A crise moral
Quando Léon Denis publicou o livro Depois da Morte pela primeira vez, em 1897, obra que foi o “gatilho” de Eurípedes Barsanulfo para sua conversão ao Espiritismo, já alertava para a crise moral e os problemas sociais agravados pelo conflito instaurado entre a Religião e a Ciência.
“O espírito humano flutua indeciso entre as solicitações de duas potências.” De um lado a religião com seus dogmas e mazelas advindas da avidez do homem pelo poder transitório. Por outro lado, o aprofundamento materialista da Ciência que ignora tudo aquilo que foge aos sentidos puramente humanos.
Se há alguma “queda” do ser humano, ela ocorreu pelo uso equivocado da Religião. Guerras, isolamentos, traições, aprisionamentos e injustiças mancham a história das religiões, tendo na religião católica o ponto máximo, até o momento, dos flagelos humanos diante da possibilidade de ascensão espiritual. Podemos até discutir o que veio primeiro: se foi a ascensão política e imperialista romana ou se o poderio romano se valeu de uma fonte de poder espiritual, como a religião, para propagar os seus desmandos. Pode-se discutir ainda que ao longo da história muitos Espíritos superiores fizeram parte da obra católica e da reforma, contribuindo de alguma sorte para suas modificações ao longo do tempo. O fato é que, quando o indivíduo abraça uma religião, ele passa a agir de forma dogmática, contornando os problemas provocados pelos desvios humanos, como se fosse algo místico, iniciático e incompreensível aos olhos de fora.
Quando a queda é colocada entre aspas, justifica-se porque à medida em que o tempo avança observa-se um recrudescimento social profundo, como se o ser humano involuísse, o que doutrinariamente aprende-se nas obras de Allan Kardec ser algo impossível, ocorrendo, no máximo, a estagnação do Espírito em alguma reencarnação. Com os erros sucessivos, parece que regredimos, entretanto, na realidade, ocorrem falhas ou novas falhas nos campos em que se tem compromissos a resgatar, por isso, quando um indivíduo utiliza de uma fonte de poder espiritual para enganar, iludir e aliciar, em algum momento na engenharia divina, esse indivíduo retorna na condição de exercitar aquilo que sugeria aos demais fazerem, experimentando a força das ideias antagônicas aos propósitos da Lei Divina como mecanismo de alternância, pelo uso indevido do poder construtivo, aprisionando, enganando e ludibriando outros que buscam libertar-se.
“A Ciência e a indústria centuplicaram as riquezas da humanidade, porém, tais riquezas só aproveitaram a uma insignificante parte de seus membros.” E complementa: “a sorte dos pequenos ficou precária e a fraternidade ocupa maior espaço nos discursos do que nos corações. No meio das cidades opulentas ainda se pode morrer de fome”. A outra potência, a ciência, auxiliou o desenvolvimento social com o avanço tecnológico, a melhoria da condição de vida humana, todavia, tal avanço ficou circunscrito a um público cada vez menor, mais egoísta, individualista e materialista. A busca pelo prazer transitório ao alcance do avanço científico iludiu o ser humano com falsos prazeres e falsos paraísos, criando subterfúgios em drogas lícitas e ilícitas, contornando problemas sociais profundos que eclodem em épocas de crise mundial como na pandemia: a fome, falta de emprego e a miséria.
“No meio dessa confusão de ideias, a consciência perdeu sua bússola e sua rota. Ansiosa, caminha ao acaso, e, na incerteza que sobre ela pesa, o bem e o justo se obscurecem.” Por que obscurecem? Porque perderam a referência, o guia, a orientação, os princípios que colocam a humanidade nos trilhos. Não os trilhos das religiões convencionais, nem os trilhos materialistas da ciência, mas os trilhos do Evangelho de Jesus, interpretados segundo o Espiritismo.
“Como sairá a humanidade desse estado de crise?”, questiona Léon Denis. E o próprio autor aponta o caminho pela necessidade de se construir o equilíbrio e a harmonização entre essas duas potências.
Sempre convidando-nos à inquietação do pensamento, Léon Denis nos relembra que o equilíbrio e a harmonia das potências podem ocorrer pelo estudo adequado da Doutrina Espírita. Seu corpus doutrinário reúne a solução dos principais enigmas da humanidade, apresentados de forma inequívoca, porém, filosófica. A importância da forma como foi apresentada segue os ditames gregos, celtas e orientais dos primeiros pensadores, por isso sua atemporalidade, ficando a cargo do indivíduo a busca por respostas que melhor representem seus anseios de renovação.
Buscam-se respostas para a coletividade, esquecidos da construção na individualidade, algo que se dá diariamente ao despertarmos ainda encarnados com uma página em branco a ser preenchida com nossos melhores propósitos.
“A hora presente é de crise e de renovação”, escreveria o insigne mestre de Tours em 1897, enxergando além do seu tempo. “O mundo está em fermentação, a corrupção aumenta, a noite estende-se, o perigo é grande, mas, por detrás da sombra, vemos a luz, por detrás do perigo, a salvação.” As expressões, sejam no original francês ou aplicadas pelos tradutores, reservam ainda vestígios de um pensamento religioso em franca libertação. A “salvação” não é mais aquela em que somente os que poderiam pagar dízimos ou realizar oferendas conseguiriam alcançar, mas sim aqueles capazes de despertar da letargia provocada pelo conflito instaurado por duas potências que agravaram a crise moral da humanidade.
Se buscamos respostas diferentes para os problemas atuais, cabe-nos interpretar de forma diferente os ensinamentos doutrinários. Saberemos se as interpretações estão corretas pelo endireitamento de nossas vidas diante dos desígnios divinos, e não em função do que fala alguém que desconhece suas lutas íntimas. O Espiritismo é o antídoto para os males morais agravados pela religião e a ciência. Para isso, é preciso sair da superfície das práticas exteriores e mergulhar na imensidão dos ensinamentos doutrinários como quem busca um tesouro, um tesouro para a alma!