Brasil
por Ana Moraes

Ano 14 - N° 703 - 10 de Janeiro de 2021

Como Kardec entendia a educação moral da infância

 
 

Em fevereiro de 1864, antes, portanto, da publicação do livro O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec – o codificador da doutrina espírita
– já se preocupava com a educação moral da infância.

Essa preocupação foi expressa em um artigo que ele inseriu na Revista Espírita com o título “Primeiras lições de moral da infância”. 

Relembrar essas lições pode ajudar, e muito, todos nós que temos a nosso cargo a tarefa de educar os pequeninos, como os pais e os educadores, dentre os quais não podemos deixar de citar os abnegados voluntários da chamada educação espírita da infância, atividade mais conhecida em nosso meio pelo nome de evangelização infantil. 

Eis, na íntegra, o que Kardec escreveu:


“De todas as chagas morais da sociedade, parece que o egoísmo é a mais difícil de desarraigar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais é alimentada pelos mesmos hábitos da educação. Parece que se toma a tarefa de, desde o berço, excitar certas paixões que mais tarde tornam-se uma segunda natureza. E admiram-se dos vícios da sociedade, quando as crianças os sugam com o leite.

Eis um exemplo que, como cada um pode julgar, pertence mais à regra do que à exceção. Numa família de nosso conhecimento, há uma menina de quatro a cinco anos, de uma inteligência rara, mas que tem os pequenos defeitos das crianças mimadas, isto é, um pouco caprichosa, chorona, teimosa, e nem sempre agradece quando lhe dão qualquer coisa. Isto o que os pais cuidam bem de corrigir, porque, fora destes defeitos, segundo eles, ela tem um coração de ouro, expressão consagrada.

Vejamos como eles se conduzem para lhe tirar essas pequenas manchas e conservar o ouro em sua pureza.

Um dia trouxeram um doce à criança e, como de costume, lhe disseram: ‘Tu o comerás se fores boazinha’. Primeira lição de gulodice.

Quantas vezes, à mesa, não dizem a uma criança que não comerá tal petisco se chorar. ‘Faze isto, ou faze aquilo’, dizem, ‘e terás creme’ ou qualquer outra coisa que lhe apeteça; e a criança é constrangida, não pela razão, mas em vista de satisfazer um desejo sensual que aguilhoa. E ainda muito pior, quando lhe dizem, o que não é menos frequente, que darão o seu pedaço a uma outra. Aqui já não é só a gulodice que está em jogo, é a inveja. A criança fará o que lhe dizem, não só para ter, mas para que a outra não tenha. 


Dizem que é preciso formar cedo as crianças, o que é uma máxima muito sábia


Querem dar-lhe uma lição de generosidade? Dizem-lhe: ‘Dá esta fruta ou este brinquedo a fulaninho’. Se ela recusa, não deixam de acrescentar, para nela estimular um bom sentimento: ’Eu te darei um outro’. De modo que a criança não se decide a ser generosa senão quando está certa de nada perder.

Certo dia testemunhamos um fato bem característico deste gênero. Era uma criança de cerca de dois anos e meio, a quem tinham feito semelhante ameaça, acrescentando: ‘Nós o daremos ao irmãozinho e tu não comerás’. E para tornar a lição mais sensível, puseram o pedaço no prato deste; mas o irmãozinho, levando a coisa a sério, comeu a porção. À vista disto, o outro ficou roxo e não era preciso ser o pai, nem a mãe, para não ver as faíscas de cólera e de ódio que saíram de seus olhos. A semente estava lançada: poderia produzir bom grão?

Voltemos à menina, da qual falamos. Como não se deu conta da ameaça, sabendo por experiência que raramente a executavam, desta vez os pais foram mais firmes, pois compreenderam que era necessário dominar esse pequeno caráter, e não esperar que a idade lhe tivesse dado um mau hábito. Diziam que é preciso formar cedo as crianças, máxima muito sábia, e para pô-la em prática, eis o que fizeram: ‘Prometo-te’, disse a mãe, ‘que se não obedeceres, amanhã cedo darei o teu bolo à primeira menina pobre que passar’. Dito e feito. Desta vez queriam o bem, e dar-lhe uma boa lição. Assim, no dia seguinte de manhã, avistada uma pequena mendiga na rua, fizeram-na entrar, obrigaram a filha a tomá-la pela mão e ela mesma lhe dar o bolo. Então elogiaram a sua docilidade. Moralidade: a filha disse: ‘É mesmo, se eu soubesse teria tido pressa em comer o bolo ontem’. E todos aplaudiram esta resposta espirituosa.

Com efeito, a criança tinha recebido uma forte lição, mas uma lição de puro egoísmo, da qual não deixará de aproveitar-se uma outra vez, pois agora sabe o que custa a generosidade forçada. Resta saber que frutos darão mais tarde esta semente quando, com mais idade, a criança fizer aplicação dessa moral em coisas mais sérias que um bolo.


Não basta ao médico saber que deve procurar curar: é preciso saber como agir


Sabe-se de todos os pensamentos que este cínico fato pode ter feito germinar nessa cabecinha? Depois disto, como querem que uma criança não seja egoísta quando, em vez de nela despertar o prazer de dar e de lhe representar a felicidade daquele que recebe, impõem-lhe um sacrifício como punição? Não é inspirar aversão ao de dar àqueles que necessitam?

Um outro hábito, igualmente frequente, é o de castigar a criança mandando-a comer na cozinha com os criados. A punição está menos na exclusão da mesa, do que na humilhação de ir para a mesa da gente de serviço. Assim se acha inoculado, desde a mais tenra idade, o vírus da sensualidade, do egoísmo, do orgulho, do desprezo aos inferiores, das paixões, numa palavra, que com razão são consideradas como as chagas da humanidade.

É preciso ser dotado de uma natureza excepcionalmente boa para resistir a tais influências, produzidas na idade mais impressionável, e onde não podem encontrar o contrapeso nem da vontade, nem da experiência. Assim, por pouco que aí se ache o germe das más paixões, o que é o caso mais ordinário, dada a natureza dos Espíritos que, em maioria, se encarnam na Terra, não podem senão desenvolver-se sob tais influências, ao passo que seria preciso observar-lhe os menores traços para os apagar.

Esta falta, sem dúvida, é dos pais; mas, é bom dizer, muitas vezes estes pecam mais por ignorância do que por má vontade. Em muitos há, incontestavelmente, uma culposa despreocupação, mas em muitos outros a intenção é boa, é o remédio que nada vale, ou que é mal aplicado. Sendo os primeiros médicos da alma dos filhos, deveriam ser instruídos, não só de seus deveres, mas dos meios de cumpri-los.

Não basta ao médico saber que deve procurar curar: é preciso saber como agir. Ora, para os pais, onde estão os meios de instruir-se nesta parte tão importante de sua tarefa? Hoje se dá muita instrução à mulher; fazem-na passar por exames rigorosos; mas, algum dia foi exigido da mãe que soubesse como fazer para formar o moral de seu filho? Ensinam-lhe receitas caseiras; mas foi iniciada aos mil e um segredos de governar os jovens corações?

Assim, os pais são abandonados, sem guia, à sua iniciativa; eis por que tantas vezes seguem caminhos errados; também recolhem, nos erros dos filhos já crescidos, o fruto amargo de sua inexperiência ou de uma ternura mal entendida, e a sociedade inteira lhes recebe o contragolpe.


Os novos horizontes que o Espiritismo abre fazem ver as coisas de outra maneira


Desde que é reconhecido que o egoísmo e o orgulho são a fonte da maioria das misérias humanas; que enquanto reinarem na Terra não se pode esperar nem a paz, nem a caridade, nem a fraternidade, então é preciso atacá-los no estado de embrião, sem esperar que fiquem vivazes.

Pode o Espiritismo remediar esse mal? Sem nenhuma dúvida; e não hesitamos em dizer que é o único suficientemente poderoso para fazê-lo cessar. Por um novo ponto de vista, do qual faz observar a missão e a responsabilidade dos pais; fazendo conhecer a fonte das qualidades inatas, boas ou más; mostrando a ação que se pode exercer sobre os Espíritos encarnados e desencarnados; dando a fé inquebrantável, que sanciona os deveres; enfim, moralizando os próprios pais.

Ele já prova sua eficácia pela maneira mais racional pela qual são educadas as crianças nas famílias verdadeiramente espíritas.

Os novos horizontes que o Espiritismo abre fazem ver as coisas de outra maneira. Sendo o seu objetivo o progresso moral da humanidade, forçosamente deverá iluminar o grave problema da educação moral, primeira fonte da moralização das massas. Um dia se compreenderá que este ramo da educação tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual, numa palavra, que é uma verdadeira ciência. Talvez um dia, também, será imposta a toda mãe de família a obrigação de possuir esses conhecimentos, como se impõe ao advogado a de conhecer o Direito.”

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita