Fome, sistema econômico e exclusão
O filósofo, professor e escritor Mário Sérgio Cortella,
em palestra gravada em vídeo no ano de 2019, narra um
episódio ocorrido 30 anos antes entre ele, alguns
colegas e dois caciques da tribo xavante, que estavam
visitando a cidade de São Paulo pela primeira vez. O
primeiro local da visita era o Mercado Municipal, onde
os clientes e visitantes encontram uma variada gama de
frutas, verduras, legumes, importados, massas, peixes,
aves, frutos do mar, doces variados... Uma abundância de
comida num prédio histórico de 12.600m² que também
abriga um espaço gastronômico no qual se pode provar
variadas iguarias. O objetivo de Cortella e equipe era
mostrar aos dois índios algo que eles nunca haviam
visto: comida acumulada. Afinal, índios não estocam
comida. Eles plantam, colhem, caçam e pescam.
Os caciques ficaram estupefatos ao verem tanta comida e
começaram a andar por todo o local, sempre acompanhados
pelos cicerones. De repente, um deles viu algo que
ninguém havia visto. Uma cena corriqueira para nós,
cidadãos urbanos, mas que chamou a atenção de quem não
está acostumado a transitar pelos contrastes sociais das
cidades grandes. O índio havia visto uma criança pobre,
negra e maltrapilha pegando comida do chão.
– O que ele está fazendo? – Indagou o cacique. Ninguém
do grupo havia registrado, até então, a presença do
menino. Tanto que um deles questionou o cacique: – Ele
quem? O xavante, então, apontou para a criança, que
recolhia, do chão, tomates amassados, batatas
estragadas, alfaces pisadas e afins. A resposta ao
xavante foi terrivelmente óbvia: – Ele está pegando
comida.
O ilustre visitante nada disse, e a visita ao Mercadão
continuou. Quinze minutos depois, ele voltou ao assunto:
– Eu não entendi. Por que ele está pegando comida
estragada com tanta pilha de comida boa? Cortella
retrucou dizendo que, para pegar comida das pilhas, era
preciso ter dinheiro, algo que o garoto não tinha. – Por
que ele não tem dinheiro? – Insistiu, para incômodo de
Mário Sérgio e equipe, que estavam sendo cutucados na
compreensão ética que nós, urbanoides da sociedade de
consumo, temos da vida coletiva. – Ele não tem dinheiro
porque é criança. – Redarguiu o professor. – E o pai
dele tem? – Questionou novamente o xavante. – Não. O pai
dele não tem dinheiro.
Inconformado, nosso herói da tribo foi mais fundo: – Por
que você come dessa pilha de comida boa e ele come
comida estragada? A única resposta possível que
Cortella encontrou foi a seguinte: – É que aqui, é
assim!
Foi demais para os índios, que moram em tribos onde não
há crianças desamparadas e famintas. Eles pediram para
ir embora; não do Mercado Municipal, mas da cidade de
São Paulo. Não quiseram ver mais nada porque não
conseguiram compreender por que uma criança com fome,
diante de pilhas de frutas, legumes e verduras frescas e
fartas, é obrigada a se alimentar de comida estragada
apanhada do chão. Depois eles é que são selvagens!
O professor Mário Sérgio Cortella termina a narrativa
ressaltando que eles entenderiam o funcionamento do
mundo capitalista em que vivemos se tivessem nascido em
nossas famílias, frequentado nossas escolas e templos
religiosos, assistido aos programas da TV... Aí, quando
passassem por uma criança pegando tomate pisado do chão,
achariam normal, como nós achamos.
Ele, então, arremata: – Não é normal gente ter fome! Não
é normal gente não ter socorro médico e trabalho! Isso
não pode ser tido como normal. Senão, a gente aceita o
falecimento da esperança.
Temos, nesse episódio, uma situação que transita entre o
absurdo, o banal e o revoltante. É de fato absurdo que,
diante de tanta comida, uma criança tenha de pegar o que
está no chão para tentar se alimentar. Digo “tentar”
porque não há como ter uma alimentação saudável com
comida pisoteada, amassada ou estragada. Banal porque a
gente se acostuma com esse tipo de situação. Nosso olhar
passa a achar tudo normal. É normal que haja corrupção,
que tanta gente morra de fome, dengue, Covid, bala
perdida ou bala encontrada. A miséria, a violência, a
falta de acesso à educação e à saúde de qualidade passam
também a ser banais. Idem no tocante à deturpação dos
fatos por meios de comunicação comprometidos com os
grandes investidores, empresários e rentistas... Nosso
olhar vai sendo anestesiado e passamos a viver com o
trágico como se ele fosse parte da paisagem. Por isso,
uma criança pegando do chão um alimento ruim deixa de
nos sensibilizar e mobilizar. É a banalidade do mal,
teoria desenvolvida pela filósofa alemã Hannah Arendt.
Por fim, é revoltante porque sabemos que o problema da
fome no mundo não tem a ver com carência na produção de
alimentos, mas sim com o sistema político e econômico em
que estamos inseridos.
Em palestra virtual promovida pelo coletivo Espíritas à
Esquerda, Thiago Lima, coordenador do grupo de pesquisa
sobre fome e relações internacionais da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), tece sérias considerações
acerca de como o sistema capitalista interfere na
questão da fome. Segundo ele, tornar as pessoas
vulneráveis à fome é fundamental para que a roda do
capitalismo gire. É o popular “Quem não trabalha, não
come”. De acordo com a cartilha capitalista, para que
tenhamos alimento (e também moradia, roupas etc.) É
preciso que trabalhemos, ou seja, coloquemos a nossa
força de trabalho a serviço das engrenagens que movem
este mundo de finanças, lucros e consumo. Se o indivíduo
não trabalha, não possui renda. Por conseguinte, não
terá acesso a alimentos. Dessa forma, para que não passe
fome, a pessoa é impelida a trabalhar. Muitas vezes, a
aceitar qualquer tipo de trabalho, isto é, mal
remunerado, insalubre, além do tempo oficialmente
estipulado, psicologicamente extenuante, repetitivo e
que nem sempre aproveita os reais talentos e aptidões
que o ser humano possui. Mas como a necessidade de levar
comida para dentro de casa e o medo de passar fome falam
mais alto, o trabalhador se submete a uma rotina que irá
desgastá-lo e favorecer mais ao patrão do que a ele, na
grande maioria dos casos. Se porventura o pai ou a mãe
(ou ambos) não conseguir trabalho (seja por baixa
qualificação, carência de vagas etc.), os filhos também
sentirão o efeito.
Há outros agravantes no fato acontecido no Mercado
Municipal de São Paulo. De acordo com o exposto por
Thiago Lima, a fome brasileira tem caracteres bem
definidos. Ela tem raça, gênero e endereço. Em primeiro
lugar, ela é maior no Nordeste e no meio rural. Por
isso, tanto êxodo das populações interioranas para
cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. O pequeno
agricultor de outrora, devido à seca, à miséria e ao
poderio dos grandes latifundiários que sufoca o pequeno
produtor, acabou migrando para o Sudeste. A fome também
é maior nos lares governados por mulheres, fato
corriqueiro no Brasil, onde mães solteiras ou
abandonadas pelos parceiros se veem impelidas a
sustentar várias bocas. Por fim, a fome atinge
predominantemente as pessoas da raça negra devido ao
histórico de escravidão e exclusão social que nossos
irmãos trazidos à força da África sofrem. Todos esses
fatores convergem para pesar sobre os ombros da criança
que cata comida do chão. Somam-se a esses agravantes o
fato de o menino provavelmente estar sozinho no
Mercadão. Não se sabe se ele tem endereço fixo, com quem
mora ou se dorme pelas ruas. E também entra nessa triste
conta de somar a grande probabilidade de ele não estar
frequentando regularmente a escola. Em suma: se ele não
fosse vítima de um macabro efeito dominó que o colocou
numa situação de alta vulnerabilidade social, estaria no
aconchego do lar, devidamente alimentado, asseado e indo
às aulas todos os dias.
Vou incluir o agravante espiritual na questão. No livro
“A Constituição Divina”, o escritor espírita Richard
Simonetti tece importantes considerações acerca da
influência da injustiça social no processo
reencarnatório. Primeiramente, Simonetti salienta que, à
primeira vista, tem-se a ideia de que, nas camadas mais
pobres, há “uma incidência significativa de indivíduos
sem iniciativa, inspirando-nos a impressão de que, nesse
vasto segmento da população, em países subdesenvolvidos,
localizam-se espíritos primitivos”. Em seguida,
questiona: “São espíritos primitivos ou estamos diante
de problemas decorrentes da própria situação em que se
encontram? Até que ponto o espírito de mediana evolução
conseguiria superar condicionamentos psicológicos e
culturais impostos pela pobreza?”
Trocando em miúdos: se um espírito de mediana evolução
como nós se defrontar com subnutrição pobreza e parco
acesso à saúde, lazer e educação nos primeiros anos de
vida na Terra, dificilmente as leis biológicas serão
contrariadas. Ele ou ela será alguém com fraca estrutura
orgânica, dificuldade de aprendizado, déficit de atenção
e, em muitos casos, revolta.
Ouço muitos espíritas dizerem que as agruras sociais
pelas quais passam os menos favorecidos são consequência
de erros cometidos em vidas passadas. Foram nobres ou
milionários que esbanjaram fortunas, maltrataram pessoas
e agora se veem às voltas com a penúria para pagarem o
que deve. Dado o imenso contingente de homens, mulheres
e crianças que passa fome, morre de doenças curáveis e
não tem acesso nem a água potável no mundo, é impossível
que todo esse povo tenha sido nobre ou rico. Haja título
de barão, duquesa e dinheirama sendo esbanjada para dar
conta de tanto miserável reencarnado! Isso soa a um
desculpismo comodista, típico de quem se recusa a ter
olhos de ver a real questão: muita gente está às voltas
com a miséria porque estamos estruturados num sistema
socioeconômico que não faz questão de dar conta das
necessidades de todos e, ao mesmo tempo, se esmera para
que poucos acumulem grande parte da riqueza que o
planeta produz.
Na questão 930 de “O Livro dos Espíritos”, o plano
espiritual deixa claro: “Numa sociedade organizada
segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.”
Não estamos, portanto, estruturados conforme preconizam
a justiça, o amor e a caridade. Se nos organizássemos de
forma “criteriosa e previdente”, como também alerta a
citada questão, não haveria crianças à cata da xepa dos
mercados e feiras livres. E também não haveria êxodo
rural, latifundiários massacrando camponeses, populações
esquecidas em barracos de periferia... Tudo resultado do
meio injusto que fomos construindo e que temos de
começar a desconstruir para que “uma ordem social
fundada na justiça e na solidariedade”, como também
afirma a 930, se faça presente para que todos nós
aprendamos a ser bem melhores do que somos.
Trata-se de um processo longo e trabalhoso, que exigirá
de nós sérias tomadas de decisões para que o mundo, como
o conhecemos, venha abaixo e surja, por meio da nossa
própria iniciativa, uma sociedade bem melhor do que esta
que nega às pessoas o acesso a alimentos e tantos outros
itens.
Bibliografia:
1- CORTELLA,
Mário Sérgio – Caciques xavantes em São Paulo: para
acessar clique aqui
2- KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1986,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
3- SIMONETTI,
Richard. A Constituição Divina. Gráfica São João,
2ª Ed., 1989, Bauru, SP
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