Fé e boas obras
Como humanos já vivemos diversas crises.
Medos, perdas e adoecimentos não são novidade no
contexto terreno, porém carregamos em nós certa dúvida
se o que estamos vivenciando no agora não seria o pior
se comparado ao que já se foi.
Sabemos que não…
E, apesar da história escrita e recontada, nosso medo e
sensação de desamparo nos arrastam para um drama muito
além do real, que nada ajuda e mais agrava situações,
com desequilíbrios e outros adoecimentos.
Por certo hoje já não podemos falar em crise, no
singular, mas em “crises”, pois que estão acontecendo,
em diversas áreas, em todos os lugares, atingindo a
todos.
Crise ambiental, política, econômica, de valores… são
muitas crises porque todas as áreas onde atuam os
humanos precisam ser revistas, refletidas, reformuladas,
reconstruídas sob outras bases.
Faz lembrar a advertência precisa de Jesus: “Mas todo
aquele que ouve estas minhas palavras e não as observa,
será comparado a um homem insensato, que edificou a sua
casa sobre a areia. Desceu a chuva, vieram as torrentes,
sopraram os ventos e bateram com ímpeto contra aquela
casa, e ela caiu: e foi grande a sua ruína”. (Mt, 7:
25).
Temos construído nossa 'casa humana’, ao longo dos
milênios, sobre a areia do egoísmo, da vaidade, da
soberba. Areia das ilusões, que se espalham e somem ao
sopro do vento renovador da Lei Divina.
Construímos nossas vidas numa cultura pautada no
consumismo, no materialismo e no individualismo - três
pilares de palha - que jamais poderiam sustentar o
edifício que nos abrigaria da dor e do sofrimento!
Sendo assim, colhemos hoje frutos semeados no ontem.
Alguns me perguntam: "Como atravessar este momento
sem adoecer?”. Invariavelmente, retorno com a
receita que temos aprendido nesta trilha Espírita: “Com
fé e boas ações”. O segundo ingrediente traz vida ao
primeiro, disse-nos Tiago (2: 26) e, sem o primeiro,
sobra-nos desesperança e depressão.
A fé é atributo dos que observam a vida para além do ego
transitório. É o resultado de uma peregrinação
consciente, quando transitamos pela Terra como
discípulos da realidade e não como vítimas ou algozes.
Fé é a certeza da guiança, da Mão forte do Criador, que
jamais permitiria crise sem função, colheita sem
semeadura, dor sem ensinamento.
Sim, tudo tem um porquê, nada é acaso. Já nos contaram
os Espíritos que o acaso é o nada e que o nada não
existe. Tudo é força, energia, evolução neste mundo,
queiramos (saibamos) ou não. E o trabalho é o caminho
para o desenvolvimento real, disseram eles.
No âmbito da fé podemos nos inspirar em uma das mais
belas passagens do Evangelho de Marcos. Está lá no
capítulo 10, a partir do versículo 46. Contou-nos o
evangelista que, antes de caminharem para o que seria a
última entrada de Jesus em Jerusalém - dias antes da
festividade de Pessach e seus funestos desdobramentos,
culminando com a crucificação - passaram (o Mestre e
seus discípulos) pela milenária cidade de Jericó.
Foi quando um grito ecoou
no ambiente, quebrando a relativa harmonia presente: “Jesus,
Filho de Davi, tende piedade de mim!”
Não tardou para que os homens que seguiam o Mestre
ralhassem com ele: “Cala-te!” - disseram.
E o que fez o cego,
conhecido como Bartimeu? Gritou ainda mais! “Jesus,
filho de Davi, tende piedade de mim!”
Gritos nascidos da certeza de que, se escutados, seriam
emudecidos pela alegria da visão.
E assim foi.
Jesus pede para que ele se aproxime. Bartimeu fica de
pé, joga sua capa e vai até ele, resoluto.
Sente-se visto nos recônditos da alma. Já não era o
marginal, o excluído. Estava agora no centro da cena,
num diálogo curto, preciso e sagrado: “Que queres que
eu faça?” - perguntou o Mestre -
“Rabonni, que eu volte a ver…”.
A palavra rabonni significa “meu mestre”, em hebraico.
Bartimeu reconhece que Jesus era o messias anunciado nas
escrituras, pois o chama de Filho de Davi e diz mais que
isso: era, também, o Mestre de um cego abandonado à
beira do caminho.
Sabia ele que Jesus vê muito além do que pode alcançar
os olhos comuns e míopes dos humanos e que, por isso,
saberia reconhecer os anseios mais profundos de sua
alma.
“Vai! Tua fé te curou”, foi
a última resposta dada àquele homem, agora feliz.
Nada de imposições, explicações ou movimentos.
Na simplicidade do momento, a riqueza da verdade última:
a fé é o antídoto contra a cegueira. Ela o salvou e
agora ele podia enxergar.
A força da fé foi capaz de mudar todo o sentido daquela
vida, a ponto de Bartimeu lançar a própria capa
(considerada como uma continuação do corpo e proteção
para ele) sem olhar para trás. Nenhuma dúvida, nenhuma
fala sem proveito. O resumo necessário se fez ali.
E deste encontro comovente, entre um cego do corpo e um
iluminado da alma, surge um novo Bartimeu, um homem que,
lúcido e pleno de novas disposições, passa a seguir
Jesus.
Fé e boas obras.
Não a fé que vacila, que questiona ou violenta, mas a fé
que se traduz em certeza, que nos mantém na trilha,
apesar do mundo.
Fé e boas obras que nos permitem um olhar para além do
perceptível aos olhos comuns.
E é por conta destes ingredientes fundamentais que,
atônitos, nos deparamos com aqueles que, mesmo diante
das perdas e dores, conseguem cultivar a serenidade na
alma.
São os “Bartimeus" do caminho - iluminados pelo sublime
encontro com a luz do Cristo através da força
impressionante da própria fé.
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