“Quero saúde para a minha mãe”
Estávamos próximos do Natal. Os últimos dias daquela
primavera eram deliciosos, com bastante sol e todo o
tempo disponível para nossas brincadeiras de criança.
Uma das distrações de que mais gostávamos, depois do
futebol e dos mergulhos na lagoinha, era colecionar
figurinhas. Sempre dávamos um jeito de arranjar
dinheiro, ir na banca de jornais e comprar os pacotinhos
que podiam trazer surpresas incríveis, se tivéssemos
sorte.
Abrir os envelopes era um ritual cheio de impaciência.
Destroçávamos as embalagens na ansiedade de encontrar os
cromos carimbados que davam prêmios. Soubemos que o
primo não sei de quem havia ganho um “jogo de chá”.
“Será, você viu?”.
Nossa idade não compreendia ainda os sedutores jogos
comerciais do “capitalismo”, que tira muito e dá quase
nada, mas a ingenuidade infantil nos fazia acreditar que
era possível ganhar.
Certo dia, um dos meus amigos comprou uma caixa fechada
com 500 pacotinhos. Um delírio. Pediu minha ajuda para
abri-los, um a um. O monte de figurinhas e embalagens
crescia e nada de “carimbada”. Devassamos a caixa e só
encontramos decepção.
Meu amigo se fechou em si mesmo, se encorujou encostado
à mureta do terraço, e eu achei que ele estava triste
por ter gasto o dinheiro inutilmente. Também frustrado,
me associei a sua depressão fechando a cara.
Incomodado com a situação chata que se arrastava,
imaginei quebrar o silêncio de alguma forma. Já que o
Natal estava chegando me ocorreu perguntar: “O que você
quer ganhar no Natal?” Ele levantou a cabeça – vi que
seus olhos estavam molhados – e disse, num tom de voz
que jamais esqueci: “Quero que Deus dê saúde a minha
mãe”.
Sua mãezinha, presa a um cilindro de oxigênio, estava
deitada no quarto ao lado, doente dos pulmões.
Creio que esta foi a primeira grande lição que tomei na
vida sobre a relação amor e dor. O amor de um filho pela
sua mãe, e a dor da impotência infantil frente a um
golpe do destino. Não sabia como me solidarizar com o
seu sofrimento, mas compreendi com muita lealdade que
não gostaria de estar no seu lugar. Me lembrei da minha
mãe e das dos outros meninos, todas saudáveis. Pensei em
como seria não se ter a mãe por perto. Tive dó do meu
amigo, sofri com ele. Alguns meses depois sua mãe
faleceu.
Nossa amizade perdura até os dias de hoje. Lembrando
agora daquele momento pungente, guardo a certeza de que
não é necessário passar pela dor para aprender com ela.
O sofrimento alheio pode nos ensinar muito. Com o tempo
vamos desenvolvendo em nós o amor solidário, a ponto de
distinguirmos na dor do outro o que possa ir além de uma
simples frustração da vida.
|