Artigos

por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

As aventuras de Allan Kardec no mundo da pós-verdade


No livro de 2013 de Marcel Souto Maior chamado “Kardec: a biografia”, a parte inicial se detém a detalhar a interação do Professor Rivail, na madureza de seus 50 anos, com o fenômeno das mesas girantes, que ocupava os salões dos Estados Unidos e da Europa, atendendo a curiosidade das pessoas diante de mesas que se moviam e respondiam perguntas. A sensação da época.

Como já era de se esperar, como narrado no livro, várias teses rondavam as páginas de jornal e as mesas dos cafés sobre a natureza de tão badalado fenômeno: almas de outro mundo, autossugestão, delírio coletivo, fraude. Se fosse no ano de 2021, é possível se arriscar que essas seriam somadas a teorias conspiracionistas de ações sobrenaturais a subjugar a raça humana, e apesar de não se encontrar registro de, pode ter havido explicações nesse sentido. Talvez se fosse na década de 1970, teria como explicação a ação de alienígenas na busca de invadir nosso planeta.

O professor Rivail, acadêmico, estudioso, inicialmente julgava que ali atuava a força magnética dos participantes da reunião, como motriz das mesas. Mas ele, em um misto de curiosidade e de desconfiança, manteve-se cético nas suas hipóteses e se debruçou sobre o fenômeno na busca de desvendá-lo, bebendo de sua trajetória como pesquisador científico, com os métodos bem descritos nas obras “O que é o Espiritismo” e “O Livro dos Médiuns”, e a partir dali não só concluiu que se tratavam de Espíritos, a alma desencarnada dos homens, como deste achado derivou todo um corpo de conhecimento filosófico que contextualizou aquela descoberta.

Para melhor entender essa postura do codificador, como está na Biografia de Allan Kardec na já citada obra “O que é o Espiritismo”, p. 11, Ed. FEB:

Tal era a princípio o estado de espírito do Sr. Rivail, tal o encontraremos muitas vezes, não negando coisa alguma por parti pris, mas pedindo provas e querendo ver e observar para crer; tal nos devemos mostrar sempre no estudo tão atraente das manifestações do Além.

Esse é o Kardec por todos conhecido, e que deixou o legado pautado na racionalidade, no método, e que trouxe ao Espiritismo a credibilidade que o caracteriza, como forma de interpretação e intervenção na realidade, e que o permitiu enfrentar ataques diversos, fichamentos na polícia, e toda ordem de coisas que atrai ideias não hegemônicas.

Mas, e se um Rivail contrafactual, ao invés de se debruçar sobre as teses na busca de entendê-las à luz de pressupostos de natureza científica, por meio de uma teoria consistente e que dialogasse com as evidências, resolvesse apenas transitar pelos cafés de Paris, para conversar com uns dois ou três que tenham assistido às mesas e daí tivesse produzido um livro explicando esse fenômeno. Não só um livro, mais uma narrativa mirabolante na qual se encaixassem ideias mais fáceis de serem assimiladas pelas pessoas daquela época, na busca de maior vendagem dos seus exemplares.

Considerando-se que era uma sociedade de matriz cristã, e apesar dos lampejos da ciência, o pensamento mágico ainda era bem enraizado na população em geral, esse Kardec alternativo poderia engendrar uma teoria de que ali operavam forças sobrenaturais demoníacas que buscavam ludibriar os incautos para afastá-los da salvação, e teceria considerações baseadas em percepções fragmentadas de situações comuns, como mensagens que destoassem da doutrina predominante da igreja, para assim justificar a sua teoria.

Definitivamente, esse não seria o Kardec que conhecemos. E esse seria mais um livro panfletário e fugaz a se somar a muitas obras dessa natureza, de histórias fantasiosas e que se pautam em sensos comuns palatáveis para, em especial, pelo medo, obter adesão na sua forma de mediar a interpretação da realidade. Algo bem distante do caráter esclarecedor e libertador do Espiritismo.

Apesar dos avanços científicos, das quebras de paradigma social e político, o mundo do professor Rivail do Século XIX, tem similitudes em relação à realidade do início do Século XXI, que se vê potencializada no contexto de uma sociedade hiperconectada, na qual a informação é produzida em grande quantidade, e por uma diversidade de emissores, mas ao mesmo tempo o seu acesso é permeado por canais dirigidos por algoritmos e por perfis falsos, com possibilidades de manipulação e de adesão de narrativas também confortáveis, mas por vezes sem nenhum lastro com a realidade.

Esse mundo novo, que nos cabe enfrentar, e que o Espiritismo pode ser uma ferramenta nesse desiderato, tem como uma das características o fenômeno da pós-verdade, que, conforme definições da Oxford Dictionaries (clique aqui para acessar), é um adjetivo relacionado a circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou crenças pessoais. Um contexto no qual apesar de se ter muita informação, se tem muita dificuldade de se obter verdades.

Nesse mundo permeado pela pós-verdade, Kardec teria mais problemas do que já teve na época da codificação. Seria cancelado, diriam alguns. Kardec teria entraves, e tem o Espiritismo também nos dias de hoje. Como na situação das mesas girantes, na qual se debruçou o então professor Rivail, no contexto atual, a pressão das crenças pessoais, dos medos e das simplificações frente às evidências, pressionaria por interpretações dos fenômenos cotidianos de forma dissociada da realidade e do bom senso, com explicações muitas vezes permeadas por ideias conspiracionistas, por narrativas de perseguições, que despertam às vezes sentimentos primitivos, de ódio e de autodefesa.

Nesse sentido, esse contexto da pós-verdade testa a todos nós, que decidimos seguir o Espiritismo, na nossa forma de nos relacionar com a realidade, seja no plano da mensagem supostamente psicografada que replicamos na rede social, seja pelas teorias que nos invadem os aparelhos celulares sobre questões gerais, como a economia, a ecologia e a crise sanitária. Cada evento é permeado por um caudaloso rio de dúvidas e de narrativas substitutivas que, ao mesmo tempo que nos confunde, nos faz abraçar a tese mais confortável. E, no caso espírita, de preferência avalizado por uma psicografia.

O professor Rivail, para ter a adesão das suas ideias pela força destas, e não pela sua fama, assume a alcunha de Allan Kardec. Preocupava-o que as pessoas aderissem à nova doutrina sem ideias preconcebidas, dado que ele já era conhecido. Convidava à razão, ao entendimento, à construção da convicção pessoal pelo estudo e pela reflexão. Pressupostos kardequianos que se apresentam ainda necessários nesse mundo tão informado e desinformado ao mesmo tempo.

Dói ver nas redes sociais espíritas e suas agremiações replicarem informações que não são objeto de estudos mais elaborados, boatos, fake news, conspirações rasas, algumas referendadas por psicografias, situações que poderiam ser esclarecidas na busca de fontes confiáveis, como são os chamados sites de checagem, uma criação derivada dessa época na qual se busca confiabilidade no universo das redes sociais. Anda enfraquecida nossa fé raciocinada?

Além desses sites, a verificação, trabalhosa e necessária do que se vê por aí, pode se servir do trabalho dos profissionais da imprensa, ou ainda, pela busca da boa e velha ciência, com suas publicações e representantes reconhecidos, e que se pauta por metodologias, que vão desde repetições sucessivas, a comparações do mesmo fenômeno em diversos ambientes, na busca de se encontrar regularidades que balizem afirmativas.

A história nos mostra que momentos de tensão despertam o medo, que busca caminhos simplificadores para aplacar a ansiedade do que será o amanhã. Medo que se potencializa pela multiplicidade de estímulos oriundos de imagens e notícias às quais somos submetidos diariamente, e que geram, na sua busca pela assimilação, a adoção de teses simplistas, que não resistem a dez minutos de reflexão e debate. Esse é o desafio posto, e ter o espírito kardequiano ao nosso lado pode ser uma boa bússola a nos orientar em um período tão doloroso, por conta da pandemia. Mas também tão confuso, por ainda estarmos nos acostumando a esse mundo cada dia mais veloz.




 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita