Na obra basilar
do Espiritismo, O Livro dos Espíritos, há uma singela passagem inicial
chamada de Prolegômenos. O termo deriva do grego prolegomenon e
significa “o que precisa ser dito antes[1]”.
Trata-se das noções ou princípios básicos que auxiliam na apresentação e
interpretação de uma obra maior. Dentro deste valioso texto introdutório
destaca-se o emblema do trabalho do Criador. Segue o referido trecho, tanto no
original quanto na tradução em português:
«Tu mettras en
tête du livre le cep de vigne que nous t'avons dessiné, parce qu'il est
l'emblème du travail du Créateur ; tous les principes matériels qui peuvent le
mieux représenter le corps et l'esprit s'y trouvent réunis : le corps, c'est le
cep ; l'esprit, c'est la liqueur ; l'âme, ou l'esprit unis à la matière, c'est
le grain. L'homme quintessencie l'esprit par le travail, et tu sais que ce n'est
que par le travail du corps que l'esprit acquiert des connaissances»
- Prolegomenes, p. 30. [2]
“Porás no
cabeçalho do livro a cepa que te desenhamos, porque é o emblema do trabalho do
Criador. Aí se acham reunidos todos os princípios materiais que melhor podem
representar o corpo e o espírito. O corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma
ou espírito ligado à matéria é o bago. O homem quintessencia o espírito pelo
trabalho e tu sabes que só mediante o trabalho do corpo o Espírito adquire
conhecimentos[3]”.
- Prolegômenos, p. 50.
Inicialmente, é
essencial frisar que a palavra utilizada é emblema e não símbolo. Tal palavra
vem do grego “ἔμβλημα
- émblema”, «algo para se inserir dentro[4]»”
ou ainda «ornamento sobre vasos[5]»,
e se refere ao sinal distintivo ou ilustração que auxilia no entendimento e
fixação de uma composição moral. Ter ou não uma ilustração representa a
diferença entre um emblema e outras peças morais, tais como os provérbios, os
ditos e expressões sapienciais. Ademais, no emblema, texto e figura se auxiliam
na compreensão global do assunto[6].
Diferentemente do símbolo, que é uma ilustração, mas que não precisa estar
necessariamente vinculado à alguma informação ou conteúdo moral.
O emblema do
trabalho do Criador é a videira e alguns comentários podem ser feitos sobre a
questão. Os apontamentos são no intuito de explorar as ideias embutidas no item
para uma melhor compreensão de aspectos do Espiritismo e de suas práticas. Não
se tem a intenção de exaurir o tema, tampouco de questionamentos. O entendimento
e assimilação do emblema pode nos auxiliar em nosso trabalho e caminhada nas
vinhas de Deus.
A videira
apresenta algumas características ímpares sobre superação, resiliência,
capacidade de frutificação e expansão que merecem atenção e reflexão. Para a
produção de vinhos ícones, solos pouco dotados e carentes de matéria orgânica
propiciam condições especiais para o desenvolvimento da planta. A parreira
quando plantada em terreno com solo fértil e rico em matéria orgânica propicia
uma planta com sistema radicular menos profundo do que quando cultivada em solo
pedregoso, por exemplo. Muitas regiões produtoras de vinhos de guarda costumam
ser áreas com solos parcos, o que obriga a videira a desenvolver raízes mais
profundas para alcançar os nutrientes necessários no subsolo. Em outras
palavras, as dificuldades configuram o caminho para a planta se desenvolver de
modo a potencializar seus resultados com excelência. Ademais, sinaliza a
importância de Deus e dos antepassados para que se tenha um sistema radicular
melhor desenvolvido. É a busca do Criador no interior profundo para suprir os
nutrientes justos para a vida, assim como a gratidão e zelo aos espíritos afins.
Outra maneira possível de contemplar o sistema radicular é vinculá-lo à educação
moral da infância devido ao período inicial de formação do indivíduo[7].
Outro fato
sobre a videira é sua capacidade de se adaptar às condições climáticas extremas
e a sua velocidade de regeneração, floração e frutificação. Em regiões
vitivinícolas, há a nítida percepção de diferentes cenários conforme as estações
e épocas do ano. Vale destacar que, tradicionalmente, a cultura vem de regiões
de clima temperado e a capacidade de resiliência e superação das dificuldades é
notória. Em linguagem artística, pode-se dizer que a videira vence a neve, o
deserto e as intempéries ambientais para frutificar com louvor a missão da
planta. Certamente a tarefa da vindima ou da colheita configura ponto simbólico
importante, ainda que existam trabalhos silenciosos do mosto até a produção
final do vinho.
Outro elemento
essencial para a produção da planta é a incidência solar. Por meio da
fotossíntese o vegetal tem a capacidade de produzir energia para vencer as
adversidades externas e de frutificar de modo adequado. Por isso, as videiras
que têm alta incidência solar tendem a produzir frutos mais doces. O que
permitirá no futuro a fabricação de vinhos de referência. Assim, “amarrai as
cepas, para que não caiam e se mantenham erguidas, e suas ramas subirão ao céu[8]”.
A ascensão e
fototaxia é facilitada por meio das gavinhas presentes na videira e que a
auxiliam no apoio para seu crescimento. Estas gavinhas se assemelham a pequenas
“molas” e ajudam na fixação e adaptação da planta para avançar no crescimento
ascensional para a luz. Conta-se no emblema reproduzido em O Livro dos
Espíritos, três gavinhas e quatro folhas para apenas um único cacho de uva.
O cacho perfeito não é composto apenas de um único bago excepcional, mas de
todos. É a importância da família e do grupo de espíritos afins. Todavia, se em
um único bago podemos saber a quantidade de sementes, em cada semente não
podemos determinar quantas videiras existem. Assim, tanto a qualidade individual
quanto coletiva contam para o progresso geral.
Mas, apenas a
planta em si não gera bons vinhos. É essencial também a interação com o ser
humano e com aquilo que se denomina de terroir. O terroir é a
interação de fatores naturais com os tecnológicos e humanos que permite a
criação de áreas com identidade própria e características definidas, tanto em
questões organolépticas, quanto econômico-sociais. Neste sentido, as áreas de
Champagne na França, Priorat ou La Rioja na Espanha, Douro em Portugal são
regiões com características de vinhos definidos devido à interação desses
multifatores. Diferentemente do vinho fermentado em processo natural ao acaso, o
vinho produzido pelo ser humano, a partir do momento que dominou sua técnica de
produção, tende a valorizar certos padrões e gostos ao invés de outros. Assim,
seja por fatores históricos, seja por elementos naturais, as regiões produtoras
de vinho se organizaram e se diferenciam uma das outras por meio de seus terroirs.
Destas regiões
com excelentes terroirs são produzidos vinhos de renome mundial. Esses
vinhos tintos de guarda são conhecidos por amadurecerem e ganharem
características notórias adicionais. Ou ainda, corrigir suas falhas iniciais
para se mostrar como produto superior que melhorou com o tempo. É a exuberância
do vinho que se apresenta excepcional não mais pela aparência externa jovial,
mas pelo brilho sutil e requintado de nuances imperceptíveis para a grande
maioria das pessoas. É preciso ser um legítimo connoisseur para apreciar
todas as matizes envolvidas de um vinho superior. É a sofisticação dos sentidos
de modo a ultrapassar o tradicional e que envolve educação e práticas, esforços
e conquistas para organizar o aparelho biológico e mental para captar e
diferenciar tais microtons. De certo modo, em muitos pontos se assemelha com o
desempenho da mediunidade.
Sobre o correto
aprimoramento do ser humano em conjunto com o tempo, também é uma proposta do
Espiritismo, em especial com a reencarnação. Desta maneira, o conteúdo é
melhorado a cada troca de casco. Nas considerações expostas pelo Evangelista
Lucas[9]:
“E
ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra sorte o vinho novo romperá os
odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão”. Passagem similar é
encontrada em outros Evangelistas[10] também. Por
meio da reencarnação, o vinho que antes parecia de menor qualidade vai se
depurando a ponto de não precisar mais do casco[11].
A parreira é
uma planta de exuberante produção de frutos e, no caso dos vinhos comerciais
modernos, é necessário que o produtor realize podas planejadas das gemas. O que
permite diminuir o número de cachos para que se produzam frutos de melhor
qualidade. Ademais, cortes regulares na própria planta são fundamentais para sua
renovação e contínua produção. As podas são maneiras de equilibrar a matéria
seca da planta com a parte verde, o que possibilita melhor rendimento e
aproveitamento da videira. Retirar os tocos e galhos secos permite também evitar
problemas com fungos e outros micro-organismos que atrapalham a saúde da videira
como um todo.
Por meio das
podaduras se prepara o futuro, ao mesmo tempo que gerencia o presente, os
recursos da parreira e suas condições. É estar atento e não se descuidar como
legítimo jardineiro fiel.
E nas
recomendações de Santo Agostinho: “Para trabalhar na vinha é preciso ser robusto
e poderoso; o homem deve ter o vigor que Deus lhe deu. Ele não criou a
Humanidade para a transformar em raça bastarda e macilenta; ele a fez como
manifestação de sua glória e de seu poder[12]”.
É dar o seu testemunho a Deus para tornar sacra a vida por meio de seu
protagonismo e também iniciativa nas obras de realização. Por isso, o jardineiro
próspero também é cocriador no jardim do mundo.
Além disso, por
meio das podas, as mudas são elaboradas para expansão do vinhedo. Nas
recomendações do autor espiritual: “Cortai os brotos e plantai-os em outro
campo; eles produzirão novas vinhas e outros brotos em todos os países do mundo[13]”.
E Santo Agostinho nos apresenta de forma magistral: “Essa vinha esplêndida que
deve erguer-se para Deus é o Espiritismo[14]”.
Uma autêntica ode ao futuro do Espiritismo.
Além do aspecto
da videira, destaca-se também que o vinho é bebida presente em diversas
passagens da Bíblia. Cita-se, por exemplo, o desembarque de Noé: “E começou Noé
a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha[15]”.
Adiciona-se também o primeiro milagre de Jesus nas bodas de Canaã com a
transformação da água em vinho[16],
além das valiosas passagens sobre os diferentes trabalhadores nas vinhas do
Senhor[17].
Entretanto,
nos Prolegômenos, não é citado diretamente a palavra vinho “vin”, mas
licor “liqueur”. Esta é uma bebida doce realizada por meio do contato prolongado
da fruta com o meio, no caso com o álcool, o que possibilita a transformação do
conteúdo que antes eram dois elementos separados em apenas um. Diferentemente do
vinho que passa por um processo de fermentação natural, o licor simboliza o
refinamento do trabalho humano em parceria com Deus. E como nos é recordado no
texto, apenas com o trabalho pode o indivíduo trazer a quintessência ao
espírito.
Deste modo, a
videira como emblema do trabalho do Criador serve como fonte de inspiração e
exemplo moral para levar adiante as nossas lutas diárias. De agradecer e
resistir às dificuldades para cumprir a nossa missão com zelo e dedicação. De
agir em prol da evolução presente e futura, e não ficar limitado ao que acontece
em nível de superfície. Ter a confiança e a fé da perfectibilidade mesmo que os
eventos aconteçam de modo sutil, invisível e silencioso. Ademais, precisamos
apoiar e auxiliar nossos semelhantes na caminhada também. É essencial que as
uvas estejam próximas do ponto de amadurecimento umas das outras. Caso
contrário, a falta de uma doçura geral não permitirá a produção adequada de
vinhos. A abundância não vem de apenas um único cacho, mas de todo o conjunto.
Portanto,
agradecemos a Deus pelas oportunidades de estarmos na vinha e a Jesus pelo
caminho e exemplo de dulcificação de nosso ser por meio do trabalho com
tolerância, da solidariedade com paciência e da inteligência com amor. Nas
palavras finais de Santo Agostinho: “Orai, amai e fazei a caridade, meus irmãos.
A vinha é grande, o campo do Senhor é imenso. Vinde, vinde: Deus e o Cristo vos
chamam e eu vos abençoo[18]”.
[1] LINK-1
[2] Allan
Kardec. Le Livre des Esprits. Nouvelle Edition Conforme A La Seconde
Edition Originale De 1860. Union Spirite Française Et Francophone. LINK-2
[3] Allan
Kardec. O livro dos Espíritos. 2013.
[4] LINK-3
[5] LINK-4
[6] Saunders,
A. (1993). Is it a proverb or is it an emblem? french manuscript
predecessors of the emblem book. Bibliothèque d’Humanisme et
Renaissance, 55(1), 83–111. LINK-5
[7] Ver
“Obras póstumas”, Allan Kardec, Item: Credo Espírita, educação e
instrução.
[8] Santo
Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos
Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 136.
[9] Lucas
5:37
[10] Marcos
2:22; Mateus 9:17
[11] O
Livro dos Espíritos, pergunta 168.
[12]Santo
Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos
Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 137.
[13] Santo
Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos
Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 136.
[14] Santo
Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos
Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 136.
[15] Gênesis
9:20
[16] João
2:11
[17] Mateus
20:1-16; Lucas 20:9-19; Marcos 12:1-11.
[18] Santo
Agostinho. “A Vinha do Senhor”. Revista Espírita: Jornal de Estudos
Psicológicos - 1862. Brasília: FEB, 2004, p. 137.