Especial

por Rogério Miguez

Há injustiçados?

O tema é palpitante, pois as noções do dever e do direito, bases fundamentais para o estabelecimento da justiça, vêm sendo discutidas ao longo de todo o nosso processo evolutivo, isto no que tange esta parte da Humanidade Universal.

Em função de nossa ainda incipiente compreensão dos princípios divinos, e, apesar do esforço continuado em bem aprender os conceitos do dever e do direito, alguns ainda entendem haver injustiças. Creem terem sido alcançados por males que não mereceriam ter sido atingidos. Sim, acreditam piamente: há injustiçados!

Contudo, quando recordamos um dos necessários atributos do Criador - a perfeita justiça e misericórdia -, entre tantas outras perfeições caracterizando a Divindade, poderíamos encurtar a nossa singela análise sobre o tema e já responder, com categórica certeza: Não, não há injustiçados, não pode haver! Em virtude de, se os houvesse, caso pudéssemos apontar algum Espírito, encarnado ou desencarnado passando por uma situação injusta, seríamos obrigados a concluir que Deus também seria injusto na forma como controla a sua própria Criação, ao permitir que, vez por outra, um de seus amados filhos recebesse um dano, um mal, ou mesmo tivesse um prejuízo qualquer, sem merecimento, e, por consequência, sofrendo injustamente. E mais, seríamos obrigados a aceitar que suas sábias leis eternas e imutáveis não teriam condições de evitar as alegadas injustiças, fazendo delas também leis falhas, incompletas, impotentes para impedir estas “incompreensíveis” situações.

Como a Perfeita Justiça poderia permitir qualquer injustiça, por menor que seja!?

Entretanto, apesar deste simples e direto raciocínio que, de nosso ponto de vista poderia servir de base para apaziguar os corações aflitos ao suporem que Deus possa ser, eventualmente, injusto, nada mais gratificante e motivador do que refletir um pouco sobre um tema qualquer para melhor entendê-lo e, pela justa compreensão do assunto, proporcionar duradoura paz à consciência.

Sendo assim, podemos iniciar as nossas reflexões lembrando que a popularização das primeiras noções de justiça na Terra, aconteceu, segundo alguns historiadores, por volta de 1500 a.C., trazidas por um Espírito de alta evolução quando por aqui esteve – Moisés -, o autor da Torá, o conjunto dos cinco livros fundamentais da fé hebraica. Entretanto, antes dele, diz a nossa História que algumas propostas sobre justiça, tal como a máxima do dente por dente, olho por olho, já constavam de um antigo código de leis, elaborado na Mesopotâmia, no reino da Babilônia, chamado Código de Hamurabi (século XVIII a.C.).

A revelação da Lei de talião à Humanidade, foi de fundamental importância. Visava impedir aquele povo ainda bruto de cometer atrocidades no ressarcimento de possíveis prejuízos, quando houvesse qualquer atrito nas relações sociais. A lógica era simples: na época, era costume cobrar uma dívida em valor superior ao dano sofrido, por pura vingança - e alguns ainda o fazem mesmo no século XXI -, contudo, aplicando a Lei de talião, ou seja, autorizando a cobrança de modo igual à perda sofrida, e nada mais, diminuiu sobremaneira a possível violência entre os litigantes. A propósito, esta Lei ainda existe, contrariando os que acreditam que ela se foi desde o seu surgimento nos tempos bíblicos, tendo sido registrada por Allan Kardec no século XIX em várias obras, tal como:

Disse Jesus: Quem matou com a espada, morrerá pela espada. Estas palavras não consagram a pena de talião e, assim, a morte imposta ao assassino não constitui a aplicação dessa pena?

“Cuidado! Estais equivocados quanto a estas palavras, como sobre muitas outras. A pena de talião é a justiça de Deus; é Ele quem a aplica. Todos vós sofreis essa pena a cada instante, pois que sois punidos naquilo em que haveis pecado, nesta existência ou em outra. [...]1

Aos interessados em ler um pouco mais sobre o princípio de talião, poderão encontrar outras considerações sobre o tema no texto intitulado O século XXI chegou. A lei de talião finalmente se foi?2

 Contudo, deixemos a nossa atenção de lado sobre esta particular modalidade da justiça divina, pois a aplicação da justiça, de modo geral, sempre nos interessou de perto, cremos que seja em função da centelha divina, gravada em nossa essência espiritual, desde o início do processo de individualização deste princípio, nos conferindo o senso embrionário da moral e da ética, nos impulsionando, em consequência, pela busca da conquista das muitas virtudes.

Entretanto, ao longo de nossa jornada evolutiva, por escolhas e condutas pessoais, sem que houvesse qualquer determinação divina, muitas assim entendidas injustiças têm sido perpetradas, considerando que muitos de nós optamos pelo caminho evolutivo distanciados dos postulados divinos, outros, não. Os primeiros, agindo de modo contrário às leis divinas, causaram males diversos a si próprios e ao próximo e, eventualmente, foram injustos nas interações entre as muitas sociedades que já fizeram parte.

Ressalte-se: podemos agir injustamente, contudo, jamais o atingido por nossas injustas condutas, poderá se dizer injustiçado. E por qual razão?

Além do que foi anteriormente mencionado sobre a perfeita justiça e misericórdia do Criador, há outro necessário atributo de Deus - a onisciência - também fundamental para a compreensão do tema. Poderíamos definir como: o saber absoluto, total, o conhecimento infinito sobre todas as coisas, ou seja, Deus tem ciência de tudo que acontece no mundo dos vivos, seja em qual reino for, sobre toda a Natureza. Sendo também esta uma das imprescindíveis características do Pai, não se entende como Ele poderia, ciente de tudo, permitir que um de seus filhos sofresse uma injustiça qualquer.

Podemos também lembrar de outro princípio divino que assegura, inquestionavelmente, não haver o acaso,3 aliás, todos os espíritas deveriam estar plenamente convictos desta realidade, ora, se nada ocorre imprevistamente, não se concebe que um Espírito seja atingido por um mal que não tenha que necessariamente enfrentar. O agente deste mal pode existir, adquirindo um débito, e deverá, sem sombra de dúvida, quitá-lo com a Lei Divina, pela dor ou pelo exercício continuado do amor, mas, jamais poderemos imaginar que aquele recebendo o malefício estaria sofrendo injustamente. Assim sendo, mais uma vez indagamos: E por qual outra razão?

Além das justificativas anteriormente levantadas, devido à lei de causa e feito, tão bem explicada por Allan Kardec. Este outro princípio divino esclarece basicamente que todos os eventos da vida são o resultado de condições previamente estabelecidas seja em que campo de atuação for. Ou seja, o que nos acontece é o resultado, invariável, de um conjunto de atitudes que tomamos no passado da existência presente, somadas a outro grupo de condutas praticadas em outras existências – causa e efeito.

Adicionalmente, poderíamos ponderar que se houvermos escolhido uma prova para nos testar as virtudes e, em consequência destes testes, previamente selecionados, estiver previsto que sejamos “injustiçados” pela sociedade, este aparente mal que receberemos, não é verdadeiramente uma injustiça, pois eu estou desejoso e, de fato, espero que ele aconteça, conforme combinado antes de reencarnar. Desta forma, eu posso verificar na prática a conquista das minhas alegadas virtudes, aquelas que suponho deter, tais como: paciência, tolerância, submissão, entre outras necessárias que permitirão aceitar resignadamente as chamadas “injustiças” do mundo.

A injustiça tem algo de imprevisibilidade, isto é, caso existisse, o Espírito não deveria sofrer o malefício que lhe foi impingido, situação que, mais uma vez, não encontra respaldo na onipotência do Criador, outro atributo característico da Divindade. Ele não poderia permitir males sem justificativas ou razões tendo o poder absoluto sobre tudo e todos.

Sendo assim, como ficam os agentes das assim ditas injustiças? Os que cometeram os atos indecorosos, cruéis, desumanos?

Enfatizamos, mais uma vez: terão que enfrentar as consequências de suas ações, pois ninguém se forrará dos resultados danosos de seus atos, mesmo agindo como instrumentos da própria lei de Deus. Não é possível atribuir a Deus a responsabilidade pelos nossos atos, isto jamais acontecerá, somos sempre responsáveis pelo que fazemos.

É por esta razão que Jesus orientou:

Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos, mas ai do homem por quem o escândalo venha.4

Voltando no passado por dois mil anos poderíamos indagar se estariam os algozes do Cristo previamente designados para cometer injustiças?

De modo algum, pois não pode haver missão para o mal, seria um absurdo acreditarmos nesta possibilidade:

Os Espíritos que procuram induzir-nos ao mal e que põem assim em prova a nossa firmeza no bem, receberam missão de fazê-lo? E se é uma missão que cumprem, terão alguma responsabilidade nisso?

Nenhum Espírito recebe a missão de fazer o mal. Quando o faz, é por sua própria vontade e, por conseguinte, sofre as consequências. Deus pode permitir que ele o faça para vos provar, mas não o ordena, cabendo a vós repeli-lo.”(negritamos)

Judas, tampouco qualquer um dos que impingiram sofrimentos ao Cristo, muito menos aqueles que martirizaram os milhares de cristãos nas arenas, estavam marcados para errar, visto que, seria outro contrassenso acreditar que a Perfeita Bondade pudesse forçar ou obrigar certos Espíritos, também seus filhos, a cometerem atos maldosos contra outros filhos, seus irmãos. Os que se insurgiram contra o Cristo o fizeram por moto próprio, sem qualquer destinação para o mal, evidentemente, arcando com as consequências dos resultados obtidos.

Adicionalmente, é oportuno refletir ainda: poderíamos agir injustamente contra nós mesmos, por exemplo, quando o remorso e o arrependimento nos visitam e não nos concedemos o autoperdão por conta de irrefletidas atitudes cometidas contra o próximo, ou mesmo contra nós mesmos? Neste caso, o Espírito seria vítima e algoz de si mesmo!? Injustiçado por ele mesmo!?

Em resumo: há injustos, sem sombra de dúvidas, pois grande parte desta Humanidade ainda se porta de modo contrário ao fazer ao próximo o que desejariam que lhes fosse feito, todavia, em qualquer caso, não pode haver injustiçados.

Em relação ao caso da possível auto injustiça, deixamos ao leitor as reflexões sobre esta indagação.

 

Referências:

1 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 9. imp. Brasília: FEB, 2020. q. 764.

2 Reformador. O século XXI chegou. A lei de talião finalmente se foi? abril 2013.

3 NOTA: Sugerimos ao leitor consultar em O livro dos espíritos as questões: 8, 37, 386, 388, 525a, 536 e 663.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. cap. VIII. item 11.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 9. imp. Brasília: FEB, 2020. q. 470. 

 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita