A vigilância e o olhar do alto
“Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na
verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.” -
Mateus (26:4)
Para alcançar as grandes realizações e a se manter
constante e disciplinado no estudo e no trabalho é
preciso vigilância incessante. “Esteja preparado”, como
diz o lema do escotismo. Todavia, percebe-se a
dificuldade de tal proeza apesar da importância. São as
distrações e correrias do dia a dia, os deadlines de
entrega, os eventos e reuniões inesperadas que ocorrem,
as inclinações pessoais e valores que destoam da boa
conduta. Mais do que um ato distinto e separado como um
grande projeto, a vigilância parece se coadunar com as
atividades cotidianas. Desta forma, torna-se oportuno
uma apreciação sobre o tema pelas pessoas e filósofos da
Antiguidade, pois eles sabiam muito bem que não é
possível evitar as tentações. Elas são inerentes à
própria vida. Todavia, é possível se preparar para as
provações para sair delas não apenas fortalecidos, mas
vitoriosos sobre as próprias imperfeições e inclinações
passadas. As tentações e provações como importantes
provas e lições de superação dentro do educandário do
mundo.
A vigilância dos atos e pensamentos, ações e escritas
era algo não distante da realidade na cultura antiga e
era valorizada, mesmo em tradições filosóficas distintas
como é o caso dos socráticos, estoicos, os epicuristas
e, principalmente, os cínicos. Justamente nestes
últimos, ganha destaque a questão da vigilância. Para
Pierre Hadot, a quem a filosofia antiga tinha a
pretensão de ser formação de caráter ao invés de mera
informação, a palavra grega episkopos (vigia)
designava os filósofos cínicos que observavam
atentamente e denunciavam a maneira insensata de viver
do indivíduo comum. “O cínico denuncia a loucura dos
homens que, ao esquecerem a morte, se apegam
apaixonadamente a coisas - luxo e poder - que eles serão
inexoravelmente obrigados a abandonar[1]”.
Esta transitoriedade da vida e a pequenez do indivíduo
frente ao universo pode ser enfrentada com mais
propriedade por meio do preparo do ser por meio de
diferentes exercícios cotidianos, dentre os quais
destacam-se os exercícios de ‘olhar do alto'. Em muito
sentido, guarda proximidade com o destaque do
evangelista Marcos sobre o “olhai, vigiai e orai[2]”.
Para Emmanuel[3],
seria incompleta a lição da vigilância sem a devida
atenção ao olhar. (11)
A atividade de ‘olhar do alto’ representava mais do que
uma mera atividade de postura, mas de contemplação e de
posicionamento da pessoa frente ao universo e a si
mesmo. Complementarmente, “o olhar superior liberta do
ponto de vista individual, parcial e limitado[4]”.
Os antigos exerciam tal atividade de olhar do alto, seja
por meio da subida para um lugar elevado, seja pelo
transporte através da imaginação de olhar de cima a
imensidão da paisagem, da Terra e do universo. Olhar do
alto é uma maneira de não esquecer do que é importante e
a de vigiar e zelar pelo que realmente importa e tem
valor na eternidade. Com o tempo, a atividade de olhar
do alto tornava-se parte do ser e do seu processo de
educação, o que significava menor probabilidade de ‘cair
em tentação’. Para tanto, tais treinamentos ou
exercícios de olhar e manter a vigilância constante
poderiam ser feitos ou expressos de diversas maneiras,
tais como: topo de montanhas, pássaros, balões, viagens
espaciais, poesia.
Os topos de montanhas representam lugares que fascinam
não apenas quem os alcança, mas também para quem
contempla toda a sua imensidão, grandiosidade e paz.
Neste ponto, as montanhas servem não apenas de metáfora
para a ascensão do ser, mas também de inspiração e lição
de vigilância. Não é por acaso que o Sermão dos Montes
guarda lugar especial nos ensinamentos do mestre
Nazareno. Não apenas o conteúdo das bem-aventuranças,
mas também o próprio ambiente guarda lições em si.
Na antiguidade, também os pássaros serviam como
inspiração para olhar do alto. A capacidade de olhar
além e de estar sempre atento faz dos pássaros símbolo
de liberdade e conquista, tal como a pomba de Noé ou o
Deus Hórus do Egito com sua cabeça de falcão. Olhar e
discernir com precisão faz parte do processo de
vigilância. Ver além dos véus da ilusão ou do caos da
correria do dia a dia.
Mais recentemente, voos de balões ou mesmo uma viagem
aérea em voo comercial faz com que tenhamos a
oportunidade de contemplar a mudança do ponto de vista e
de perceber como uma cidade ou uma casa se transformam
em pequenos pontos ou formas geométricas díspares.
Nisso, vem a loucura denunciada pelos filósofos cínicos
de que muitas pessoas brigam por propriedades físicas
que, vistas do alto, transformam-se em minúsculos
pedaços coloridos de chão. De maneira ainda mais forte e
retumbante, vêm os depoimentos de astronautas que
fizeram viagens espaciais e que perceberam a pequenez do
próprio planeta Terra frente ao universo. A Terra não
como o limite do universo, mas como ponto ínfimo que faz
relembrar no ser humano a necessidade urgente da
humildade para com o desconhecido e de reverência à
grandiosidade de Deus. Não é possível olhar para o
espaço sem sentir certo deslumbramento frente à riqueza
e possibilidade de conquistas. É o ponto de oximoro
entre uma consciência cósmica e a consciência moral do
ser. A grandeza e a potencialidade do Criador com a
pequenez do ser humano que, ao mesmo tempo, participa
como cocriador e herdeiro. De certo modo, tal situação
nos remete à célebre frase de Kant: “Duas coisas
preenchem a alma de uma admiração e de uma veneração
sempre novas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
em mim[5]”.
Por último, mas não menos importante, a poesia guarda
esta capacidade de exercitar o olhar do alto. O poeta é
aquele que usa a imaginação e inspiração para “voar” por
cima dos problemas e da situação e de olhar com
admiração e contemplação a questão. É estar sobre ombros
de gigantes! Para o escritor alemão Goethe, a poesia
representava o evangelho profano; uma boa nova por meio
das palavras que inspiram e operam na busca e
contemplação da beleza:
A verdadeira poesia se reconhece pelo fato de que, como
um evangelho profano, é capaz de nos livrar dos pesos
terrestres que nos oprimem, porque nos proporciona a um
só tempo a serenidade interior e o prazer exterior. Como
um balão inflado de ar, ela nos eleva junto com o lastro
atada a nós às regiões superiores e, graças a ela, os
inextricáveis labirintos terrestres se desenlaçam sob
nosso olhar, que os vê do alto[6].
Manter-se conectado com o alto e com os valores
superiores representavam para os antigos uma maneira de
educação dos hábitos e treino da vigilância. Assim
haveria menor probabilidade de desvios do caminho ou de
esquecimento dos compromissos assumidos com o Alto. Além
disso, possibilita educar os comportamentos voltados
para simplicidade, humildade e mansidão. Em certo
sentido, é uma maneira de praticar a lição deixada pelo
apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso: “Mantenham o
pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas[7]”.
Uma vigilância que se torna cada vez mais natural e
inerente do próprio ser devido ao alinhamento com as
próprias vontades e deveres do alto. Em outras palavras,
uma identificação com Deus e desidentificação com o
mundo material e transitório. Estar no mundo sem ser do
mundo[8].
Uma vigilância que torna coerente e produtivo tanto o
reino interior quanto o exterior. Não apenas errar
menos, mas fazer mais e aproveitar as oportunidades.
Contemplação e ação, união e independência, sabedoria e
amor para o devido cultivo do ser no jardim de Deus.
Nas sábias palavras de Tiago: “Feliz é o homem que
persevera na provação, porque depois de aprovado
receberá a coroa da vida, que Deus prometeu aos que o
amam[9]”. [10]
[1] Hadot, P. (2019).
Não se esqueça de viver: Goethe e a tradição dos
exercícios espirituais. São Paulo: É Realizações
Editora, p. 71.
[2] Marcos, 13:33.
[3] Emmanuel (2011).
Vinha de Luz. Rio de Janeiro: FEB, Cap. 87. “Olhai”, p.
189.
[4] Hadot, 2019, pp.
145-6.
[5] Kant, citado por
Hadot (2019, p. 94).
[6] Goethe, citado por
Hadot (2019, p. 83).
[7] Colossenses 3:2.
[8] João, 15:19.
[9] Tiago 1:12.
[10] Artigo escrito em
homenagem à minha querida e saudosa mãe, Ioko Ikefuti
Hayashi, um verdadeiro exemplo de vigilância e ação na
vida.
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