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por Rodinei Moura

 

O problema do Eu


Na questão 913 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec interroga a espiritualidade: “Dentre os vícios, qual o que se pode considerar radical? -Temo-lo dito muitas vezes: o egoísmo. Daí deriva todo mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos há egoísmo. Por mais que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela raiz, enquanto não lhe houverdes destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para esse efeito, porquanto aí é que está a verdadeira chaga da sociedade. Quem quiser, desde esta vida, ir se aproximando da perfeição moral, deve expurgar o seu coração de todo sentimento de egoísmo, visto ser o egoísmo incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Ele neutraliza todas as outras qualidades”.

É muito comum, inclusive, nas rodas de conversa, uma disputa para ver qual “eu” tem mais, seja lá o que for. Não importa o tema, queremos sempre estar na frente da fila. Se alguém fala que teve um dia difícil, o outro logo destaca que o dia dele foi muito pior. “Passei necessidades”; “Passei fome, isso não é nada”. - diz o outro. “Tenho dor de cabeça”; “Pois eu tenho um tumor”. E quando alguém reclama de sua vida e, mesmo depois de ouvirmos calmamente, e convidarmos a pessoa que nos procurou para uma conversa com reflexão: “você tem razão, a nossa vida é difícil. Mas há tantas pessoas que sofrem também de tantas maneiras”. Resposta irritada: “Mas não estou falando de outra pessoa, estou falando de mim”.

A ideia de que somos o centro do universo, o modelo a ser copiado por todos, está tão nefastamente viva em nós que encontramos negros que pensam que existem dois tipos de negros. Um que deve ser respeitado e idolatrado, o negro tipo A, e um outro que merece a discriminação. Encontramos homossexuais que criticam outros homossexuais por se vestirem e pensarem diferente deles, como se existissem dois tipos de homossexualidade: “a minha, como a certa. E a sua, com a errada”. Existem pessoas que criticam um comportamento no outro sendo que é o mesmo comportamento que praticam constantemente. “Ah, mas comigo foi diferente, eu fiz porque ...” Ué, cadê a coerência?

Muito natural que cada um ache que sua dor é a maior do mundo, não podemos desrespeitar a dor de ninguém. Mas será sempre muito natural enquanto estivermos presos ao “eu”, enquanto não entendermos que Deus é amor, e por isso mesmo a dor não existe porque Ele estava distraído e se esqueceu de nos amparar. Enquanto não conseguirmos entender que vivemos em sociedade e isso não como fruto do acaso, mas como uma necessidade de nos ampararmos cotidianamente. Enquanto não conseguirmos entender que a cura, ou ao menos o alívio para o nosso sofrimento, está no trabalho em prol de minimizar a dor alheia. Não somente em dias específicos quando nos candidatamos para trabalhos voluntários, o que é muito importante. Mas de nos colocarmos em todas as situações no lugar do nosso semelhante. Enquanto não entendermos que somos todos capazes de acertar, potencialmente, e trabalhando esse potencial como os mais brilhantes Espíritos que passaram por aqui, e, igualmente, sendo capazes de errar sem o “orai e vigiai”, ou ainda pode ser que já erramos nesta ou em outras existências.

Porque na verdade a dor é real, ela existe. Mas o sofrimento é facultativo, já que depende da maneira de enxergar a dor. Ela tem a dimensão do Deus que já conseguimos compreender. A dor pode ser uma inimiga contra a qual vamos lutar amarguradamente e perder. Ou uma aliada com a qual vamos caminhar lado a lado em pé de igualdade, rumo ao nosso crescimento espiritual, até não precisarmos mais dessa ferramenta. Até que aprendamos a crescer pelo amor, assim como amar o trabalho. Que muitas vezes também enxergamos como fonte de dor e sofrimento.

A sociedade do “eu” é totalmente incapaz de me proporcionar felicidade. Pois é uma busca solitária em resolver minha própria vida, meus próprios problemas. Enquanto a sociedade do “nós” é constituída por esforços coletivos, portanto, com muito mais ideia e energia em prol da felicidade de todos. É um conjunto de Espíritos entendendo que podem se ligar energeticamente pelo simples fato de se preocuparem uns com os outros. De seus pensamentos buscarem ideias que serão benéficas a um grande número de pessoas. Um conjunto de Espíritos que, por entenderem a importância dessa ligação, não são capazes de levar vantagem.

Mais uma vez nos utilizando de uma expressão do livro e do filme A Cabana, podemos afirmar com o respaldo da doutrina dos Espíritos que, enquanto focarmos apenas na nossa dor, não podemos ver Deus. E não é possível uma sociedade digna sem que possa ver e sentir a presença do seu Criador.



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita