Artigos

por André Ricardo de Souza

 

Por que tratarmos da nossa permanência espírita nos 2% da população nacional?


Não coloco o critério da quantidade acima da qualidade quanto à adesão ao espiritismo, mas é, sim, realmente importante fazê-lo crescer para que se possa evitar o mal a mais pessoas, principalmente o suicídio (Kardec, 2022, p. 79-81), além de propiciar a elas esclarecedora consolação.

Embora o Brasil seja o maior país espírita do mundo, o espiritismo sempre se constituiu aqui como um segmento religioso minoritário. Cabe dizer que só foi possível apontar o tamanho real dele a partir do censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1980. Isto porque, nos censos anteriores, os espíritas eram contados junto com os adeptos dos cultos afro-brasileiros: umbanda e candomblé.

Comparativamente, o tamanho pequeno do espiritismo se deve sobremaneira a três fatores: 1) não ser uma religião trazida e propagada pelos colonizadores portugueses, lugar ocupado pelo catolicismo, a maior do país; 2) ser um grupo religioso composto predominantemente por pessoas de classe média e razoável escolaridade (Lewgoy, 2020), algo oposto à condição dos evangélicos, que constituem o segundo maior segmento religioso nacional, abrangendo (com sua vertente pentecostal), predominantemente, os mais pobres e menos escolarizados (Mariz; Gracino Junior 2013; Prandi 2013, p. 211-212); 3) o fato de uma parte (não grande) dos espíritas responderem ao IBGE dizendo que não têm religião, pois rejeitam a identidade religiosa do espiritismo (Arribas 2010; Lewgoy, 2013). Deve-se ponderar ainda que uma parcela das pessoas que se declaram espíritas nas pesquisas são, na verdade, umbandistas (Lewgoy, 2013). 

A enorme audiência do programa televisivo Pinga Fogo, da antiga TV Tupi, contendo longas entrevistas com Chico Xavier (exibidas em 28 de julho e 21 de dezembro de 1971), certamente, deu bastante impulso ao crescimento espírita. Infelizmente, isso não pode ser dimensionado devido à limitação censitária então vigente, como apontado acima. Em 1980, 1991, 2000 e 2010, o IBGE registrou, respectivamente, as seguintes proporções espíritas: 0,7%, 1,1%, 1,3% e 2,0%. Por sua vez, os católicos tiveram: 89%, 83,3%, 73,9% e 64,6%; já os evangélicos marcaram: 6,6%, 9,0%, 15,6% e 22,2%; e, por fim, o contingente dos sem religião obteve: 1,6%, 4,7%, 7,4% e 8,0. Cabe lembrar que devido à pandemia do Covid-19 e à combinação de irresponsabilidade e incompetência do atual governo federal o recenseamento de 2020 só começou a ser feito em agosto de 2022, não havendo ainda previsão de resultados. 

Chegou-se a imaginar que as comemorações pelo centenário do nascimento de Chico Xavier, em 2010 (principalmente os filmes de grandes bilheterias no cinema e audiências televisivas: “Chico Xavier” e “Nosso Lar”) dessem relevante impulso de expansão ao segmento espírita. Ao menos foi isso que a pesquisa amostral do Instituto Datafolha indicou em janeiro de 2017, apontando os espíritas com 4% da pulação nacional[1]. Ocorre que a pesquisa do mesmo Datafolha, feita em janeiro de 2022, mostrou o contingente espírita com 3%[2] e a de junho de 2022 apontou apenas 2%[3]. Mesmo ponderando que o instituto considera em seus levantamentos a margem de erro de dois pontos percentuais para cima e para baixo, o fato objetivo é que, tanto o censo de 2010 quanto a pesquisa amostral de junho de 2022 registraram o espiritismo com apenas 2% da população brasileira. Lembrando-se que, como visto acima, em todos os censos anteriores houve crescimento espírita.

Nos levantamentos do Datafolha, feitos entre janeiro e junho de 2022, o instituto mostrou um índice bem maior do grupo dos sem religião, se comparado ao censo de 2010, nada menos que 14%. Chamou bastante atenção a proporção de jovens em tal segmento: 25%[4]. Talvez a pandemia tenha contribuído para o crescimento desse contingente dos sem religião. A razão de haver alto índice de jovens que afirmam não ter religião passa pelo caráter inerente a eles de experimentações e pela diversidade de suas redes de sociabilidade, diferentes da religião, algo que abrange: escolas, redes sociais, grupos artísticos e de entretenimento. A grande elevação de jovens sem religião se mostra como principal ingrediente na explicação do fato de todo o segmento espírita, após 12 anos, permanecer com os mesmos 2% da população nacional. Embora tenham surgido, na última década, grupos de jovens voltados a estudos bíblicos, à luz da literatura espírita (Torres, 2019), isto não foi capaz de mudar tal realidade. Por um lado, as atividades nos centros espíritas, infelizmente, não se mostram efetivamente atraentes ao público juvenil. Por outro, posicionamentos polêmicos de determinadas lideranças espíritas parecem ter repelido jovens, sobremaneira os universitários, que são mais bem informados e críticos também. Isto se deu, ainda em 2018, através de controversos pronunciamentos político-ideológicos, abrangendo inclusive questões de gênero e sexualidade: orientação ou opção sexual (Barbosa 2019, p. 171; Arribas 2020, p. 615-617; Camurça 2021, p. 139-142; Souza; Torres, 2022, p. 229-231).

Diante de tal quadro o desafio maior do segmento espírita brasileiro parece ser o de fazer-se mais atraente e acolhedor aos jovens (Carvalho, 2022). Isto passa, necessariamente, pela priorização nas federações e nos núcleos espíritas do trabalho voltado a crianças e jovens, contemplando mais as causas do que efeitos, em termos de problemas espirituais. Implica em desenvolver atividades educativas, lúdicas, criativas, artísticas, dinâmicas, descontraídas e alegres, algo que não é contraditório com a seriedade cristã, cabe ressaltar. Os centros espíritas precisam ser bem menos sisudos, ou seja, fazerem-se mais leves e alegremente sóbrios. Talvez a valorização maior da música, contemplando a combinação de estilos juvenis e mensagens edificantes, seja o caminho mais fácil para iniciar tal mudança.

Ademais é preciso refletir seriamente sobre o que o Jesus Cristo faria, hoje, na Terra, em relação aos jovens considerados diferentes (socialmente discriminados, ainda). Tal desafio abrange a abertura para o diálogo responsável sobre questões que permeiam a juventude contemporânea, inclusive as relacionadas a gênero e sexualidade. Embora este seja tema de livros dos espíritos André Luiz e Emmanuel (Xavier; Vieira; Xavier, 2014; Guimarães, 2018), e tenha sido tratado por Chico Xavier no Pinga Fogo[5], é ainda um tabu nos núcleos espíritas. Trata-se de algo complexo que precisa ser valente e caridosamente enfrentado.

 


[1] Globo-1 - Acesso em: 14/04/2021.

[2] Globo-2 - Acesso em: 20/01/2022.

[3]  Folha.UOL - Acesso em: 29/06/2022.

[4] Globo-3 Acesso em: 25/05/2022.

[5] YouTube-1 - Acesso em: 10/04/2022.


Referências bibliográficas:

ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, espiritismo é religião? São Paulo: FAPESP; Alameda, 2020.

______ Política, gênero e sexualidade: controvérsias espíritas entre progressistas e conservadores”. Contemporânea. vol. 10, nº 2, 2020, p.  613-638.

BARBOSA, Allan Wine Santos. A construção espírita do problema do aborto: ordem espiritual e discurso público. Religião e Sociedade. vol. 39, nº 3, 2019, p. 152-172.

CAMURÇA, Marcelo Ayres. Conservadores x progressistas no espiritismo brasileiro: tentativa de interpretação histórico-hermenêutica. Plural, vol. 28, 2021, 136-160.

CARVALHO, Antonio Cesar Perri. Juventude: alertas sobre contextos sociais e espirituais. Boletim do GEECX. 27 de julho de 2022. LINK-1

GRACINO JUNIOR, Paulo; SOUZA, Carlos Henrique Pereira de. (2020), “Evangélicos e conservadorismo – afinidades eletivas: as novas configurações da democracia no Brasil”. Horizonte. vol. 18, nº 57, p. 1188-1225.

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o spiritismo (Capítulo 5: Bem aventurados os aflitos – O suicídio e a loucura). Araras, IDE, 2002.

LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista. São Paulo, Tese de doutorado em antropologia social, USP, 2000.

________ A contagem do rebanho e a magia dos números: nota sobre o espiritismo no Censo 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, Vozes, 2013.

MARIZ, Cecília Loreto; GRACINO JUNIOR, Paulo. As igrejas pentecostais no censo de 2010. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, Vozes, 2013.

PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, Vozes, 2013.

SOUZA, André Ricardo de; TORRES, Natália Canizza. As duas faces evangélicas do espiritismo brasileiro. Religião e Sociedade. 2022, v. 42, n1, p. 221-239.

TORRES, Natália Cannizza. Jesus a porta, Kardec a chave: a apropriação do Novo Testamento pelo segmento espírita. São Carlos. Dissertação de mestrado em sociologia, UFSCar, 2019.

XAVIER, Francisco Cândido. Vida e sexo.  Pelo espírito Emmanuel. 27ª edição. Brasília, FEB, 2007.

XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Sexo e Destino. Pelo espírito André Luiz. 64ª edição. Brasília, FEB, 2014.

 

O autor é doutor em sociologia pela USP, professor de sociologia da UFSCar, organizador de dois livros científicos publicados sobre o espiritismo e integrante do paulistano Núcleo Espírita Coração de Jesus (NECJ).


 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita