Artigos

por Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

Lidando com a traição


É pouco provável que alguém passe pela existência corpórea sem sentir a dor gerada pela traição. Esclareço que minhas conjecturas aqui vão muito além da traição conjugal, algo, convenhamos, ainda observável no mundo em que vivemos, onde habitam criaturas absolutamente imaturas do ponto de vista psicológico e espiritual. De fato, na vida, estamos sujeitos às traições que partem de pessoas em quem confiamos profundamente, sejam elas parentes, amigos, companheiros de trabalho, confrades etc.

Receber a traição de quem não faz parte desse rol especial é, até certo ponto, compreensível, já que as pessoas têm interesses e valores distintos. Mais ainda: nem todos usam a bússola moral para guiar os seus passos e atitudes diárias. Nem todos se pautam pela integridade de caráter em suas manifestações. Nem todos são verdadeiramente transparentes em suas emoções e pensamentos. Sendo assim, dos mais distantes, afetivamente falando, podemos esperar tudo, inclusive a falta de sinceridade e as más intenções – muito típicas, aliás, de uma humanidade atrasada.

Todavia, a angústia, a dor e a decepção se intensificam substancialmente quando somos golpeados por pessoas mais próximas de nós. Delas podemos esperar tudo, exceto um ato traiçoeiro ou ingratidão. Para a maior parte dos humanos, é inconcebível que um ser querido os possa prejudicar. Mas tal coisa acontece em profusão. Embora pouco debatido nas lides espíritas, o tema é pertinente pelas razões acima expostas.

Ademais, a trajetória humana é repleta de cometimentos traiçoeiros envolvendo destacadas figuras da história. Por exemplo, quem nunca ouviu falar da traição que culminou com a morte do célebre imperador romano Júlio César (100 a.C.-44 a.C.). Em seus últimos segundos de vida, traído covardemente pelos membros do Senado, teve forças para dirigir-se ao seu protegido: - “Até tu Brutus?”. Lenda ou não, o fato é que Marco Júnio Bruto (85 a.C-42 a.C.) estava entre os assassinos do referido personagem e seu benfeitor.

Um outro exemplo ainda mais dramático temos a traição de Judas a Jesus Cristo. Recordemos que o Apóstolo teve o privilégio de conviver lado a lado com o Mestre dos Mestres. Bebeu, por assim dizer, nas fontes mais puras da verdade celestial. Mas, mesmo assim, não foi capaz de lhe entender a mensagem redentora – confundindo-o, assim, com um potencial revolucionário pronto para libertar Israel do julgo romano. Pedro, por sua vez, apesar de receber-lhe intenso carinho e amor, não se furtou a negá-lo três vezes.

Como bem explica o Espírito Emmanuel, na obra Vinha de Luz (psicografia de Francisco Cândido Xavier), “Nas linhas do trabalho cristão, não é demais aguardar grandes lutas e grandes provas, considerando-se, porém, que as maiores angústias não procedem dos círculos adversos, mas justamente da esfera mais íntima, quando a inquietação e a revolta, a leviandade e a imprevidência penetram o coração daqueles que mais amamos”.

A elevada entidade acrescenta que “O infrator mais temível, em todas as boas obras, é sempre o amigo transviado, o companheiro leviano e o irmão indiferente”. Desse modo, o traidor pode eventualmente compartilhar de nossa intimidade, sonhos e esperanças mais caras. Talvez lhe dediquemos ainda nossos melhores sentimentos e expressões afetivas – sem cogitar que à socapa conspira contra nós. Nesse sentido, o Espírito Joanna de Ângelis, a seu turno, expande o raciocínio incorporando-o ao pantanoso terreno da ingratidão. Em sua visão abençoada por imensa sabedoria, “O ingrato é, também, em consequência, um traidor da confiança e do respeito que lhe têm sido oferecidos”.

Ela também pondera que “Por fim, o ingrato é pessoa realmente infeliz, porque nem sequer possui sensibilidade para amar realmente alguém” (ênfase minha). O indivíduo nesta precária condição certamente não consegue divisar o valor da reciprocidade e do bem querer espontâneo. Também não consegue ser justo e muito menos reconhecido ao seu benfeitor. Além disso, seguindo as luminosas observações de Joanna, cabe acrescentar que o ingrato, por não possuir “sensibilidade”, geralmente não aplica a regra de ouro. Ou seja, o imperativo de não fazer ao outro o que não deseja para si próprio não lhe ressoa, como desejado, nos refolhos da alma. O Espírito situado nesse baixo patamar evolutivo vive ainda sob forte domínio do atraso ético-moral e, por isso, não consegue internalizar as saudáveis diretrizes de convivência pacífica e muito menos de amor-doação.

Por outro lado, cabe igualmente destacar que a obtenção de sensibilidade representa uma das mais expressivas conquistas dos seres humanos. Afinal de contas, indivíduos sensíveis têm a capacidade de enxergar o outro em suas reais dimensões, isto é, o que pensa, como sente, seus receios, limites, fraquezas e assim por diante. Como sabe lidar proficientemente com os sentimentos usa-os para amparar e ajudar, jamais ferir. A propósito, a natureza nos mostra que certas espécies de animais são dotadas dessa qualidade, enquanto certos seres humanos, paradoxalmente, desprezam-na. Em resumo, o indivíduo sensível tende a externar alteridade em alto grau, já que cooperar para o bem-estar do outro lhe constituí um propósito de vida.

Outra importante advertência da benfeitora espiritual enfatiza que: “Não se deixe afetar pela crueldade dos ingratos e prossegue gentil, porque é sempre melhor para aquele que oferece e é bondoso” (ênfase minha). Posto isto, cabe lembrar de Jesus, que mesmo traído e abandonado pela maior parte dos seus beneficiários mais íntimos, estendeu-lhe as mãos sublimes, bem como o perdão incondicional.

Desse modo, é bem provável que no decorrer da boa luta que empreendemos rumo à autoiluminação sejamos, de algum modo, alvo de calúnias, da má-fé ou do fel destilado, como argumenta Emmanuel, não pelos nossos antípodas, mas, paradoxalmente, por aqueles que se sentam à mesa conosco, que conhecem os nossos pensamentos e objetivos existenciais. Nessa hora amarga, tenhamos, portanto, a lembrança do Senhor para também imitá-lo.  


 
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita