Lidando
com a traição
É pouco provável que
alguém passe pela
existência corpórea sem
sentir a dor gerada pela
traição. Esclareço que
minhas conjecturas aqui
vão muito além da
traição conjugal, algo,
convenhamos, ainda
observável no mundo em
que vivemos, onde
habitam criaturas
absolutamente imaturas
do ponto de vista
psicológico e
espiritual. De fato, na
vida, estamos sujeitos
às traições que partem
de pessoas em quem
confiamos profundamente,
sejam elas parentes,
amigos, companheiros de
trabalho, confrades etc.
Receber a traição de
quem não faz parte desse
rol especial é, até
certo ponto,
compreensível, já que as
pessoas têm interesses e
valores distintos. Mais
ainda: nem todos usam a
bússola moral para guiar
os seus passos e
atitudes diárias. Nem
todos se pautam pela
integridade de caráter
em suas manifestações.
Nem todos são
verdadeiramente
transparentes em suas
emoções e pensamentos.
Sendo assim, dos mais
distantes, afetivamente
falando, podemos esperar
tudo, inclusive a falta
de sinceridade e as más
intenções – muito
típicas, aliás, de uma
humanidade atrasada.
Todavia, a angústia, a
dor e a decepção se
intensificam
substancialmente quando
somos golpeados por
pessoas mais próximas de
nós. Delas podemos
esperar tudo, exceto um
ato traiçoeiro ou
ingratidão. Para a maior
parte dos humanos, é
inconcebível que um ser
querido os possa
prejudicar. Mas tal
coisa acontece em
profusão. Embora pouco
debatido nas lides
espíritas, o tema é
pertinente pelas razões
acima expostas.
Ademais, a trajetória
humana é repleta de
cometimentos traiçoeiros
envolvendo destacadas
figuras da história. Por
exemplo, quem nunca
ouviu falar da traição
que culminou com a morte
do célebre imperador
romano Júlio César (100
a.C.-44 a.C.). Em seus
últimos segundos de
vida, traído
covardemente pelos
membros do Senado, teve
forças para dirigir-se
ao seu protegido: - “Até
tu Brutus?”. Lenda
ou não, o fato é que
Marco Júnio Bruto (85
a.C-42 a.C.) estava
entre os assassinos do
referido personagem e
seu benfeitor.
Um outro exemplo ainda
mais dramático temos a
traição de Judas a Jesus
Cristo. Recordemos que o
Apóstolo teve o
privilégio de conviver
lado a lado com o Mestre
dos Mestres. Bebeu, por
assim dizer, nas fontes
mais puras da verdade
celestial. Mas, mesmo
assim, não foi capaz de
lhe entender a mensagem
redentora –
confundindo-o, assim,
com um potencial
revolucionário pronto
para libertar Israel do
julgo romano. Pedro, por
sua vez, apesar de
receber-lhe intenso
carinho e amor, não se
furtou a negá-lo três
vezes.
Como bem explica o
Espírito Emmanuel, na
obra Vinha de Luz (psicografia
de Francisco Cândido
Xavier), “Nas linhas do
trabalho cristão, não é
demais aguardar grandes
lutas e grandes provas,
considerando-se, porém,
que as maiores angústias
não procedem dos
círculos adversos, mas
justamente da esfera
mais íntima, quando a
inquietação e a revolta,
a leviandade e a
imprevidência penetram o
coração daqueles que
mais amamos”.
A elevada entidade
acrescenta que “O
infrator mais temível,
em todas as boas obras,
é sempre o amigo
transviado, o
companheiro leviano e o
irmão indiferente”.
Desse modo, o traidor
pode eventualmente
compartilhar de nossa
intimidade, sonhos e
esperanças mais caras.
Talvez lhe dediquemos
ainda nossos melhores
sentimentos e expressões
afetivas – sem cogitar
que à socapa conspira
contra nós. Nesse
sentido, o Espírito
Joanna de Ângelis, a seu
turno, expande o
raciocínio
incorporando-o ao
pantanoso terreno da
ingratidão. Em sua visão
abençoada por imensa
sabedoria, “O ingrato é,
também, em consequência,
um traidor da confiança
e do respeito que lhe
têm sido oferecidos”.
Ela também pondera que
“Por fim, o ingrato é
pessoa realmente
infeliz, porque nem
sequer possui
sensibilidade para amar
realmente alguém”
(ênfase minha). O
indivíduo nesta precária
condição certamente não
consegue divisar o valor
da reciprocidade e do
bem querer espontâneo.
Também não consegue ser
justo e muito menos
reconhecido ao seu
benfeitor. Além disso,
seguindo as luminosas
observações de Joanna,
cabe acrescentar que o
ingrato, por não possuir
“sensibilidade”,
geralmente não aplica a
regra de ouro. Ou seja,
o imperativo de não
fazer ao outro o que não
deseja para si próprio
não lhe ressoa, como
desejado, nos refolhos
da alma. O Espírito
situado nesse baixo
patamar evolutivo vive
ainda sob forte domínio
do atraso ético-moral e,
por isso, não consegue
internalizar as
saudáveis diretrizes de
convivência pacífica e
muito menos de
amor-doação.
Por outro lado, cabe
igualmente destacar que
a obtenção de
sensibilidade representa
uma das mais expressivas
conquistas dos seres
humanos. Afinal de
contas, indivíduos
sensíveis têm a
capacidade de enxergar o
outro em suas
reais dimensões, isto é,
o que pensa, como sente,
seus receios, limites,
fraquezas e assim por
diante. Como sabe lidar
proficientemente com os
sentimentos usa-os para
amparar e ajudar, jamais
ferir. A propósito, a
natureza nos mostra que
certas espécies de
animais são dotadas
dessa qualidade,
enquanto certos seres
humanos, paradoxalmente,
desprezam-na. Em resumo,
o indivíduo sensível
tende a externar
alteridade em alto grau,
já que cooperar para o
bem-estar do outro lhe
constituí um propósito
de vida.
Outra importante
advertência da
benfeitora espiritual
enfatiza que: “Não se
deixe afetar pela crueldade
dos ingratos e
prossegue gentil, porque
é sempre melhor para
aquele que oferece e é
bondoso” (ênfase minha).
Posto isto, cabe lembrar
de Jesus, que mesmo
traído e abandonado pela
maior parte dos seus
beneficiários mais
íntimos, estendeu-lhe as
mãos sublimes, bem como
o perdão incondicional.
Desse modo, é bem
provável que no decorrer
da boa luta que
empreendemos rumo à
autoiluminação sejamos,
de algum modo, alvo de
calúnias, da má-fé ou do
fel destilado, como
argumenta Emmanuel, não
pelos nossos antípodas,
mas, paradoxalmente, por
aqueles que se sentam à
mesa conosco, que
conhecem os nossos
pensamentos e objetivos
existenciais. Nessa hora
amarga, tenhamos,
portanto, a lembrança do
Senhor para também
imitá-lo.
|