Sobre o prazer e o pecado, um pensamento
de Kardec
Dentre os diversos comportamentos que realizamos no dia
a dia, alguns deles se identificam com um impulso
interior surgido seja de necessidades corporais, seja de
forças instintivas mal conhecidas. Esse “impulso
interior” se chama motivação e os atos que ele
provoca chamam-se comportamentos motivados. Os
estados motivacionais criam uma espécie de tensão (às
vezes até um desconforto) que dispara a execução de uma
sequência de comportamentos dirigidos ao objetivo de
dissipar a tensão e o desconforto iniciais. Via de
regra, ao dissipar a tensão, esses comportamentos causam
prazer. A fome é um dos estados motivacionais (gera
tensão e desconforto), enquanto o ato de comer é um dos
comportamentos motivados provocados por ela (gera
prazer).
Os neurocientistas reconhecem três classes de estados
motivacionais. [i] A
primeira é formada por motivações elementares provocadas
por forças fisiológicas bem definidas e garantem a
sobrevivência do indivíduo em seu ambiente. Fazem parte
dessa classe de motivações elementares o frio e o calor,
que nos fazem vestir um casaco ou ligar o ventilador, a
ingestão de líquidos em decorrência da sede e a ingestão
de alimentos, consequente da fome.
A segunda classe de motivações está ligada à
sobrevivência não do indivíduo, mas da espécie. É o caso
do sexo. Ao contrário dos anteriores, não está
relacionado a nenhuma carência interior. Bem diferente
do que se acreditava no passado, não se pode detectar um
déficit orgânico que cause um impulso sexual. [ii] A
tensão sexual surge a partir de estímulos visuais,
auditivos, táteis ou decorrentes de pensamentos ou
memórias que “ativam” centros neuronais do hipotálamo.
Assim, pode-se considerar que a resposta sexual humana
constitui um conjunto de modificações fisiológicas que
ocorrem após estímulos sexuais positivos. A tensão
sexual gerada por esses estímulos pode, ou não, se
acompanhar de um comportamento sexual. [iii]
A terceira classe está ligada ao nosso bem-estar
psicológico, como sentir-se seguro, valorizado,
benquisto, ou inserido em uma comunidade. Para isso,
estudamos, trabalhamos, compramos livros, fazemos
esportes e atuamos em partidos políticos, organizações
comunitárias ou centros espíritas.
Podemos, a partir desses conceitos básicos, refletir
sobre o prazer e o pecado. Vamos
considerar prazer como uma sensação de satisfação
ou bem-estar que surge em decorrência da satisfação de
uma vontade, uma necessidade ou do exercício harmonioso
das atividades vitais, e pecado como
atitudes eticamente reprováveis, que causam prejuízo
para nós mesmos e para os outros.
Destacamos, a respeito do tema, o seguinte pensamento de
Kardec: Deus não condena os gozos terrenos; condena,
sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da
alma. [iv]
É contundente a afirmação de Kardec: Deus não condena os
gozos terrenos! E não poderia ser de outra forma: foi
Deus, através da evolução biológica e espiritual que fez
com que diversos comportamentos humanos se tornassem
prazerosos. Não poderia Deus condenar o que Ele próprio
criou: o prazer de um copo de água fresca quando temos
sede, de uma refeição quentinha quando temos fome, da
segurança do lar, da intimidade sexual com a pessoa
amada, ou do sentir-se querido e valorizado pela
comunidade em que estamos inseridos. Todas essas
condições são respostas prazerosas a condições prévias
que, de uma forma ou de outra, se tornaram “necessárias”
em algum momento. E por que Deus/evolução as fez
prazerosas? Exatamente porque são necessárias à nossa
sobrevivência, à sobrevivência de nossa espécie e ao
nosso bem-estar subjetivo. Se não fossem prazerosas,
poderiam ser negligenciadas, comprometendo o plano
divino do progresso pessoal e coletivo.
No entanto, ao mesmo tempo em que Kardec ratifica a
ideia de que nada tem de pecaminoso o usufruto prazeroso
dos bens da Terra, o codificador alerta quanto ao abuso,
o excesso e o desequilíbrio: Deus condena o abuso desses
gozos em detrimento das coisas da alma. Que são coisas
da alma? A vida plena (em abundância, como disse
Jesus), a paz, a saúde mental, a ausência de dor e
angústia, o conhecimento e a sabedoria, a serenidade e a
calma. Todas as vezes em que a busca do prazer extrapola
os limites da funcionalidade e compromete negativamente
os valores do espírito, torna-se “pecaminosa”, porque
disfuncional, carreando consigo sofrimento a nós mesmos
e àqueles que convivem conosco.
Nosso prazer não pode ser fonte de sofrimento... para
nenhum ser vivo. Penso que seja isso o que nosso
codificador quis dizer.
[i] Cem
bilhões de neurônios, Robert Lent, cap. 15.
[ii] Cem
bilhões de neurônios, Robert Lent, cap. 15.
[iii] Neuropsicofisiologia
do desejo sexual: alguns aspectos da regulação
funcional da motivação sexual, Symone Lopes
Francelino Gonçalves Silva, monografia do curso
de pós-graduação em neurociência da UFMG, 2011.
[iv] ESE,
cap. 2, item 6.
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