Terra, pó e flores da minha infância
O mundo mudou. Do chão de terra que eu pisei na minha
infância ao cimento das calçadas impermeáveis; das ruas
poeirentas e desertas ao asfalto movimentado e perigoso;
das casas térreas de fachadas simples e muros baixos às
torres de apartamentos em condomínios ultra vigiados; do
suor honesto na busca do necessário à leviandade do
acúmulo de supérfluos; do silêncio habitual da vida
calma ao barulho perturbador das grandes aglomerações;
da liberdade e brincadeiras de rua ao isolamento da
infância em cômodos fechados; do canto dos galos pela
madrugada ao “tum-tum-tum” das baladas noturnas; da
pontualidade das quatro estações à desordem climática do
nosso tempo; da poesia maior dos talentos geniais à
pobreza do estilo e do gosto; da naturalidade de quase
tudo ao artificialismo de quase tudo. O mundo mudou
bastante, escravo que é da relatividade das coisas.
Os nascidos nas décadas 1.950, 1.960, um pouco antes, um
pouco depois, são testemunhas das transformações
radicais que mudaram as feições da vida, a ponto de se
poder dizer que o planeta em que se vive hoje não é mais
aquele. Esse período é a minha experiência, participei
dele, com suas alegrias e tristezas, e venho
acompanhando o desenvolvimento das coisas até aqui.
As gerações mais recentes são privadas de muitos “bens”
que já não poderão ser vividos plenamente. Coisas a que
se dava bastante valor, ligadas ao sentimento, ao
comportamento, à natureza, sutilezas tantas que se foram
deteriorando e desaparecendo sob os mais variados
pretextos que o progresso ansioso e indisciplinado impôs
ao homem.
Nada tenho contra o progresso, muito pelo contrário.
Progresso é lei natural incontornável. Nascemos para
progredir. Só não quero fazer da saudade uma inimiga, e
me permito senti-la quando queira. A saudade temperada
com ternura e reflexão é um impulso para a alma, traz
aprendizado e amadurecimento.
Acho possível dizer que a minha geração é privilegiada.
É como se tivesse estado exatamente na fronteira entre
dois “tempos” quase distintos, e vivido o que foi
ficando para trás e o que veio vindo a uma velocidade
vertiginosa.
Não se trata de escolher que tempo foi ou é melhor.
Apenas observo, tendo vivido os dois períodos, os
valores que o homem abandonou e os que implementou, e os
benefícios ou prejuízos que disso resultou, implícitos
nesse meu texto. Mesmo que eu esteja fazendo observações
pessoais e relativas, dá para pressentir que a
humanidade poderia ter avançado muito mais e melhor com
a herança passada e as conquistas presentes. Nem sempre
o progresso implica em destruição, em banimento. A
preservação, a conservação, o aprimoramento são recursos
de transformação.
A sede de conquistas, descobertas, novidades (eu diria
até aventuras), faz do homem um eterno desbravador,
inclusive de si mesmo. É como uma insatisfação que o
impele à frente, na busca da completude. A questão é que
para isso às vezes, ele vai além da sua competência,
atropela, negligencia, abandona, despreza, descarta o
consolidado pelo incerto. E cai nas ciladas provocadas
pelas suas limitações. Como aprendeu desde cedo a
manejar bem o egoísmo e a ambição, essas características
só podem leva-lo à imprudência e ao frequente desgosto.
“A civilização criou
novas necessidades para o homem” ... “Mas, sob a
influência das suas paixões, o homem criou, muitas
vezes, direitos e deveres imaginários, condenados pela
lei natural” ... ¹
Daí que vemos o homem mais moderno e tecnológico, mas
também brutalizado, insensível, indiferente e ...
infeliz. Há quem acredite que a humanidade tem
regredido. Não penso assim. As boas conquistas do homem
ficam armazenadas, mesmo que momentaneamente esquecidas.
“À medida que a
civilização se aperfeiçoa, vai fazendo cessar alguns dos
males que engendrou, e esses males desaparecerão com o
progresso moral.” ²
Como tudo é cíclico na natureza, penso que as feições
materiais da vida antiga podem estar-se perdendo, mas a
essência do que elas imprimiram na alma humana
continuará viva, esperando que os homens contemporâneos
a redescubram, e quem sabe até a resgatem.
Referências:
¹ O
Livro dos Espíritos, Allan Kardec, questão 795.
² O
Livro dos Espíritos,
Allan Kardec, questão 793.
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