Objetivamente, quanto à questão da revogação do Antigo Testamento, vejamos o que
encontramos de apoio a essa tese no Novo Testamento:
1
Coríntios 15,2: “É pelo evangelho que vocês serão salvos,
contanto que o guardem de modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão
acreditado em vão.” (grifo nosso)
Efésios 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a palavra da verdade, o
Evangelho que os salva.” (grifo nosso)
Paulo deixa claro que é pelo Evangelho que seremos salvos; em outras palavras,
ele não aceita o Antigo Testamento como algo com que possamos nos salvar.
Hebreus 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança,
por causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa
alguma) e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nós
chegamos a Deus. E, visto que não é sem prestar juramento (porque aqueles, sem
juramento, são feitos sacerdotes, mas este, com juramento, por aquele que lhe
disse: O Senhor jurou e não se arrependerá; Tu és sacerdote para sempre); por
isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de superior aliança.” (grifo
nosso)
Hebreus 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais
excelente, quanto é ele também mediador de superior aliança instituída
com base em superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse
sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E,
de fato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova
aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova,
torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e
envelhecido, está prestes a desaparecer.” (grifo nosso)
Hebreus 10,9: “[…] Desse modo, Cristo suprime o primeiro culto para
estabelecer o segundo”. (grifo
nosso)
Se até aqui ainda poderia existir alguma pequena sombra de dúvida, agora foi
definitivamente dissipada por estas narrativas da carta aos Hebreus. Poderíamos
até dizer: “quem tem ouvidos que ouça”, mas diremos quem tem olhos veja: a aliança
anterior é fraca, inútil e com defeito, enquanto que a nova é superior a ela.
Quanto ao “está prestes a desaparecer”, só não desapareceu ainda por causa da
insistência de alguns que querem, a todo custo, manter viva a legislação de
Moisés contida no Antigo Testamento. Repetindo: Porque, se aquela primeira
aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar
para segunda.
Corroboramos nossa ideia com Ehrman:
Já mencionei que esta é a visão apresentada na epístola dos Hebreus, do Novo
Testamento, livro que tenta mostrar que a religião baseada em Jesus é
superior à religião do judaísmo, em todos os sentidos. Para o autor de
Hebreus, Jesus é superior a Moisés, que deu a Lei aos judeus (Hb 3); ele é
superior a Josué, que conquistou a terra prometida (Hb 3); ele é superior aos
sacerdotes que oferecem sacrifícios no templo (Hb 4-5); e, o mais marcante, ele
é superior aos próprios sacrifícios (Hb 9-10). […]. (ERMAN, 2008, p. 78, grifo
nosso)
Clara, então, fica a questão de Jesus ser superior a Moisés.
Marcos 2,18-22: “Como os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando,
foram lhe perguntar: 'Por que é que os discípulos de João e os discípulos dos
fariseus jejuam, e os teus não?' Jesus lhes respondeu: 'Por acaso ficaria bem
que os convidados para um casamento fizessem jejum, enquanto o esposo está com
eles? Enquanto está, não convém. Mas virá um tempo em que o esposo lhes será
tirado. Então sim, eles vão jejuar. Ninguém costura um remendo de pano novo
em roupa velha. Do contrário o remendo novo, pelo fato de encolher, estraga
a roupa velha e o rasgão fica pior. Ninguém põe vinho novo em velhos
recipientes de couro. Caso contrário, o vinho arrebentaria os recipientes.
Ficariam perdidos os recipientes e também o vinho. Para vinho novo, recipientes
novos!'.” (grifo nosso)
Seria o mesmo que Jesus dizer: Se vocês ficarem apegados aos ensinamentos de
Moisés, não conseguirão suportar nem compreender o que agora vos trago. Onde se
falava sobre os jejuns? Não é no Velho Testamento, que, tanto os fariseus e
quanto os discípulos de João Batista, tiravam o que seguiam? Lembremo-nos de
que “a Lei e os Profetas vigoraram até João” (Lucas 16,16). Assim,
não fica claro sua revogação por Jesus? Só não o é para os que ainda insistem em
seguir Moisés. Mais claro fica quando tomamos da nota de rodapé constante do Novo
Testamento, Edições Loyola, o seguinte: “Tanto o pano novo como o vinho novo
são símbolos duma nova era (cf. At 10,11; Hbr 1,11; Gên 49,11-12); os
cristãos devem estar animados dum espírito novo, incompatível com antigas
prescrições do judaísmo já ultrapassadas” (p. 57, grifo nosso)
Há um episódio na vida de Jesus que nos levou a formar uma forte convicção que
seus ensinamentos eram superiores aos de Moisés. É a passagem em que João narra,
o que se supõe como sendo, o primeiro milagre de Jesus. Apesar de termos
refletido muito sobre ela, ainda não tínhamos nenhuma explicação que
justificasse a atitude de Jesus em transformar água em vinho, para embebedar os
convidados da festa de que participava.
Vejamos o episódio:
João 2,1-11: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da
Galileia, e a mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para
essa festa de casamento, junto com seus discípulos. Faltou vinho e a mãe de
Jesus lhe disse: 'Eles não têm mais vinho!' Jesus respondeu: 'Mulher, que existe
entre nós? Minha hora ainda não chegou'. A mãe de Jesus disse aos que estavam
servindo: 'Façam o que ele mandar'. Havia aí seis potes de pedra de uns cem
litros cada um, que serviam para os ritos de purificação dos judeus. Jesus disse
aos que serviam: 'Encham de água esses potes'. Eles encheram os potes até a
boca. Depois Jesus disse: 'Agora tirem e levem ao mestre-sala'. Então levaram ao
mestre-sala. Este provou a água transformada em vinho, sem saber de onde vinha.
Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles que tiraram a água. Então o
mestre-sala chamou o noivo e disse: 'Todos servem primeiro o vinho bom e, quando
os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até
agora'. Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele
manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele.”
Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o encontraremos naquilo que
a pessoa encarregada da festa disse para o noivo: “Todos servem primeiro o
vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém,
guardou o vinho bom até agora”. Considerando que, com esse primeiro ato
público, Jesus inicia a sua missão, podemos dizer que o “vinho bom guardado até
agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aos recebidos anteriormente, por
meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de pior qualidade, até mesmo
porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época não estava
preparada para receber vinho (ensinamento) de melhor qualidade, se assim podemos
nos expressar.
Tudo o que já dissemos anteriormente sobre os ensinos de Jesus, vale para
corroborar essa nossa opinião. Mas podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em
comparação com esta imensa glória, o esplendor do ministério da antiga
aliança já não é mais nada” (2 Coríntios 3,10) (grifo nosso), e “Dessa
maneira é que se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de sua
fraqueza e inutilidade – a Lei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi
introduzida uma esperança melhor pela qual nos aproximamos de Deus” (Hebreus
7,18-19).
Concluímos que Jesus não se restringiu a só revogar os rituais e sacrifícios
como alguns pensam, para nós, foi muito mais além disso. Comprovamos também que
não distorcemos as narrativas da Bíblia à nossa conveniência, de que tanto nos
acusam. São elas, exatamente, que nos dão uma base sólida para afirmar com
absoluta certeza que:
1
– O cumprimento da lei e dos profetas a que Jesus se refere no Evangelho é
apenas com relação às profecias contidas nas Escrituras sobre Ele mesmo;
2
– Que somente tem que ser cumprido da Lei: Amar a Deus sobre todas as coisas e
ao próximo como a ti mesmo.
3
– Que nunca disse para seguirmos toda a Lei, aqui entendida como todo o
Pentateuco.
É
muito comum recorrerem aos apologistas do cristianismo primitivo para justificar
esse ou aquele ponto, entretanto, quando é algo contrário à crença vigente
passam por cima, como se não tivessem visto. Vejamos, por exemplo, o que
encontramos em Justino de Roma.
A
opinião de Justino de Roma (c. 100-165 d.C.), tido como o melhor apologista do
século II, é bem clara no debate que manteve com um sábio judeu, Trifão, que
alguns estudiosos identificam como sendo o célebre rabino Tarfão, morto em 155,
uma vez que Trifão seria a forma grega do hebraico Tarfão. (JUSTINO, 1995, p.
107). Desse debate, intitulado Diálogo com Trifão, que durou dois dias,
transcrevemos:
[…] Contudo, nós não a [confiança] depositamos por meio de Moisés ou da Lei,
pois nesse caso estaríamos fazendo o mesmo que vós. Com efeito, ó Trifão, eu li
que deveria vir uma lei perfeita e uma aliança soberana em relação às outras,
que agora devem ser guardadas por todos os homens que desejam a herança de
Deus. A Lei dada sobre o monte Horeb já está velha e pertence apenas a
vós. A outra, porém, pertence a todos. Uma lei colocada contra outra lei
anula a primeira; uma aliança feita posteriormente também deixa sem efeito a
primeira. Cristo nos foi dado como lei eterna e definitiva e como aliança fiel,
depois da qual não há mais nem lei, nem ordem, nem mandamento. […]. (JUSTINO,
1995, p. 127, grifo nosso)
Mais claro que isso é querer muito; não é mesmo?
Agora, podemos responder ao questionamento inicial: O Antigo Testamento foi
revogado por Jesus? Sim; sem nenhuma sombra de dúvida. E é por isso que não nos
sentimos na obrigação de cumprir nada do que consta nele, até mesmo para sermos
coerentes com o que pensamos e por acreditar nessa fala de Jesus: “Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (João 14,6).
Por que Ele se colocou como sendo o caminho que conduz ao Pai e não a Moisés? É
porque somente os seus ensinos é que devem ser seguidos.
Esse é o entendimento a que chegamos. Entretanto, não há como obrigar ninguém a
pensar como nós. A única coisa que pedimos é para que as pessoas deixem de se
apegar em demasia aos velhos ensinamentos, como se eles fossem verdadeiros. A
Terra já não é mais o centro do Universo, visto que o homem, percebendo a
ignorância de tal afirmativa, finalmente, aceitou a voz da Ciência. Além de que,
muitas coisas não foram mudadas pelas cúpulas religiosas, justamente para que
elas conservassem, a todo custo, o domínio que têm sobre o povo e, também, para
que pudessem mantê-lo a todo custo. Ainda hoje encontramos as que buscam incutir
a validade dos ensinamentos do Antigo Testamento não se dando conta de que “rompestes
com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da graça” (Gálatas
5,4). Sabemos que não fazem isso por ignorância, mas por esperteza visando
dominar seus “fiéis”, a fim de conseguir e manter o “poder” e o “dinheiro” na
base do que podemos chamar de terrorismo religioso.
Referências
bibliográficas:
Bíblia Anotada.
São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
Bíblia Sagrada,
68ª ed. São Paulo: Ave-Maria, 1989.
Bíblia Sagrada,
8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
Novo Testamento,
LEB. São Paulo: Loyola, 1984.
EHRMAN, B. D. O problema com Deus. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
EHRMAN, B. D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e
por quê. São Paulo: Prestígio, 2006.
JUSTINO, Mártir, Santo Justino de Roma: I e II
apologias: diálogo com Trifão.
São Paulo: Paulus, 1995.