Victor Hugo e o caso do ressuscitado
contrariado
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A Revista Espírita de dezembro de 1867
divulgou outro relato envolvendo o poeta e
romancista Victor Hugo – um dos maiores
escritores a integrar a literatura
internacional em todos os tempos! |
Allan Kardec, em seu comentário ao final do texto – que
abaixo transcrevemos – refere-se ao discurso do mesmo
escritor que divulgamos na edição 698,
de 29 de novembro de 2020, desta revista – clique
aqui para acessar - em
que Victor Hugo se revela profundo conhecedor da
realidade espiritual.
Acreditamos que os leitores de O Consolador apreciarão
conhecer este outro, não só por envolver o conhecido
escritor, mas, também, por ilustrar quão grande é a
felicidade de quem retorna ao plano espiritual com
méritos para vivenciar belas experiências.
Eis o texto extraído da Revista Espírita:
UM RESSURRECTO CONTRARIADO(1)
(Extraído da viagem do Sr. Victor Hugo à Zelândia)
O episódio seguinte é tirado do relato publicado pelo
jornal Liberté, de uma viagem do Sr. Victor Hugo
à Holanda, na província de Zelândia. O artigo se acha no
número de 6 de novembro de 1867.
"Acabávamos de entrar na cidade. Eu tinha os olhos
erguidos e chamava a atenção de Stevens, meu vizinho de
banco no carro, para o pitoresco denteado de uma
sucessão de telhados hispano-flamengos, quando, por sua
vez, ele me tocou no ombro e me fez sinal para olhar o
que se passava no cais.
"Uma multidão barulhenta de homens, mulheres e crianças
cercava Victor Hugo. Descendo do carro e escoltado pelas
autoridades da cidade, ele avançava, ar simplesmente de
emoção, a cabeça descoberta, com dois buquês nas mãos e
duas meninas de vestido branco ao seu lado.
“Eram as duas meninas que acabavam de lhe oferecer os
dois buquês.
"Que dizeis, por esse tempo de visitas coroadas e de
ovações artificiais ou oficiais, dessa entrada
simplesmente triunfal de um homem universalmente
popular, que chega de improviso a um país perdido, cuja
existência nem sequer suspeitava, e que aí se encontra
muito naturalmente em seus Estados? Quem teria prevenido
o poeta de que essa cidadezinha desconhecida, cuja
silhueta tinha considerado de longe e com curiosidade,
era a sua boa cidade de Ziéricsée?
"Ao jantar, o Sr. Van Maenen disse a Victor Hugo:
"– Sabeis quem são as duas lindas meninas que vos
ofereceram buquês?
“– Não.
"– São as filhas de um fantasma.
"Isto exigia uma explicação, e o capitão nos contou a
estranha aventura. Ei-la:
"Cerca de mês atrás, na hora do crepúsculo, um carro
onde estavam um homem e um menino entrava na cidade. É
preciso dizer que pouco antes esse homem havia perdido a
esposa e um dos filhos, com o que ficou muito triste.
Embora ainda tivesse duas meninas e o menino, o qual
estava com ele nesse momento, não se tinha consolado e
vivia na melancolia.
"Naquela noite seu carro seguia por um desses caminhos
elevados e abruptos, que são, à direita e à esquerda,
ladeados por um fosso de água estagnada e às vezes
profunda. De súbito o cavalo, sem dúvida mal dirigido
através da bruma do anoitecer, bruscamente perdeu o
equilíbrio e rolou do alto da escarpa para o fosso,
arrastando consigo o carro, o homem e a criança.
"Houve nesse grupo de seres precipitados um momento de
angústia pavorosa, de que ninguém foi testemunha, e um
esforço obscuro e desesperado para a salvação. Mas foram
abismados na confusão da queda e tudo desapareceu no
fosso, que se fechou com a espessa lentidão da lama.
"Só o menino, que como por milagre ficou fora do fosso,
gritava e se lamentava, agitando os bracinhos. Dois
camponeses, que atravessavam, a alguma distância, um
campo de garança, ouviram os gritos e correram.
Retiraram a criança.
"O menino gritava: Meu papá! meu papá! quero meu papá!
"– E onde está o teu papá?
“– Lá, dizia o menino, mostrando o fosso.
"Os dois camponeses compreenderam e se puseram ao
trabalho. Ao cabo de um quarto de hora retiraram o carro
quebrado; depois de meia hora tiraram o cavalo morto. O
pequeno gritava sempre e pedia o pai.
"Enfim, após novos esforços, do mesmo buraco do fosso
que o carro e o cavalo, pescaram e trouxeram para fora
da água algo de inerte e de fétido que estava
inteiramente negro e coberto de lama: era um cadáver, o
do pai.
“Tudo isto tinha levado cerca de uma hora. O desespero
do menino redobrava; não queria que seu pai estivesse
morto. Entretanto os camponeses o julgavam bem morto;
mas como o menino lhes suplicasse e se agarrasse a eles,
e como eram boa gente, tentaram, para acalmar o pequeno,
o que se faz sempre em tais casos na região, e se
puseram a rolar o afogado no campo de garança.
"Rolaram-no assim um bom quarto de hora. Nada mexeu.
Rolaram-no ainda. A mesma imobilidade. O pequeno seguia
tudo e chorava. Recomeçaram uma terceira vez e já iam
desistir quando, enfim, lhes pareceu que o cadáver movia
um braço. Continuaram. O outro braço se agitou.
Obstinaram-se. O corpo inteiro deu vagos sinais de vida
e o morto começou a ressuscitar lentamente.
"Isto é extraordinário, não é? Pois bem! eis o que é
ainda mais imprevisto. O homem suspirou longamente,
voltando à vida e gritou com desespero. "Ah! meu Deus!
Que foi que fizestes? Eu estava tão bem onde estava.
Estava com minha mulher, com meu filho. Tinham vindo a
mim e eu a eles. Eu os via e estava no céu, estava na
luz. Ah! meu Deus! que fizestes? Não estou mais morto."
"O homem que assim falava acabava de passar uma hora no
lodo. Tinha o braço quebrado e contusões graves.
"Levaram-no para a cidade, e acaba de se curar,
acrescentou o Sr. Van Maenen, terminando de nos contar
esta história. É o Sr. D..., uma das mais altas
inteligências, não só da Zelândia, mas da Holanda. É um
dos melhores advogados. Aqui todos o estimam e honram.
Quando ele soube, Sr. Victor Hugo, que íeis passar pela
cidade, quis de todo jeito sair da cama, que ainda não
havia deixado há um mês, e hoje fez a sua primeira saída
para ir à vossa frente e vos apresentar suas duas
filhinhas, às quais tinha dado buquês de flores para
vós.
"Houve um só grito em toda a mesa.
"Estas são coisas que só se passam na Zelândia! Os
viajantes aqui não vêm, mas os habitantes voltam.
"Deveriam tê-lo convidá-lo para jantar, arriscou a parte
feminina da mesa.
“– Convidá-lo! exclamei; mas já éramos doze! Não seria
exatamente o momento de convidar um fantasma. Senhoras,
gostaríeis de ter um morto como décimo terceiro?
"– Há, disse Victor Hugo, que tinha ficado silencioso,
dois enigmas nessa história: o enigma do corpo e o da
alma. Não me encarrego de explicar o primeiro, nem dizer
como pode um homem ficar submerso durante uma hora numa
cloaca sem que lhe sobrevenha a morte. Cremos que a
asfixia ainda é um fenômeno mal conhecido. Mas o que
compreendo admiravelmente é a lamentação dessa alma.
Quê! ela já tinha saído da vida terrena, desta sombra,
deste corpo sujo, desses lábios negros, desse fosso
escuro! Ela tinha começado a fuga encantadora. Através
da lama, tinha chegado à superfície da cloaca e aí,
ligada ainda por uma última pena de sua asa a este
horrível último suspiro, estrangulado pelo lodo, já
respirava silenciosamente o frescor inefável fora da
vida. Já podia voar até seus amores perdidos, alcançar a
mulher e erguer-se até a criança. De repente, a
semievadida se arrepia; sente que o laço terrestre, em
vez de se romper completamente, se reata, e ao invés de
subir na luz, desce bruscamente na noite, sendo obrigada
a entrar violentamente no cadáver. Então solta um grito
terrível.
"O que disto resulta para mim, acrescentou Victor Hugo,
é que a alma pode ficar certo tempo acima do corpo, como
se flutuasse, já não sendo mais prisioneira, nem estando
ainda liberta. Esse estado flutuante é a agonia, é a
letargia. O estertor é a alma que se lança fora da boca
aberta e que recai por instantes; é a alma que se
sacode, ofegante, até que se quebre o fio vaporoso do
último sopro. Parece-me que a vejo. Ela luta, escapa-se
um pouco dos lábios, neles entra, escapa novamente,
depois bate as asas com força, e ei-la a voar de uma
assentada, desaparecendo no azul imenso. Está livre. Mas
algumas vezes também o moribundo volta à vida: então a
alma, desesperada, volta ao agonizante. O sonho por
vezes nos dá a sensação dessas estranhas idas e vindas
da prisioneira. Os sonhos são alguns passos cotidianos
da alma fora de nós. Até que tenha completado seu tempo
no corpo, todas as noites e enquanto dormimos a alma dá
a sua escapadela.” (Paul de La Miltière)
*
Como se vê, o fato em si mesmo é eminentemente espírita.
Mas se existe algo de mais espírita ainda é a explicação
que lhe dá o Sr. Victor Hugo; dir-se-ia haurida
textualmente na doutrina. Aliás, não é a primeira vez
que ele se exprime neste sentido. Ainda está na
lembrança o encantador discurso que ele pronunciou, há
cerca três anos, no túmulo da jovem Emily Putron
(Revista Espírita de fevereiro de 1865); decerto o mais
convicto espírita não falaria de outro modo. A tais
pensamentos não falta absolutamente senão a palavra; mas
que importa a palavra quando se crê nas ideias! Por seu
nome autorizado, o Sr. Victor Hugo é um de seus
vulgarizadores. E, contudo, os mesmos que as aclamam de
boca ridicularizam o Espiritismo, nova prova de que não
sabem em que este consiste. Se o soubessem, não
tratariam a mesma ideia de loucura em uns, e de verdade
sublime em outros. (Allan Kardec)
(1) Ressurrecto
(adjetivo e substantivo masculino) - Que ou o que
ressurgiu, ressuscitou.