A horizontalidade e a
verticalidade da fé
No capítulo XIX de O Evangelho segundo o
Espiritismo, Kardec trata da fé cega
contraposta à ideia de fé raciocinada, trazendo
esse conceito novo e basilar para a doutrina
espírita, ainda que tão incompreendido. Apesar
das dificuldades do trato dessa ideia, ela é
essencial para se navegar na sociedade do
conhecimento em que vivemos.
Comecemos pela fé cega. Segundo Kardec: “A fé
cega, nada examinando, aceita sem controle o
falso e o verdadeiro, e se choca a cada passo
com a evidência da razão. Levada ao extremo, ela
produz o fanatismo. Quando a fé se firma no
erro, ela desmorona cedo ou tarde. A que tem por
base a verdade é a única com futuro assegurado,
porque nada deve temer do progresso do
conhecimento, já que o que é verdadeiro na
obscuridade também o é à plena luz”.
O codificador, na aurora de uma sociedade
tecnológica que já despontava, traz a
necessidade de uma fé que pudesse conviver com
aquele mundo novo, sem perder os benefícios
desta para a nossa vida, em especial em uma
dimensão espiritual. Há uma percepção nítida nos
escritos de Kardec, diante dos conhecimentos
trazidos pelos Espíritos, de que ter fé é uma
necessidade humana importantíssima.
Pode parecer uma contradição essa ideia de fé
raciocinada trazida nesta obra, pois a fé é o
absoluto, o transcendente, que existe exatamente
para suprir o inexplicável. Mas, Kardec, de
forma engenhosa, propõe que a razão tempere essa
necessidade humana, para prevenir os prejuízos
do seu excesso, quando então ela se faz cega.
A fé cega é vertical, de cima para baixo; se
pauta em argumentos de autoridade. Não aceita
críticas, dúvidas, questionamentos. Trata de
livros sagrados, de palestras unidirecionais,
focada no conteúdo e na hierarquia. Busca a
letra que mata. Contempla gurus e detentores da
interpretação oficial.
A fé raciocinada, a seu turno, tem um caráter
horizontal. Convive com o debate; se pauta na
construção do conhecimento e tem espaço para a
pesquisa. Vive bem em grupos de estudos,
buscando os conceitos e a sua aplicação às
diversas situações da vida. Sabe se adaptar
quando surge o novo, o que a torna forte ao
longo do tempo. Faz sentido em uma rede de
pessoas, de forma plural.
O conceito de fé raciocinada é moderno e
libertador, resgatando uma espiritualidade que
conviva com uma sociedade que preze o
conhecimento e a pluralidade, mas que ao mesmo
tempo exige dos fiéis uma maturidade de sair da
verticalidade do poder concentrado para a
horizontalidade da rede.
O Século XXI demanda uma fé raciocinada, mas a
fé cega campeia, ocupando espaços nas práticas e
discussões, inclusive no Espiritismo, com
reflexos de fanatismo e fundamentalismo. Talvez
a lição mais complexa do Espiritismo seja essa
mediação do absoluto do crer, que trata do
sentimento, com o racional dos fatos e
evidências, em uma fusão que pode parecer de
líquidos imiscíveis, mas que é possível se obter
construções interessantes, como nos mostra a
prática espírita.
Remetendo ainda a Kardec: “A fé raciocinada,
que se apoia nos fatos e na lógica, não deixa
nenhuma obscuridade: crê-se, porque se tem a
certeza, e somente estamos certos se
compreendemos. É por isso que ela não se dobra,
pois a fé inabalável é somente aquela que pode
encarar a razão face a face em todas as épocas
da Humanidade. É a este resultado que o
Espiritismo conduz, triunfando assim sobre a
incredulidade, todas as vezes em que não
encontra oposição sistemática e interessada”.
Como se vê, o adjetivo raciocinada é uma forma
de mediação das mazelas da fé cega. Fica então a
questão de que talvez a fé raciocinada seja algo
impossível de se alcançar plenamente, mas é
importante identificar e limitar a fé cega, faca
amolada que corta o espírito de fraternidade e
caridade com poder e opressão.
Passados mais de 150 anos, a discussão
apresentada por Kardec de uma nova forma de
lidar com o transcendente, que fosse ancorada em
lógica e em evidências em alguma medida,
mediando a verticalidade da autoridade com a
horizontalidade da construção, se faz cada vez
mais necessária, e nós, espíritas, ainda temos
encontrado dificuldade de lidar com esse antigo
e moderno conceito. Uma reflexão mais do que
urgente.