Uma confissão: excertos do
pensamento de um “mujique espiritual”
Quando Liev Nikoláevitch Tolstoi (1828-1910),
mais conhecido no ocidente como Leon Tolstoi,
escreveu suas confissões, contava com 51 anos de
idade. Como alcançaremos essa idade no próximo
ano, se assim nos for permitido, lembramos desse
texto e gostaríamos de compartilhar com o amigo
leitor um pouco das lutas íntimas de um homem
que marcou época na literatura russa e mundial,
por meio de obras tão brilhantes como “Guerra e
Paz”, “Anna Karenina” e “Ressurreição”, dentre
outras.
Vivia Tolstoi, o que se diz popularmente de
“crise da meia idade”. Ao contrário de um
mujique, cuja característica é a simplicidade, a
rusticidade de uma pessoa do povo, Leon Tolstoi
gozava de uma condição de vida privilegiada.
Residia, na época de suas Confissões, em uma
propriedade rural extensa, de nome Iásnia
Poliana, era casado com uma esposa amorosa e
filhos saudáveis. No entanto, para Tolstoi, um
vazio provocado pela religião ganhava espaço
desconcertante em sua intimidade.
Criado na “fé cristã ortodoxa”, batizado e
durante sua infância e adolescência praticante
religioso, aos dezoito anos, já não acreditava
“em mais nada do que me haviam ensinado”,
comenta Tolstoi. Sua memória deixava a entender
o quanto a fé construída pela ortodoxia falhava
diante do que a sociedade valorizava.
Com onze anos, um amigo de escola foi almoçar
com sua família. Após o almoço todos se reuniram
para conversar e esse amigo fez uma revelação
que chamou a atenção dos irmãos mais velhos de
Tolstoi, mas que em nada lhe causou estranheza:
Deus não existia mais, confessou esse amigo. A
indiferença com que Tolstoi recebeu aquela
ideia, refletia os valores de uma sociedade, que
se arrastam por séculos, insuflado pelo
materialismo e que, nem o espiritismo, na
atualidade, conseguiu ainda extirpar: o orgulho.
O que a sociedade valoriza, confessa Tolstoi,
era diametralmente o oposto daquilo que ele
entendia ser uma vida plena. Buscava, de todo
coração, ser uma pessoa melhor. Era o que ele
queria. Porém... soldado na guerra da Crimeia
(1853-1856), matou, mentiu, ludibriou, se
entregou a luxuria e a devassidão. Tudo de mais
abominável que um ser humano poderia fazer,
entretanto, era sempre incentivado e ovacionado
pela sociedade com os seus “feitos”, como se
aqueles atos se justificassem pelo amor à pátria
ou à determinada casta social.
Disse, em um dado momento de sua confissão: “a
doutrina religiosa que me foi transmitida desde
a infância desapareceu dentre de mim da mesma
forma como nos outros; a única diferença é que,
como comecei cedo a ler e a pensar, minha
renúncia à doutrina religiosa se tornou
consciente também muito cedo”. Momento delicado
de sua vida.
Não era capaz de dizer em o que acreditava.
Acreditava em Deus, ou melhor, “não negava a
existência de Deus”, porque não sabia dizer o
que era Deus para ele. Tentava se ocupar
intelectualmente para aprimorar sua vontade,
estabelecendo regras próprias para viver. Em sua
juventude acreditava que sendo forte, não se
curvaria aos obstáculos e nem a ninguém; mais
tarde passou a acreditar que além da força
precisaria ser melhor do que os outros em tudo e
assim, como um narciso, passou a dedicar-se
fisicamente e intelectualmente a alcançar seus
objetivos. Havia deixado de jejuar e ter fé, há
muito tempo...
De fato, a intensidade com que expressava seus
pensamentos, não poderiam ser divulgadas
amplamente na Rússia “tzarista”(ou “czarista”,
de “czar”, imperador Russo. À época de Tolstoi o
imperador se chamava Nicolau II, conhecido
também como “São Nicolau” pela Igreja Ortodoxa),
por isso suas confissões foram proibidas. A
primeira edição ocorreu em Genebra, na Suíça, e
na Rússia só seria publicada quatro anos antes
do seu desencarne aos 82 anos.
Incomodava-o, à medida em que se desenvolvia
intelectualmente, ver o quanto a Igreja sempre
esteve mais próxima do poder, do que
necessariamente de Deus. Esse pensamento, aliás,
pode ser estendido às demais religiões
tradicionais que se misturavam com estruturas
formais de poder na monarquia, fazendo valer,
muito mais, os desmandos da corte, do que os
princípios espirituais, sobretudo, os princípios
do Cristo. Qualquer semelhança na atualidade,
“não” é mera coincidência...
Esse “primado de sinceridade”, como diz Rubens
Figueiredo, tradutor para o português e
apresentador da obra, foi inspirado nas Confissões de
Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Leitor
assíduo também de Voltaire (1694-1778), conhecia
os clássicos franceses que iluminaram toda a
Europa com seus pensamentos revolucionários e
libertadores, deixando, muitos, na orfandade da
fé tradicional, ortodoxa e restritiva.
Voltando ao que a sociedade valoriza, destaca o
autor de Guerra e Paz, a ambição, desejo de
poder, cobiça, orgulho, ira, vingança, como
atitudes “respeitosas”. Quando se entregava a
essas “paixões”, se tornava um adulto. Para
ilustrar o quanto a sociedade distorce os
valores espirituais, narra o pensamento de uma
tia, que considerava “puríssima”, com quem
morou. Ela vivia dizendo a ele, não se assustem,
século XIX, que não desejava para ele “outra
coisa senão que eu tivesse um relacionamento com
uma mulher casada: rien ne forme un jeune
homme comme une liaison avec une femme comme il
faut1”. Desejava ainda, a
puríssima tia, que ele fosse ajudante de ordens
do tsar e que a felicidade suprema seria vê-lo
casado com uma jovem muito rica e tomando posse
do maior número de servos, possível.
Lembrava com horror e dor no coração de tudo
aquilo. Ele desafiava os homens para duelos,
perdia dinheiro em jogos de cartas, desperdiçava
o trabalho dos mujiques e os martirizava, levava
uma vida depravada. Mentira, roubo, luxúria de
todo tipo, bebedeira, violência e tudo isso era
valorizado pela sociedade enferma, e os que
assim agiam eram considerados homens de “moral”.
Começou a ser escritor porque queria poder,
dinheiro e encontrou-se em um ambiente em que
percebia haver profunda sintonia com seus
desejos e pensamentos por parte daqueles que já
usufruíam desse seleto “clube”. Com três anos,
porém, começou a perceber que aquele mundo não
existia e sim era repleto de vaidades, brigas
entre os escritores, alguns dizendo saber e
compreender a verdade, enquanto outros contra
argumentavam, e também mentiam dizerem-se
portadores “verdadeiros da verdade”.
Conclui seus primeiros pensamentos, no auge da
crise de meia idade, com um suspiro do fundo da
alma, e uma lucidez de um espírito cansado das
incongruências dos homens, mas já combatente do
bom combate (a luta íntima por melhorar-se!):
“hoje, está claro para mim que aquilo não era
nada diferente de um hospício; mas, na época, eu
apenas desconfiava e, como qualquer louco,
apenas chamava todos os outros de loucos, menos
a mim mesmo.”
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A vida e a obra de Leon Tolstoi é repleta de
fatos vividos intensamente por um ser humano em
busca de melhorar-se espiritualmente,
rebelando-se ante as inconsistências de uma
sociedade perversa, porque formada por espíritos
que valorizam mais a matéria do que o espírito.
Passou seus 82 anos na Terra literalmente entre
“Guerra & Paz”, sem, jamais, entregar-se ao
comodismo que entorpece e cria uma zona de
conforto prejudicial à saúde.
O tempo passou desde a narrativa de Tolstoi,
entretanto, muitos hábitos e costumes
permanecem. Por que? Porque o processo de
educação espiritual leva tempo e cada um precisa
vivenciar, individualmente, aquilo que auxiliará
em seu despertamento, tarefa intransferível.
Compreender este movimento de erros e a busca
por melhoria, não é difícil. O difícil é ter a
coragem para realizar um “primado de
sinceridade” como Tolstoi e aprender a olhar
para os próprios erros e tendências com
serenidade e sem culpa. A culpa adoece a alma,
porque torna a alma submissa e não esclarecida.
Uma alma submissa é enferma diante das
potencialidades da vida, algo que confronta
diretamente aquilo que a sociedade mais
valoriza: a obra orgulhosa de não passar na vida
sem deixar sua “marca”.
Assim, não espíritas e muitos espíritas,
valorizam a vaidade, acreditando ser “normal”
ser vaidoso. Outros dissertam sobre o “orgulho”,
afirmando existir o orgulho “bom” e o orgulho
“ruim” e eu sou um deles: orgulhoso que tenta
justificar o próprio orgulho! E assim por
diante, em um círculo vicioso difícil de ser
rompido.
Mas, quando se vive intensamente suas
descobertas, quando se aprende a compreender a
vida a partir de suas próprias buscas, a vida se
encarrega de iluminar e colorir o caminho
daqueles que, a princípio, haviam perdido a fé.
É muito bonito o movimento de busca, análise,
compreensão, reflexão e ressignificação de tudo
aquilo que ocorre conosco, como fez Tolstoi.
Por meio da mediunidade iluminada de Yvonne do
Amaral Pereira, na obra “Ressurreição e Vida” (o
título não poderia ser mais oportuno), um ser
transformado inspira a pena da médium que se
entrega a transcrever um pensamento
transformado:
“Que
se estanquem as lágrimas da saudade à beira das
sepulturas; que serene o desespero no coração
das mães diante do esquife de um filho que não
mais sorri; que se levante a fronte do ancião,
cujo desânimo só tem a morte por finalidade...”
“Se
um só dos prováveis leitores destas páginas
conseguir acalentar dores e dirimir dúvidas
quanto ao importante assunto da imortalidade da
alma humana, certificando-se da verdade que há
milênios se tenta testemunhar, dar-me-ei por bem
recompensado das dificuldades que precisei
arredar a fim de ditá-las.”
E conclui: “se
um só adepto da Revelação Espírita – à qual hoje
tributo respeito e admiração – entender que
contribui, com pequena colaboração, para a
sementeira dos vastos campos que ela será
chamada a cultivar, terei a consciência
reconfortada pela certeza de que cumpri um
sacrossanto dever.”
“Mas escrevo apenas para os pobres, os
simples e os sofredores. Sei que somente
eles me compreenderão e aceitarão.”
Ergamos a nossa fronte diante das lutas
cotidianas, rendendo graças a Deus pela
oportunidade da vida e do viver. Embrenhemos
pela mata fechada da incompreensão e da
distorção de valores com o archote da fé nas
mãos, clareando nossos passos, e mesmo que
trôpegos e cambaleantes, ajudemos, sem cessar,
sem pedir nada em troca, apenas iluminando o
caminho do próximo mais sofrido com a Luz dos
ensinamentos do Cristo e da Doutrina Espírita.
1 Francês:
rien ne forme un jeune homme comme une liaison
avec une femme comme il faut (tradução: nada
forma tão bem um jovem como uma relação com uma
mulher decente).
Referências:
TOLSTOI, L. Uma confissão.
São Paulo, editora Mundo Cristão, 2017.
TOLSTOI, L; PEREIRA, Yvonne A. Ressurreição
e vida. Rio de Janeiro, Federação
Espírita Brasileira, 2ª ed., 2005.