O
necessário,
o
supérfluo
e o
desperdício
Na edição 2019 do programa de competição culinária
Masterchef Brasil, a chef Paola Carosella, uma das
juradas, ao passar pela bancada de um participante,
observou que ele havia desperdiçado grande quantidade de
alimento para produzir o prato solicitado. Havia,
portanto, muita carne, legumes etc., que o competidor
simplesmente jogara fora para compor um prato com uma
quantidade bem menor dos ingredientes. Aborrecida, Paola
passou uma descompostura no rapaz. Segundo ela, era um
acinte ele ter desperdiçado tanta comida fresca e de boa
qualidade enquanto muitos passam necessidade. Mesmo
porque, para elaborar um prato de restaurante, um chef
que se preza jamais inutilizaria o tanto de comida que
ele descartou. Paola, então, com a anuência dos outros
dois chefs jurados, disse que, da próxima vez que ele
agisse daquela forma, seria sumariamente
desclassificado. Afinal, o alimento merece respeito!
Paola Carosella sabe do que está falando. Ela é engajada
em várias atividades que visam ao aproveitamento de
alimentos, incentivo aos pequenos produtores,
implantação de cozinhas comunitárias, entre outras
iniciativas. E é proprietária de conceituados
restaurantes, ainda por cima.
A cultura do desperdício de comida é corrente no Brasil.
Talvez pelo fato de vivermos num país rico em produção
de alimentos, dá-se a impressão de que tudo é ilimitado
e se pode esbanjar comida à vontade. É a cultura da
fartura. Só que, quando jogamos comida fora, vão para o
lixo parte da água, do adubo, da ração e dos demais
itens utilizados para que o produto chegasse à nossa
mesa. Descartamos também parte do combustível utilizado
para transportá-lo e, é claro, nosso tão suado dinheiro.
Em 2018, o site de notícias G1 publicou uma reportagem
com dados divulgados em um seminário internacional
realizado em Brasília (DF). Segundo tais estatísticas,
cada brasileiro desperdiça, por ano, 40kg de comida.
Liderando o ranking, aparecem o arroz e o feijão, com
38% do volume que vai para o lixo. A carne vermelha
aparece com 22%, seguida pelo frango: 15%. Já as frutas
e hortaliças aparecem na lista com 4% de desperdício
cada. Para chegar a tais números, foram ouvidas 1,7 mil
famílias de todas as regiões do país e de todas as
classes sociais.
Por que desperdiçamos tanto alimento? Entre os motivos
apontados pelo estudo, estão a já citada cultura da
fartura, a busca pelo sabor e o não aproveitamento das
sobras das refeições (a chamada comida dormida). Por que
dormida? Porque, como já vi acontecer em muitos lares, o
arroz que sobrou do dia anterior é jogado fora para dar
lugar ao arroz fresquinho, feito na hora, que é mais
gostoso, o que também tem a ver com a busca pelo sabor.
O mesmo acontece com o café que sobrou na garrafa
térmica, a salada que ficou meio murcha dentro da
geladeira, as sobras de carne que poderiam virar um
risoto ou uns croquetes, mas são descartadas... Somam-se
a isso o resto de leite que é esquecido dentro da
geladeira, o biscoito que perde a validade sem sequer
ter sido aberto e por aí vai. Isso sem falar nas partes
que jogamos fora porque acreditamos que para nada
servem: talos de verduras, cascas e caroços de frutas,
que podem e devem ser aproveitados! Na internet,
inclusive, há várias receitas de geleias feitas com
cascas de abacaxi, tangerina e afins; bolos à base de
cascas de banana; salgadinhos de sementes de abóbora ou
melão; bolinhos de talos de agrião; entre outros
acepipes que podem servir de refeição para gente que
passa fome – grupo, aliás, bem numeroso no Brasil.
Segundo analistas, se o brasileiro aproveitasse a comida
que sobrou, o bolso sentiria a diferença – e para mais.
O nível de consumo de alimentos seria menor, o que
tenderia a equalizar com a demanda, ou seja, não iríamos
tantas vezes às compras, e os preços tenderiam a baixar.
Isso quer dizer que quanto mais jogamos comida fora,
mais a compramos e maior é a tendência de os preços se
manterem em alta.
Há, no entanto, a faceta economicamente cruel do
desperdício de comida. Reportagem veiculada pelo site G1
em abril de 2018 mostrou uma prática recorrente – e
lamentável – de quem produz alimentos em larga escala:
jogar fora toneladas de frutas, legumes, cereais e
congêneres. Conforme a matéria, produtores rurais do
município de São Gotardo (MG), se desfizeram, em 20
dias, de mais de 400 toneladas de batata. Motivo: o
preço caíra e desmotivara a produção. Não estava valendo
a pena produzir batata para vendê-la a preços reduzidos.
Por isso, o tubérculo, que poderia estar na mesa do
consumidor sob a forma de diversos pratos, estava ao
léu, às margens da rodovia BR 354. A explicação do então
presidente da Associação dos Moradores da Agrovila fala
por si: "Produtor
fica sem graça e alguns plantaram 100, 150 hectares. O
mercado está ruim, a semente, adubo e mão de obra são
caras”.
Não foi a primeira vez e nem será a última que os
veículos de comunicação mostram produtores descartando
alimentos em beiras de estrada. Os excedentes de safra e
a súbita queda de preços de dado produto costumam
resultar em ações desse tipo. Conciliar oferta, demanda
e necessidade é uma conta que precisa ser fechada tendo
como cálculo os fundamentos do amor ao próximo. Haja
sentimento cristão para tanto!
Saindo do desperdício e entrando no terreno do
necessário e do supérfluo – assunto, aliás, muito bem
analisado por Allan Kardec em “O Livro dos Espíritos” –
pergunto: Há necessidade de consumirmos, todos os dias,
refrigerantes, pizzas, salgadinhos, batatas fritas,
cachorros-quentes, empadões, tortas, brigadeiros,
sorvetes e outras tantas gulodices que adoramos? A
resposta mais sensata seria não. No entanto, é comum
preferirmos tais pratos calóricos e gordurosos. Os
motivos podem ser vários. Começam pela falta de hábito
em consumir verduras, frutas e legumes; passam pela
correria do dia a dia, que nos faz optar por comida
industrializada; e caem no prato das crianças e
adolescentes, vítimas potenciais de uma comida que,
propositadamente, é fabricada com sabor, crocância e
consistência na medida para que nossos filhos, sobrinhos
e netos rejeitem o espinafre, a cenoura, o abacate etc.
e fiquem com o paladar viciado em comida processada.
Pode parecer assustador, mas é real. Trata-se de um
assunto levantado em dezembro de 2013 pelo pediatra
Fábio Becker, do Rio de Janeiro (RJ), em entrevista
concedida ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura.
Quando eu almoço fora de casa, principalmente em
restaurantes de comida por quilo, vejo com frequência
crianças e jovens enchendo o prato de arroz branco,
linguiça, bife, lasanha, batata frita e deixando para
trás a abóbora, o brócolis, a couve-flor etc. Já
presenciei, aliás, cenas deprimentes, como a garotinha
muito bem-vestida que encheu o prato de arroz e coração
de galinha e o filho de um amigo próximo, que só queria
saber de “nuggets” de frango no almoço e jantar. A
consequência pode ser essa turminha em consultórios
médicos para tratar de males como hipertensão e
colesterol alto, apesar da tenra idade.
Em “O Livro dos Espíritos”, na parte destinada a debater
sobre o necessário e o supérfluo, a questão 716 indaga
se a natureza, ante da organização física que o ser
humano possui, não traçou limites para as nossas
necessidades. A resposta deixa claro que sim, há
limites. Mas como muitos homens e mulheres são
insaciáveis, extrapolam ao criarem necessidades que não
são reais e, muitas vezes, descambarem para o vício.
Entre eles, o vício de comprar em demasia, abarrotando
armários com roupas e acessórios que nem sempre serão
usados e também enchendo geladeiras e despensas com
comida além do que podemos consumir, descartando o café
requentado e o arroz preparado de véspera ou jogando
fora a laranja que mofou antes de ser transformada em
suco simplesmente porque nos esquecemos da existência
dela no fundo da fruteira.
Isso tudo tem a ver com o que é afirmado também em “O
Livro dos Espíritos”, desta vez na questão 799, na qual
Kardec pergunta de que forma o Espiritismo pode
contribuir para o progresso. Resposta: “Destruindo o
materialismo, que é uma das chagas da sociedade”.
Geralmente, achamos que ser materialista é não acreditar
em Deus, viver totalmente entregue aos prazeres mundanos
e achar que, depois da morte, nada existe. O conceito é
mais profundo. Tratar a matéria de forma atabalhoada,
julgando que os recursos do planeta são infinitos a
ponto de desperdiçarmos tanta comida e não sermos ainda
capazes de instituir uma sociedade justa em que não haja
produtores jogando safras fora para forçar alta nos
preços, ou porque não está sendo viável plantar feijão,
batata ou similar, isso evidencia que precisamos
aprender a lidar melhor com a matéria. Assim procedendo,
seremos capazes de estabelecer uma sociedade mais justa,
com mesa farta e bem planejada para todos.
Bibliografia:
1- KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
2- MARQUES,
Marília – Brasileiro joga fora 40kg e comida por ano;
arroz, feijão e carne lideram desperdício. Para
acessar, clique
aqui
3- MG
TV – Produtores rurais descartam batata às margens de
BR-354 após queda de preço em São Gotardo. Para
acessar, clique
aqui-2