidária. Uma experiência desse tipo é relatada no principal livro psicografado por Francisco Cândido Xavier, de 1941, conforme apontado por ele próprio: Paulo e Estêvão[1].

Ambos, Denis e Singer, nasceram em famílias materialmente pobres, trabalharam ainda muito jovens, como operários, antes de se tornarem intelectuais. Também se dedicaram à causa do cooperativismo autogestionário, marcado pela distribuição tão equitativa quanto possível dos ganhos entre todos os membros (Nobre, 1982; Soares, 1984; Souza, 2018; Santos; Nascimento, 2018). Contudo, não creio que este tenha sido reencarnação daquele.

Outra semelhança entre eles é a crítica ao pensador e ativista alemão Karl Marx (1818-1883). Léon Denis rejeitou peremptoriamente a ideia marxista do “ódio entre classes sociais”, enfatizando a educação, em vez do conflito, como caminho para a positiva transformação da sociedade. Por seu turno, Paul Singer - que estudou profundamente, junto com outros pesquisadores uspianos, os textos de Marx - veio a apontar, já em sua maturidade, que eles não davam conta das condições necessárias para a equilibrada e perene transformação social.

Abro aqui um fundamental parêntese para dizer que a palavra Cristianismo ainda causa temor e ojeriza em pessoas de determinados lugares do planeta devido às terríveis ocorrências históricas: Cruzadas e Inquisição, além do intolerante fundamentalismo que subsiste. Continua, portanto, representando algo destruidor nesse imaginário. Todavia, como bem sabemos, o cristianismo - tal como iniciado pelo Nosso Senhor Jesus Cristo e revivido por grandes missionários como Francisco de Assis, Matinho Lutero, Allan Kardec, Bezerra de Menezes, Martin Luther King Jr., Teresa de Calcutá, Chico Xavier e Papa Francisco - nada tem de destruidor, muito pelo contrário.

É preciso também dizer com todas as letras que tanto Léon Denis quanto Paul Singer dedicaram seus escritos e, mais que isso, suas vidas, à busca de algo que também gera, ainda hoje, grande confusão interpretativa: o socialismo. Cada qual a seu modo escreveu a respeito e buscou efetivamente o socialismo fraterno, aquele que prima pela liberdade e é necessariamente democrático. Isso está presente no livro de Denis, decorrente de artigos editados na Revista Espírita em 1824: Socialismo e Espiritismo, publicado em 1982 no Brasil[2]. Trata-se de uma obra realmente importante e bela que ainda é negligenciada por parte do movimento espírita devido ao enviesado conhecimento do tema.

E está presente também no principal livro de Paul Singer: Utopia militante: repensando o socialismo, de 1998. Nesta obra, com base em dados históricos bem documentados, ele rejeita a ideia de socialismo centralmente planejado e autoritário, que é implantado mediante revoluções políticas. Como alternativa, Singer delineia o processo de ‘revolução social’ que levou à passagem do feudalismo ao capitalismo industrial. E aponta para a possibilidade de um caminho de transformação lenta - com base em mudanças culturais - para o socialismo democrático, que ainda não existe e no qual o mercado seguirá tendo papel social importante, mas, não, tirânico e excludente, dado seu equilíbrio com o Estado e havendo nele destaque para a economia solidária.

É preciso dizer que, tanto no pensamento de Denis quanto no de Singer, não está presente a ideia de igualdade absoluta entre todos os indivíduos e tampouco a privação da liberdade de nenhum deles. Em consonância ainda, cabe lembrar que Emmanuel, o mentor espiritual de Chico Xavier, também tratou desse tema em quatro importantes obras, chegando a usar a expressão “socialismo cristão do porvir”[3].

Danosas distorções, práticas infelizes e o decorrente medo, como visto, tornaram o Cristianismo erroneamente interpretado, sendo que o mesmo - guardadas as devidas proporções - ocorreu em relação ao Socialismo, termo, equivocadamente, abominado ainda por grande parte da população. Tal medo, muitas vezes, gera hostilidade e, grosso modo, prossegue sendo instrumentalizado politicamente. Mas, graças a Deus, os também missionários Léon Denis e Paul Singer, além de Emmanuel, nos auxiliam decisivamente na desmistificação e no esclarecimento a respeito.

 

Referências bibliográficas:

DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Matão, O Clarim, 1982.

NOBRE, Freitas. Prefácio. In: DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Matão, O Clarim, 1982.

SANTOS, Aline Mendonça; NASCIMENTO, Claudio. Paul Singer: democracia, economia e autogestão. Marília, Lutas Anticapital, 2018.

SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998.

SOARES, Sylvio Brito. Páginas de Léon Denis. 2ª edição. Brasília, FEB, 1984.

SOUZA, André Ricardo de. Professor Paul Singer e a economia solidária. P2P & Inovação, v. 5, p. 43-52, 2018.

 

André Ricardo de Souza é professor de sociologia da UFSCar, colaborador do paulistano Núcleo Espírita Coração de Jesus e organizador, com Pedro Simões, dos livros: Espiritualidade e Espiritismo (Porto de Ideias, 2017) e Dimensões identitárias e assistenciais do Espiritismo (Appris, 2020).

 

 

[2] Vale destacar um trecho do prefácio por quem foi marido de médica Marlene Nobre (1937-2015) e eminente deputado federal José Freitas Nobre (1921-1990): “Espiritismo e Socialismo estão unidos por laços estreitos, visto que o primeiro oferece ao segundo o que lhe falta a mais, isto é, o elemento de sabedoria, de justiça, de ponderação, as altas verdades e o nobre ideal sem o qual este último corre o risco de permanecer impotente ou de mergulhar na escuridão da anarquia”.

[3] Livros: Emmanuel, de 1938 (capítulo 21, terceiro parágrafo); A caminho da luz, de 1939 (capítulo 24, segundo item); O Consolador, de 1941 (questões: 55 a 57); Caminho, verdade e vida, de 1949 (lição 61).


  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita