Pesadelo
Obra de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro,
consagrada na voz do grupo MPB-4, “Pesadelo” é uma
música de 1974 do cancioneiro nacional, com uma letra
marcante, forte, embalada em uma melodia um tanto
soturna, compondo uma peça musical que provoca a
reflexão de quem a ouve, em especial sobre aquele
momento histórico pelo qual passava o Brasil.
Destaca-se, para o fim desejado nessas linhas, o
trecho: “(...)Você vem me agarra, alguém vem me
solta/Você vai na marra, ela um dia volta/E se a força é
tua, ela um dia é nossa. (...)/Você corta um verso, eu
escrevo outro/Você me prende vivo, eu escapo morto/De
repente, olha eu de novo/Perturbando a paz, exigindo
troco.”
Um trecho que no contexto da música criticava a ação
repressiva do Estado diante dos desejos de liberdade da
população, que sobrevive diante da truculência das ações
inibidoras, por estarem embaladas em um sentimento mais
profundo. Mas, essas frases podem ser interpoladas para
um outro contexto, da atuação das casas espíritas (e
também espiritualistas) no tratamento da obsessão.
Definida no livro dos médiuns como o domínio que alguns
Espíritos podem adquirir sobre certas pessoas, a
obsessão encontrou na prática espírita instrumentos para
o seu tratamento, destacando-se reuniões mediúnicas nas
quais o esclarecedor dialoga com a entidade perseguidora
do encarnado, na busca de mediar aquele conflito e
encaminhar a busca de soluções, associado nessa labuta
por uma equipe espiritual.
Essa mecânica tem variações na diversidade da prática,
com invocações a partir do nome do paciente,
atendimentos ao espírito com a presença do obsidiado e
ainda, diálogos com a participação de espíritos
desencarnados outros incorporados simultaneamente, e que
auxiliam a ação mediadora. Práticas pouco estudadas de
forma sistemática, carentes de literatura especializada,
mas consolidadas no amplo espectro de casas espíritas ou
simpatizantes nesse país de dimensões continentais.
Existe, no entanto, trabalhos dessa natureza que se
fundamentam na ideia de que o foco é exclusivamente a
entidade desencarnada obsessora, e que para reduzir o
problema, faz-se necessário afastá-la do encarnado, na
visão de quem sem o obsessor, cessa a obsessão. Muitos,
até, falam de aprisionamento dessas entidades,
enxergando nestas falanges de inimigos, no bom estilo
“nós contra eles”.
Nesse ponto, faz-se necessário o resgate dos versos do
grande Paulo César Pinheiro, em um novo contexto, como
já citado, e que a despeito da ação truculenta, o agente
sempre retorna, mais cedo ou mais tarde, pois como pano
de fundo daquilo tudo existem sentimentos poderosos e
consolidados ao longo do tempo.
Isso por que a obsessão, como toda forma de domínio, é
fruto de uma relação, permeada de sentimentos
conflituosos e adoentados. Vingança, ódio, traição, e
outras forças poderosas que sustentam um espírito a
perseguir outro por anos a fio, e apenas o afastamento
forçado surge como um paliativo, relembrando sentença
popular no movimento espírita sobre isso, que traz a
metáfora de se estar afastando moscas sem cuidar das
feridas.
Importa cuidar de ambos os polos dessa relação
conflituosa, e da própria relação, em um trabalho longo,
e que depende muito mais da disposição desses do que da
ação da reunião mediúnica, que funciona, mais das vezes,
como um catalizador desse processo de cura. Não há
formula mágica para problemas complexos e enraizados.
O pesadelo só se extingue com o tratamento integral,
atuando nos atores desse processo e na complexa teia de
relações que se construiu, na qual o espírito obsessor é
um filho de Deus sofredor tanto quanto o encarnado que
busca o tratamento. E a obsessão figura como uma
expiação daqueles espíritos, na busca de reconstruir a
sua história, sendo uma das finalidades daquele processo
reencarnatório, que pode culminar, como mais das vezes,
com a encarnação do obsessor próximo ao obsidiado, para
a redenção conjunta no mundo da carne.
A era tecnológica na qual estamos encarnados nos ilude
de que para tudo existe uma solução simples e rápida, se
utilizarmos a técnica certa. Nesse escopo, pululam
mecanismos superestimados de resolução de problemas
profundos da alma humana e que estão sintetizados na
obsessão, e a ideia de afastar, isolar ou até mesmo
combater o espírito obsessor com uma gramática do
inimigo, além de ser superficial, é uma abordagem bem
diversa do que pregava o manso cordeiro que exaltava o
amor ao próximo e aos inimigos.