O Nezinho é que era feliz!
Lembro-me de um rapaz muito humilde e ingênuo que
prestava serviço de limpeza e manutenção na Companhia em
que eu trabalhava. O prédio tinha muitos andares, com
uma das laterais toda envidraçada. A cada certo período,
os vidros precisavam ser limpos. Então o Nezinho (era
esse o seu nome) aparecia, com todos os equipamentos de
segurança atrelados ao corpo magro, se pendurava nas
cordas e vinha, de lá de cima, descendo e fazendo o seu
trabalho. Todos gostavam do Nezinho e riam muito com
ele. Espirituoso, sem ser galhofeiro, sua marca
proverbial nas conversas era a frase “Não tem talvez”,
que usava tendo ou não motivo. Era uma forma de dizer
que estava lá, pronto pra tudo.
Levinho e brincalhão, batia com o calcanhar da bota de
borracha nos vidros dos andares onde tinha conhecidos e
fazia micagens, enquanto ensaboava e espirrava água nos
espelhos. Numa dessas vezes, rindo da alegria infantil
do Nezinho, um colega de setor filosofou: “Esse é feliz!
Flertando com a morte, ri dela. Nezinho não sofre, por
isso se dá bem com a vida”.
O tempo passou, sabotando muitas das nossas expectativas
e esperanças da época, mas tenho certeza de que dando
também boas respostas aos esforços de todos os que
trabalhávamos naquela empresa e que éramos amigos do
Nezinho. E hoje, lembrando daquela figurinha simpática e
destemida, me ocorreu escrever algumas reflexões.
O “colega filósofo” estava certo em sugerir que as
pessoas simplórias, iletradas, crédulas, sofrem menos? O
espírito rude, sem malícia, pouco adiantado se choca
menos com a realidade adversa, e por isso tem menos
consciência do sofrimento? Em que medida o espírito
ingênuo relaciona o sofrimento com suas causas e a
necessidade de eliminá-las?
Acredito que um espírito com estas características se espanta pouco
porque percebe menos. Não compreende intelectualmente
muitas das situações que vive, e que ficam assim sem
reflexão, sem avaliação. Sua natureza em desenvolvimento
não se surpreende com a mesma eficiência dos
Espíritos mais adiantados. Por isso seu nível de
reivindicação perante a vida é insatisfatório e confuso,
e busca para si quase que exclusivamente o que satisfaça
às suas necessidades imediatas. Sob a ótica da evolução,
não é um espírito mau, apenas caminha mais lentamente.
Observando-se bem, é possível identificar nas pessoas
mais simples virtudes suaves que dão conta da alegria,
da confiança e de um jeito humilde de não se magoar.
Possivelmente, o maior segredo da vida seja o avançar
lento, gradual, imperceptível, das faculdades remotas do
Espírito. Estas estão incrustradas nele, recebendo os
golpes reativos das suas ações externas a princípio, e
internas com o passar intermitente do tempo. Mais
evoluído ou menos, do ponto de vista da convivência
humana, é uma condição um tanto abstrata neste mundo, já
que há ingênuas criaturas capazes de rir da própria dor,
enquanto mentes lúcidas se inebriam com a dor alheia.
O Nezinho era um menino bom, e sob vários aspectos, acho
sim, que ele é que era feliz...
Fonte de reflexão:
Allan
Kardec, O Livro dos Espíritos, livro segundo:
Mundo Espírita ou dos Espíritos, capítulo I; Escala
Espírita.
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