A
escravidão moderna e os
seus desdobramentos
espirituais
Na sua geralmente árdua
romagem terrena, que
deveria lhe despertar a
sensibilidade e os
sentimentos para algo
maior, a criatura humana
não raro demonstra
enormes dificuldades na
assimilação da boa-fé e
discernimento. Ao
agregar ao seu ser um
conjunto de atitudes e
ações desastrosas, não
atina sobre os
indesejáveis passivos
que cria para si mesma.
Sob essa sombria
perspectiva e ainda
movida pelo afã de
“lucrar”
inescrupulosamente, a
tudo e a todos arrasta
sem medir as
consequências. De erro
em erro, portanto, elege
a dor e o sofrimento
como colheita
obrigatória, que lhe
caberá ceifar mais dia
menos dia. Aliás, é
decepcionante constatar
que a lista dos
desacertos dos seres
humanos cresce
exponencialmente, dado o
seu voluntário
afastamento das coisas
sérias e elucidativas.
Infelizmente, os apelos
da matéria continuam
atraindo os arautos da
insensatez, até o dia em
que os acicates da
reparação cármica os
despertem...
A propósito, Allan
Kardec aduz
interessantes
comentários à questão
399 d’O Livro do
Espíritos, que
merecem aqui ser
resgatados – ou seja:
“A natureza dessas
vicissitudes e das
provas que sofremos
também nos podem
esclarecer acerca do que
fomos e do que fizemos,
do mesmo modo que neste
mundo julgamos os atos
de um culpado pelo
castigo que lhe inflige
a lei. Assim, o
orgulhoso será castigado
no seu orgulho, mediante
a humilhação de uma
existência subalterna; o
mau rico, o avarento,
pela miséria; o que foi
cruel para os outros,
pelas crueldades que
sofrerá; o tirano,
pela escravidão; o
mau filho, pela
ingratidão de seus
filhos; o preguiçoso,
por um trabalho forçado
etc.” (ênfase minha)
Posto isto, é deveras
chocante observar que
ainda há nesse planeta a
soez prática da
escravidão. É verdade
que travestida de formas
mais sutis, mas nem por
isso menos real e
concreta. Tal aberração
foi, aliás, banida pela
Inglaterra – país que,
por sinal, muito dela se
beneficiou – em 1834. No
entanto, só em 1888 se
deu a abolição da
escravidão no Brasil –
última nação do mundo a
abraçar tão relevante
ideal. Exibindo uma
natural vocação à
exploração humana, adiou
quanto pôde a sua
eliminação, até
finalmente ceder aos
ventos das
transformações
benfazejas trazidos
pelas novas ideias e
valores disseminados
além-mar. Seja como for,
e independente dos
resgates justamente
delineados pela lei de
ação e reação, há
criaturas ainda
submetidas às injunções
da escravidão em pleno
século XXI.
Segundo o Observatório
do Terceiro Setor, em 25
anos, 55 mil pessoas
foram resgatadas do
trabalho escravo em
nosso solo. Para
ilustrar a dimensão
dessa imoralidade, só no
ano passado, 942 pessoas
foram libertadas dessa
degradante condição. É
fato incontestável que a
pandemia trouxe mais
agravos à situação que
já era por si só
deplorável. Com efeito,
o desemprego acentuado e
a miséria funcionam como
indutores à proliferação
desse mal à medida que
facilitam a exploração
trabalhista. E todo esse
cenário indesejável
proporciona as condições
ideais à contratação de
trabalhadores submetidos
a situação semelhante à
escravidão. Vítimas de
verdadeiras aves de
rapina são levadas a
trabalhar e viver em
ambientes sem
sanitários, equipamentos
mínimos de segurança e,
o que é mais revoltante,
sem pagamentos. A
precariedade social
desses trabalhadores
leva-os ao endividamento
perante os seus
empregadores, que os
exploram
implacavelmente.
Lamentavelmente, não há
suficiente número de
auditores do trabalho,
que poderiam, em teoria,
intensificar as
fiscalizações e, assim,
reduzir ou eliminar de
vez tão nefanda prática
no país. Aqueles que são
resgatados dessas
aviltantes situações não
têm garantia de que
terão um futuro melhor
já que:
“Mesmo com ações em prol
da defesa dos direitos
das vítimas resgatadas,
os auditores não
conseguem garantir que a
vítima não vá retornar
para a cadeia de
exploração. De acordo
com um estudo da
Organização
Internacional do
Trabalho (OIT), com base
nas guias de
seguro-desemprego do
trabalhador resgatado no
Brasil, ao menos 1,73%
dos mais de 35 mil
trabalhadores resgatados
entre 2003 e 2017 haviam
sido resgatados mais de
uma vez”.
Segundo as estatísticas
disponíveis, os setores
que mais exploram esses
trabalhadores são:
criação de bovinos para
corte (32%), cultivo de
arroz (20%) e fabricação
de álcool (11%). Boa
parte das vítimas chegou
a cursar no máximo até o
5º ano do ensino
fundamental, mas a
maioria é constituída de
analfabetos.
A forma de escravização
moderna é extremamente
variada, ou seja, pode
abarcar o trabalho
forçado (incluindo o já
referido endividamento),
casamento forçado,
exploração sexual de
adultos e crianças e
trabalho forçado imposto
pelo próprio estado, ao
ponto de especialistas
afirmarem que “As
pessoas precisam ter em
mente que já podem ter
tido contato com o
trabalho análogo à
escravidão. Não é algo
que ocorre apenas em uma
fazenda distante ou no
interior do Brasil. A
doméstica que trabalha
para o seu vizinho, os
trabalhadores na
construção civil, ou até
mesmo a carne que você
compra pode ter passado
por trabalhadores
explorados. Toda a
sociedade está envolvida
neste ciclo”.
A situação é tão
preocupante que a
escravização moderna
representa uma violação
dos direitos humanos de
aproximadamente 40,3
milhões de homens,
mulheres e crianças ao
redor do mundo, segundo
um relatório de 2017 da
OIT. Do ponto de vista
espiritual, é preciso
considerar que ao
enveredar por tão
tortuoso caminho, o
Espírito infrator às
leis de Deus está se
comprometendo
seriamente. Conforme
revelaram os Espíritos a
Kardec na citada obra,
pois “É contrária à lei
de Deus toda sujeição
absoluta de um homem a
outro homem. A
escravidão [e seus
sistemas análogos
hodiernos, vale
acrescentar] é um abuso
da força. Desaparece com
o progresso, como
gradativamente
desaparecerão todos os
abusos”.
Ora, se tal coisa ainda
persiste é porque não
atingimos o progresso
espiritual minimamente
desejado em nossa
civilização. Submeter os
nossos semelhantes a
prática tão ultrajante
denota profundo atraso
moral, e o perpetrador
de tamanha barbaridade
um dia sofrerá sob o
mesmo guante. Por ora,
cabe a nós denunciar
supostos casos que se
enquadrem nessa
descrição, elaborar leis
mais sólidas e, acima de
tudo, punir severamente
os infratores.