Introdução
Ditado pelo
espírito Emmanuel e publicado em 1942, o livro Paulo e Estêvão foi
considerado por Francisco Cândido Xavier a sua principal obra mediúnica e
classificado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), que o editou, como um
“romance histórico”. Romance é definido no principal dicionário (Ferreira, 2004,
p. 1771) como: “descrição longa de ações de personagens fictícios; descrição
exagerada ou fantasiosa; enredo de coisas e falas inacreditáveis; fato ou
episódio real, mas tão complicado que parece inacreditável”. Já um romance
histórico é definido, corretamente, no Wikipédia como: “um gênero literário em
prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado”[1].
O presente
artigo contesta a tipificação de Paulo e Estêvão como romance histórico,
argumentando em prol do reconhecimento da veracidade integral desse livro sobre
a trajetória de Paulo de Tarso e o cristianismo nascente.
Decorrências da classificação como um romance histórico
Tendo-me
tornado espírita somente em 1999, demorei dez anos para ler Paulo e
Estêvão, inconscientemente, devido à associação generalizada entre romance e
ficção, a despeito do meu reconhecimento a Emmanuel e Chico Xavier. Depois
deste, li com muito interesse e atenção os demais “romances históricos”
publicados por essa dupla. Cabe dizer que a grande valorização já feita dessa
obra (mas, infelizmente, parece, deixada de lado) pelo juiz de direito Haroldo
Dutra Dias me despertou a atenção para sua leitura. Porém aqueles vídeos de
palestras e entrevistas no YouTube, bem como o seminário literomusical a
respeito do tema protagonizado por ele, concretamente, não atingiram ou não
convenceram uma parte do movimento espírita. A primeira vez que me deparei com
essa realidade foi em 2017 quando uma liderança de um centro espírita
paulistano, pessoa com perfil intelectualizado, afirmou durante um pequeno
seminário voltado a integrantes da própria comunidade religiosa que Abigail
seria exemplo de uma “invenção poética” de Emmanuel para tornar bela a narrativa
do livro.
Mas a evidência
de significativo descrédito no meio espírita da principal obra psicografada pelo
saudoso médium só apareceu a mim quando assisti na televisão paga Amazon Prime,
em 2020, ao filme Paulo de Tarso e a história do cristianismo primitivo,
de tipo ‘docudrama’, combinando aspectos de documentário e encenações.
Produzido, dirigido e narrado pelo jornalista André Marouço, apresentador
de programas na TV Mundo Maior, ligada à Fundação André Luiz - FEAL[2],
contava no elenco com o renomado ator Caio Blat interpretando Estêvão. Entrou em
cartaz no cinema em 3 de outubro de 2019 - dia do nascimento de Allan Kardec,
vale lembrar - tendo havido campanha de divulgação dele junto a núcleos
espíritas, tal como ocorrera com outros filmes do gênero. Seu diretor explicou
assim o fato de o longa-metragem ter sido pouco assistido no cinema: “esse tipo
de filme não consegue grande abrangência no mercado comercial porque não se
trata de um romance” [grifo meu][3].
No
longa-metragem, é narrada a trajetória de Paulo de Tarso, mostrando-se muitas
imagens atuais dos lugares por ele percorrido, com base nos textos bíblicos: Atos
dos Apóstolos e cartas paulinas. Há nele comentários de alguns conhecidos
palestrantes espíritas[4],
principalmente do professor de ciências da religião, vinculado à Universidade
Federal da Paraíba, Severino Celestino da Silva, que é igualmente apresentador
de programas na TV Mundo Maior. Pesquisador bíblico e organizador de viagens
comerciais para grupos espíritas à Palestina e à Europa, Celestino foi curador,
ou seja, consultor do filme.
Embora seja
enfatizado no longa-metragem - através das falas de Celestino, Ruiz e Lucca - a
influência que Estêvão teve sobre toda a trajetória do apóstolo dos gentios, o
livro de Emmanuel não tem nenhum de seus trechos reproduzidos e, mais que isso,
não é sequer citado. Outro dado elucidativo do descrédito da obra psicografada
por Chico Xavier é a afirmação por Marouço no filme: “Os cristãos, após a
romanização, aprenderam a idolatrar líderes religiosos, oradores, autores e
médiuns como seres dotados de infalibilidade”[5].
Vale registrar também que o longa-metragem comete apenas um erro, porém
importante, também em relação a Atos dos Apóstolos mediante a afirmação
de que “Entre os mais desconfiados da conversão de Paulo estava o apóstolo
Pedro”.
Contradizendo Paulo
e Estêvão, o filme aponta não Simão Pedro, mas sim Tiago Menor como sendo,
desde o início, o legítimo e grande líder da primeira comunidade cristã em
Jerusalém, chamada de Casa do Caminho na obra de Emmanuel. No capítulo 15 de seu
livro intitulado O evangelho e o cristianismo primitivo (2010), Severino
Celestino destaca o papel de Tiago reverberando a posição de dois teólogos que
viveram no século III: Eusébio de Cesareia (265-339) e Clemente de Alexandria
(150-215), de que o apóstolo seria irmão biológico de Jesus[6].
O fato de Paulo de Tarso se referir a Tiago como “irmão do Senhor” na Carta
aos Gálatas (1:19) reforça tal interpretação, embora pesquisadores
contemporâneos, também não católicos, afirmem serem eles apenas parentes. Ocorre
que o espírito Humberto de Campos (2013), na obra Boa Nova - cuja
primeira edição foi publicada em 1941 - também psicografada por Chico Xavier,
esclarece a questão dizendo na página 35:
Levi, Tadeu
e Tiago, filhos de Alfeu e sua esposa Cleofas, parenta de Maria, eram nazarenos
e amavam a Jesus desde a infância, sendo muitas vezes chamados “os irmãos do
Senhor”, à vista de suas profundas afinidades afetivas.
Por fim, no
item 7 do capítulo 14 de O Evangelho segundo o espiritismo, Kardec (2002,
[1864] complementa e também resolve definitivamente o problema interpretativo
(ao menos para os espíritas) ao afirmar:
Pelo que concerne a seus irmãos, sabe-se
que não o estimavam. Espíritos pouco adiantados, não lhe compreendiam a missão:
tinham por excêntrico o seu proceder e seus ensinamentos não os tocavam, tanto
que nenhum deles o seguiu como discípulo” [grifo meu].
Eis por que Jesus confiou os cuidados de Maria de Nazaré (profundamente cristã)
ao apóstolo João, irmão de Tiago Maior, que a tomou como espécie de mãe adotiva,
algo também ressaltado no livro Boa Nova, em consonância com os ditos de
Jesus a ambos na cruz, conforme João 19 (26-27):
Então, ao ver Jesus a sua mãe e, de pé ao seu lado, o discípulo que ele amava,
diz à sua mãe: Mulher, eis o teu filho. A seguir, diz ao discípulo: Eis a tua
mãe. Desde aquela hora, o discípulo a recebeu em sua própria casa.
Além do longa-metragem de André Marouço, outro filme espírita foi elaborado
sobre o convertido de Damasco, sendo este, porém, um documentário dividido em 15
episódios e exibido apenas no YouTube a partir de maio de 2020. Intitulado Paulo
de Tarso: o médium de Cristo, foi produzido e narrado pelo advogado com
mestrado em filosofia Paulo Cezar Fernandes. Semelhantemente à anterior, esta
produção também é repleta de imagens, além de fotografias, colhidas em viagem de
setenta dias do diretor e sua esposa por lugares onde o apóstolo percorreu na
Turquia, bem como: Israel, Grécia, Chipre e Itália. No documentário, ao menos, Paulo
e Estêvão tem sua capa exibida, é mencionado algumas vezes e aparece
enquanto um dos seis livros citados como obras de referência. Porém Fernandes
opta por transcrever na tela exclusivamente trechos de Atos dos Apóstolos,
ignorando a versão de Emmanuel sobre acontecimentos importantes, dentre eles o
apedrejamento de Estêvão e as experiências de Paulo, pouco depois de sua
conversão, tanto no Oásis de Dan[7] quanto
em Tarso. Mais que isso, o fundamental papel exercido pelo mártir na
intermediação entre Jesus e o apóstolo dos gentios é desconsiderado no próprio
nome do documentário[8].
Verifica-se, portanto, que o livro psicografado por Chico Xavier é efetivamente
secundário enquanto referência, na elaboração desta produção.
Biografias de Paulo de Tarso
Com o texto
introdutório “Breve notícia”, Emmanuel explica, já no primeiro parágrafo da
obra Paulo e Estêvão, o sentido da existência dela.
Não são
poucos os trabalhos que correm mundo, relativamente à tarefa gloriosa do
Apóstolo dos gentios. É justo, pois, esperarmos a interrogativa: – Por
que mais um livro sobre Paulo de Tarso?
Há realmente
muitas obras literárias sobre o apóstolo dos gentios, sendo a mais importante,
do século XIX, São Paulo (1869), publicada no Brasil com o título Paulo:
o 13º apóstolo (2003), do famoso historiador francês Ernest
Renan (1823-1892). Tal livro, que aborda as epístolas paulinas, foi uma das duas
declaradas referências para a primeira biografia nacional do convertido de
Damasco, redigida pelo filósofo espiritualista catarinense Huberto Rohden
(1893-1981) Paulo de Tarso: o maior bandeirante do Evangelho (2003),
vendida também em livrarias espíritas. Bem mais conhecida que esta, em tal meio,
é a obra do renomado escritor espírita fluminense Hermínio Corrêa de Miranda
(1920-2013), editada em dois volumes, sendo o segundo sobre Martinho Lutero e o
primeiro, publicado em 1974, a respeito do missionário de Tarso: As marcas do
Cristo: Paulo, o apóstolo dos gentios (2010)[9].
Editada pela
FEB, o livro de Hermínio cita Renan e outras fontes, principalmente Paulo e
Estêvão, cujo conteúdo o autor reproduz, sem uso de aspas, em mais da metade
da obra, de modo misturado, portanto, com os seus escritos. A despeito de tal
importância, o então presidente febiano Francisco Thiesen - que prefacia o livro
- não o cita, optando por mencionar outras obras de Emmanuel: A caminho da
luz (1939); O consolador (1941); Caminho verdade e vida (1949). O
próprio Hermínio vai citar pela primeira vez, discretamente, Paulo e Estêvão já
na página 60 do livro. Entretanto, ele faz questão de contradizer Ernest Renan e
outros biógrafos de Paulo de Tarso, em prol da veracidade da obra de Emmanuel ao
afirmar na página 59:
Aos judeus,
fala dentro de um contexto de formas-pensamentos judaicos. A prova está na sua
belíssima Epístola aos Hebreus, que, de tão impregnada pela carga emocional do
Apóstolo já envelhecido, é considerada por muitos como apócrifa[10].
No meio
acadêmico, tem destaque o livro Paulo: uma biografia (2018), do teólogo
inglês e bispo emérito anglicano, além de pesquisador da Universidade de Oxford
e reconhecido especialista no Novo Testamento, Nicholas Thomas Wright. Antes
dela, ele havia publicado uma obra bastante importante intitulada Paulo:
novas perspectivas (2009). Também merece menção a biografia Paulo de
Tarso: história de um apóstolo (2007), escrita pelo igualmente teólogo, mas
irlandês e católico, além de padre dominicano e professor de Novo Testamento na
Escola Bíblica de Jerusalém, Jerome Murphy-O´Connor (1935-2013). Ele havia
publicado antes Paulo: biografia crítica (1996). Vale registrar que em
seus livros apontados, Wright não cita O´Connor e ambos não mencionam Ernest
Renan.
Embora não seja
citado por nenhum dos autores listados acima, com exceção de Huberto Rohden, a
biografia mais completa - dada a amplitude da investigação expressa na riqueza
de dados expostos - é intitulada Paulo de Tarso (2008) e foi
publicada orginalmente em 1937 pelo católico padre alemão Josef Holzner
(1875-1947), cuja cronologia de Paulo de Tarso, basicamente, corresponde à
apontada também por Nicholas Wright. Fruto de uma pesquisa de três décadas, o
livro de Holzner[11],
com 574 páginas (o também volumoso de Wright tem 477), cita Renan e mais
outras dezenas de autores. Não por acaso, sua obra é
a que mais se aproxima de Paulo e Estêvão, conforme veremos. (Continua
na próxima edição.)
Referências
bibliográficas:
ANDRADE, Aíla
Luzia Pinheiro de. Sombra e realidade: um estudo de Hb 10 à luz da
'perfeição' de Cristo. Dissertação de mestrado em teologia. Belo Horizonte,
FAJE, 2003.
BARBOSA,
Leonardo. A Carta aos Hebreus e a autoria paulina. Sevorum Dei, 6 de
janeiro de 2018. Disponível em: Link-4 .
Acesso em: 19/03/2021.
FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª
edição. Curitiba, Positivo, 2004.
HOLZNER, Josef. Paulo
de Tarso. 2ª edição. São Paulo, Quadrante, 2008.
KARDEC, Allan. O
evangelho segundo o Espiritismo. Araras, IDE, 2002.
MIRANDA, Hermínio
Corrêa de.. As marcas do Cristo: Paulo, o apóstolo dos gentios. Vol. 1.
6ª edição. Rio de Janeiro, FEB.
MURPHY-O´Connor,
Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo, Loyola, 1996.
_______. Paulo
de Tarso: história de um apóstolo. São Paulo, Loyola, 2007.
XAVIER, Francisco
Cândido. Boa nova. Pelo espírito Humberto de Campos. 37ª edição.
Brasília, FEB, 2013.
WRIGHT, Nicholas
Thomas. Paulo: novas perspectivas. São Paulo, Loyola, 2009.
_______. Paulo:
uma biografia. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2018.
[1] Link-1 Acesso
em: 10/02/2021.
[2] O
longa-metragem contou com apoio promocional de: TV Mundo Maior, Rádio Boa Nova,
Mundo Maior Filmes - todas vinculadas à FEAL - além da Rádio Rio de Janeiro e da
União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP), assim como o
patrocínio da TV Alvorada Espírita.
[3] Link-2.
Acesso em 23/2/2021.
[4] André
Luiz Ruiz, Antonio Cesar Perri de Carvalho, Jorge Damas Martins e José Carlos de
Lucca. Cabe lembrar que Perri escreveu o texto “70 anos de Paulo e Estêvão”
que compõe a edição comemorativa das sete décadas da obra, publicada, em 2012,
enquanto ele presidia a FEB.
[5] Embora
haja no meio espírita, realmente, idolatria de determinadas pessoas com tais
perfis, o fato é que o diretor do filme se referiu, de modo subliminar, a Chico
Xavier e seu livro psicografado.
[6] Em
duas edições do programa “Abrindo a Bíblia”, da TV Mundo Maior, exibidos: em
03/09/2010 e 011/04/2011 e disponíveis no YouTube, Celestino abordou a suposta
liderança exercida de modo inconteste, em seu entender, por Tiago Menor na
comunidade cristã de Jerusalém, fazendo ele menção ao O evangelho
apócrifo de Tomé, documento que ganhou uma edição voltada ao segmento
espírita (Miranda, 2007).
[7] Na Carta
aos Gálatas (1:15-17), Paulo de Tarso se refere a tal lugar, genericamente,
apenas como “Arábia”.
[8] Interessante
observar que mesmo no filme Irmãos de fé (2004), da Columbia Pictures,
que contou com consultoria do bispo emérito católico dom Fernando Figueiredo e a
participação do renomado ator Tiago Lacerda e do famoso padre Marcelo Rossi, é
reconhecido, de algum modo, o papel de Estêvão na trajetória de Paulo. Isto se
dá pouco antes do final, quando a irmã do mártir, denominada no longa-metragem
de Macária, aparece junto com o convertido de Damasco, estando ele em pranto, de
joelhos e abraçado a ela enquanto esta lhe diz: “meu irmão está ao seu lado,
abençoando e aprovando cada passo seu”.
[9] Hermínio
Miranda também se baseia em Ernest Renan a quem atribui o fato de apontar, em
seu respectivo livro, várias semelhanças entre Paulo de Tarso e Lutero. Geraldo
Lemos Neto, que foi amigo próximo de Chico Xavier, apontou numa entrevista
disponível no YouTube (Link-3 acesso
em: 10/02/2021) que foi Emmanuel, através de Chico, que fez a Miranda a
revelação de que Lutero e Paulo de Tarso são o mesmo espírito.
[10] Entretanto,
pesquisas contemporâneas baseadas, em boa medida, na obra Contra Celso (2011),
finalizada no ano 248 pelo teólogo egípcio Orígenes de Alexandria (185-254),
reconhecem a autoria paulina desta carta (Andrade, 2003; Barbosa, 2018).
[11] Obra
da vida desse sacerdote, que foi capelão militar durante a I Guerra Mundial,
depois pároco num pequeno município de seu país e professor de religião da
também cidade alemã Munique.
André Ricardo de Souza é doutor
em sociologia pela Universidade de São Paulo, professor associado II do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos e organizador
dos livros: Espiritualidade e espiritismo: reflexões para além da
religiosidade (Porto de Ideias, 2017) e Dimensões identitárias e
assistenciais do espiritismo (Appris, 2020). É integrante do paulistano
Núcleo Espírita Coração de Jesus.