Escravagismo
visceral
A 21ª edição do programa “Big Brother Brasil” (BBB – TV
Globo, 2021) levou ao ar, em uma das competições, uma
cena que bem evidencia o título deste artigo. Os
participantes selecionados para uma das diversas provas
tinham de abrir portas de armários de cozinha. Quem
abrisse a porta correta, ganhava um prêmio e escapava do
temido paredão. Por mais de uma vez, o apresentador do
programa teve de chamar a atenção de um dos
competidores. Motivo: ele não fechava as portas que
escolhera abrir. Ao ser advertido pela terceira vez, o
rapaz – um galalau de corpo sarado, 26 anos – disse, de
forma sorridente e despretensiosa, que tinha esse hábito
em casa. Trocando em miúdos: no dia a dia, ele abre o
armário para pegar, por exemplo, uma lata de leite em pó
e não o fecha. Isso quer dizer que o armário fica com
uma porta aberta e quem quiser que a feche. Em geral, a
empregada ou, na ausência dela, aquela serviçal
popularmente conhecida como mãe. Ele é o barão; a
genitora, avó ou similar, é a escrava, que sai arrumando
a desordem por ele deixada.
Já falei sobre a escravidão arraigada na alma do
brasileiro em outros artigos. Mas sempre me vejo no
dever de voltar ao assunto, pois, em minha modesta
opinião, ele é algo que nos infelicita como nação e
impede saltos qualitativos em áreas como educação,
mercado de trabalho, direitos sociais, vivência
cotidiana etc.
Utilizo a palavra visceral para dar título e corpo a
estas linhas. Ela significa algo profundamente
entranhado, difícil de ser dissipado, como se estivesse
colado às nossas vísceras. Assim é a escravidão que
ainda nos assola. Está tão enraizada em nosso modus
operandi que não nos damos conta de como
reproduzimos esse comportamento cotidianamente. Está
presente tanto em fatos mais graves como nos mais
triviais.
O exemplo do BBB é trivial. Assim como é o hábito que
muitos empresários e empresárias (sejam de pequeno,
médio ou grande porte) possuem de colocar o funcionário
da empresa para fazer serviços particulares. Exemplo: ir
à joalheria levar para consertar o fecho do colar da
patroa ou ao plano de saúde pegar autorização para a
realização da ultrassonografia do patrão. Já vi muito
disso. E, é claro, esse funcionário nada recebe por esse
serviço extra para o qual não foi contratado. E há
também aquelas outras trivialidades, como pedir para o
empregado trabalhar além do expediente e não pagar hora
extra. E ai dele ou dela se reclamar. O patrão dirá que
ele pode sair caso não esteja satisfeito e que há outros
tantos milhares de candidatos para ocupar o lugar vago.
Uma espécie de senhor de engenho ameaçando o escravo com
o tronco do desemprego.
Há, entretanto, os casos graves. Bem mais graves, aliás.
É terrivelmente comum jovens negros serem assassinados
pela polícia simplesmente por serem negros. O tom da
pele já os transforma em suspeitos ou, pior, réus. Não à
toa, o percentual de homens negros encarcerados é
superior ao dos brancos. Triste realidade de um país em
que o preconceito racial e social ainda permanece
entranhado nas vísceras. Há também fatos que causam
profunda revolta.
Em junho de 2020, o menino Miguel Otávio, de 8 anos,
negro e filho de Mirtes de Souza, empregada doméstica,
caiu do alto de um prédio de luxo no Recife. A mãe dele
havia saído para passear com o cachorro da patroa – Sari
Corte Real. Será que isso fazia parte das atribuições da
mãe do menino ou a patroa não queria ir à rua para não
se expor ao coronavírus? Ela, esposa do prefeito de uma
cidade da região, temia se contaminar, tudo leva a crer.
Mas a empregada, pelo visto, podia estar exposta.
Afinal, a vida dos subalternos vale menos que a dos
patrões, ainda mais se os primeiros forem negros. Há
outro agravante: a empregada e seu filho eram para estar
em casa, seguindo as orientações sanitárias de
isolamento social. Se ela foi trabalhar é porque a
madame não a liberou. E levou o menino junto porque as
creches estavam fechadas, cumprindo o estabelecido.
Como Miguel sentiu falta da mãe e começou a chorar e
reclamar, a dona do imóvel, para se livrar do incômodo,
permitiu que ele saísse. Ato contínuo, Miguel Otávio
entrou no elevador, e ela mesma se encarregou de apertar
os botões dos andares para que o garoto a deixasse em
paz. Depois, voltou para o apartamento e não se importou
mais com o destino da criança. Miguel desceu num andar
mais alto, escalou uma grade, caiu e veio a óbito.
Segundo a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em
matéria publicada, na ocasião, no site da BBC News, no
Brasil “temos o princípio de que algumas pessoas são
mais humanas que outras”. Por isso, empregados não têm o
direito de se proteger da Covid19, já que devem servir
aos patrões. Funcionários de lojas e congêneres têm de
ir trabalhar e se expor ao vírus apinhados em ônibus e
trens, os filhos dos empregados não merecem o cuidado e
a proteção que os filhos dos patrões e por aí vai. Tudo
isso e muito mais, resquício de um tempo escravagista
que durou oficialmente quatro séculos mais que ainda
ecoa nas nossas relações sociais.
Em “O Livro dos Espíritos”, na questão 684, Allan Kardec
pergunta o que se deve pensar dos que abusam da
autoridade para impor excesso de trabalho aos
inferiores. O plano espiritual responde que tal atitude
é uma das piores que pode haver. Afinal, dizem os amigos
espirituais, quem impõe tarefas excessivas a seus
subordinados é responsável por tal, já que está
transgredindo a lei de Deus.
Ninguém, portanto, é obrigado a trabalhar além das
forças e das funções, principalmente em tempos difíceis
como estes pelo qual passamos. Mas como o brasileiro
adora fazer o próximo de boy de luxo, mucama, moleque de
recados e afins, temos uma escravidão perpetuada que
muito nos deprecia como nação. E isso vale tanto para as
questões complexas como para as triviais.
Na mesma obra, na questão 830, Kardec pergunta: “Quando
a escravidão faz parte dos costumes de um povo, são
censuráveis os que dela se aproveitam, embora só o façam
conformando-se com um uso que lhes parece natural?”
Antes de comentar a resposta, convém analisar a pergunta
à luz dos fatos que marcam a nossa História.
Oficialmente, a escravidão foi abolida em 13 de maio de
1888. Mas os exemplos citados neste artigo, assim como
milhares de outros, evidenciam que ela ainda faz parte
dos costumes do povo brasileiro. Por isso, muitos ainda
se aproveitam dela, como se fosse natural enxergarmos
pessoas negras ou subalternas como inferiores ou
possuidoras de menos direitos. A escravidão, reitero,
ainda pauta a forma como nos relacionamos, infelizmente.
A resposta à pergunta 830 diz que “a responsabilidade do
mal é relativa aos meios de que o homem disponha para
compreendê-lo”. Isso significa que, quanto mais
avançamos, mais devemos ter olhos de ver que toda essa
estrutura social pautada na exploração da mão-de-obra
alheia precisa começar a ruir. Trata-se de um longo
trabalho que envolve justiça social, políticas públicas
de inclusão, revisão da grade curricular a fim de que a
escola forme cidadãos com consciência de classe e
politicamente participativos etc.
A 830 diz ainda que, pelo fato de a escravidão ter-se
introduzido nos costumes de um povo, é comum que as
pessoas dela se utilizassem como se fosse algo normal.
Contudo, à medida que a sociedade progride (Sim, ela
progride!) e as pessoas vão se tornando mais
esclarecidas – inclusive pelas luzes do Cristianismo –
não há mais desculpas para que os homens se tratem como
desiguais, já que os outrora senhores e escravos são
iguais perante Deus. E nada como a reencarnação – que
põe abaixo as divisões de raça, credo religioso,
orientação sexual e classe social –, para nos mostrar o
quanto é urgente o Brasil deixar para trás o visceral
ranço escravagista.
Até quando teremos de insistir no assunto para que todos
percebam que não se avança como sociedade enquanto não
derrubarmos gradativamente certos alicerces para
construirmos outros? Até quando o espírita fingirá não
perceber que é impossível construir um mundo regenerado
tendo como base pilares erguidos num mundo de provas e
expiações? E até quando esse mesmo espírita continuará
crendo que a doutrina espírita só existe para tratar de
assuntos das nuvens para cima?
Bibliografia:
1- COSTA,
Camilla – Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra
‘como supremacia branca funciona no Brasil’, diz
historiadora. Disponível em BBC
Brasil
2- KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.