O
problema
do Eu
Na questão 913 de O Livro dos Espíritos, Allan
Kardec interroga a espiritualidade: “Dentre os vícios,
qual o que se pode considerar radical? -Temo-lo dito
muitas vezes: o egoísmo. Daí deriva todo mal. Estudai
todos os vícios e vereis que no fundo de todos há
egoísmo. Por mais que lhes deis combate, não chegareis a
extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela raiz,
enquanto não lhe houverdes destruído a causa. Tendam,
pois, todos os esforços para esse efeito, porquanto aí é
que está a verdadeira chaga da sociedade. Quem quiser,
desde esta vida, ir se aproximando da perfeição moral,
deve expurgar o seu coração de todo sentimento de
egoísmo, visto ser o egoísmo incompatível com a justiça,
o amor e a caridade. Ele neutraliza todas as outras
qualidades”.
É muito comum, inclusive, nas rodas de conversa, uma
disputa para ver qual “eu” tem mais, seja lá o que for.
Não importa o tema, queremos sempre estar na frente da
fila. Se alguém fala que teve um dia difícil, o outro
logo destaca que o dia dele foi muito pior. “Passei
necessidades”; “Passei fome, isso não é nada”. - diz o
outro. “Tenho dor de cabeça”; “Pois eu tenho um tumor”.
E quando alguém reclama de sua vida e, mesmo depois de
ouvirmos calmamente, e convidarmos a pessoa que nos
procurou para uma conversa com reflexão: “você tem
razão, a nossa vida é difícil. Mas há tantas pessoas que
sofrem também de tantas maneiras”. Resposta irritada:
“Mas não estou falando de outra pessoa, estou falando de
mim”.
A ideia de que somos o centro do universo, o modelo a
ser copiado por todos, está tão nefastamente viva em nós
que encontramos negros que pensam que existem dois tipos
de negros. Um que deve ser respeitado e idolatrado, o
negro tipo A, e um outro que merece a discriminação.
Encontramos homossexuais que criticam outros
homossexuais por se vestirem e pensarem diferente deles,
como se existissem dois tipos de homossexualidade: “a
minha, como a certa. E a sua, com a errada”. Existem
pessoas que criticam um comportamento no outro sendo que
é o mesmo comportamento que praticam constantemente.
“Ah, mas comigo foi diferente, eu fiz porque ...” Ué,
cadê a coerência?
Muito natural que cada um ache que sua dor é a maior do
mundo, não podemos desrespeitar a dor de ninguém. Mas
será sempre muito natural enquanto estivermos presos ao
“eu”, enquanto não entendermos que Deus é amor, e por
isso mesmo a dor não existe porque Ele estava distraído
e se esqueceu de nos amparar. Enquanto não conseguirmos
entender que vivemos em sociedade e isso não como fruto
do acaso, mas como uma necessidade de nos ampararmos
cotidianamente. Enquanto não conseguirmos entender que a
cura, ou ao menos o alívio para o nosso sofrimento, está
no trabalho em prol de minimizar a dor alheia. Não
somente em dias específicos quando nos candidatamos para
trabalhos voluntários, o que é muito importante. Mas de
nos colocarmos em todas as situações no lugar do nosso
semelhante. Enquanto não entendermos que somos todos
capazes de acertar, potencialmente, e trabalhando esse
potencial como os mais brilhantes Espíritos que passaram
por aqui, e, igualmente, sendo capazes de errar sem o
“orai e vigiai”, ou ainda pode ser que já erramos nesta
ou em outras existências.
Porque na verdade a dor é real, ela existe. Mas o
sofrimento é facultativo, já que depende da maneira de
enxergar a dor. Ela tem a dimensão do Deus que já
conseguimos compreender. A dor pode ser uma inimiga
contra a qual vamos lutar amarguradamente e perder. Ou
uma aliada com a qual vamos caminhar lado a lado em pé
de igualdade, rumo ao nosso crescimento espiritual, até
não precisarmos mais dessa ferramenta. Até que
aprendamos a crescer pelo amor, assim como amar o
trabalho. Que muitas vezes também enxergamos como fonte
de dor e sofrimento.
A sociedade do “eu” é totalmente incapaz de me
proporcionar felicidade. Pois é uma busca solitária em
resolver minha própria vida, meus próprios problemas.
Enquanto a sociedade do “nós” é constituída por esforços
coletivos, portanto, com muito mais ideia e energia em
prol da felicidade de todos. É um conjunto de Espíritos
entendendo que podem se ligar energeticamente pelo
simples fato de se preocuparem uns com os outros. De
seus pensamentos buscarem ideias que serão benéficas a
um grande número de pessoas. Um conjunto de Espíritos
que, por entenderem a importância dessa ligação, não são
capazes de levar vantagem.
Mais uma vez nos utilizando de uma expressão do livro e
do filme A Cabana, podemos afirmar com o respaldo
da doutrina dos Espíritos que, enquanto focarmos apenas
na nossa dor, não podemos ver Deus. E não é possível uma
sociedade digna sem que possa ver e sentir a presença do
seu Criador.