O dia do ser humano
Interessante costume, talvez uma longínqua tradição, o
de designarmos dias ou datas especiais para homenagear e
prestar reverência a pessoas, ainda vivas ou já
desencarnadas.
Há dias para todos os integrantes da família: pais,
jovens, crianças...; os chamados santos recebem a nossa
atenção quando escolhemos para cada dia um representante
específico beatificado; há datas especiais para os
profissionais de todas as categorias - médicos,
psicólogos, enfermeiros, aviadores, professores...;
etnias também oferecem opções - índios, pretos...; até
os irracionais, que hoje em dia já são tratados quase
como seres humanos, possuem o seu dia; dia do amigo, do
estudante, e pasmem, há mesmo um dia dedicado à
lembrança de Jesus, mas apenas um!
E, conforme o padrão das várias civilizações e culturas,
nestes dias extraordinários a forma rotineira de honrar
o homenageado reduz-se, por incrível que pareça à
aquisição de um presente, um bem material qualquer, para
demonstrar quanto este homenageado significa para nós e
para a sociedade. O amor e consideração que afirmamos
possuir em nosso mais profundo íntimo, e que temos tanto
em conta, acabam expressando-se por um bibelô, uma peça
de roupa, um brinquedo, mas para a maioria apenas por
uma lembrancinha, nestes tempos de tanta escassez
de notas e moedas em nossas magras carteiras.
Estranho comportamento, pois, no cotidiano, expressiva
parcela destes mesmos que fazem questão absoluta de
reverenciar o escolhido do dia, fazendo desta data um
momento quase ritualístico, uma ocasião beirando o
sagrado, desrespeitam o seu próximo de modos incontáveis
e inimagináveis, na maior parte dos outros dias do mesmo
ano, basta observar o noticiário do cotidiano para se
convencer desta realidade.
É uma avalanche de manchetes que em grande maioria
informam sobre atitudes desrespeitosas entre as pessoas:
brigas, assassinatos, corrupção, guerras, conflitos...,
isto é o que se vê e escuta em qualquer programa de
notícias, não importa a hora do dia. Neste festival de
iniquidades ninguém escapa: jovem, idoso, branco, preto,
alto, magro, basta estar vivo para ser desrespeitado por
outros e pelo sistema em que vivemos.
A nossa legislação chega ao despropósito, ao absurdo de
liberar a saída de presos para homenagear pais que foram
mortos por estes que estão provisoriamente encarcerados:
sinal dos tempos!
E a razão para tantos disparates é simples: uma vez que
a humanidade, em sua grande maioria, ainda se situa em
patamares pouco elevados considerando-se a moral e os
bons costumes, advém assim desta pouca evolução o
entendimento de que homenageando este ou aquele em um
singelo dia do ano, estaríamos cumprindo o nosso dever
de nos vermos como iguais, verdadeiros irmãos, sem
distinções de qualquer modalidade.
Seria esta singular conduta uma tentativa de aliviar a
nossa consciência culpada dos delitos perpetrados contra
o próximo ao longo de nossas anteriores existências, ou
mesmo nesta, elegendo um dia para cada próximo, de
acordo com a sua posição na sociedade? Talvez apenas
mais uma forma de alimentar o sistema materialista em
que muitas sociedades se inserem, inclusive a nossa?
Demorará muito para finalmente alcançarmos a consciência
de que só há necessidade de homenagear o dia do ser
humano, ou melhor, o dia do ser vivo,
acontecendo diariamente, quando bastaria ao Espírito ter
alcançado a condição de existir fisicamente para ser não
só homenageado, pois é filho do Deus único, mas
igualmente respeitado em todos os seus direitos,
incluindo o mais básico de todos o de viver plenamente,
em condições humanas.
E mais, homenageando o ser vivo, não cometeríamos mais
atrocidades contra os irracionais, caçando por puro
prazer, destruindo sistematicamente seus habitats,
como se vê no mundo.
Além disso, passaríamos a respeitar a Natureza que, pela
forma como tratamos o meio ambiente, sugere que a
Natureza é nossa inimiga, como se assiste hoje em dia na
Terra, particularmente em nossa nação, quando nos esforçamos para
devastar as nossas matas e florestas.
Devemos homenagear o semelhante naturalmente, sem
imposições de datas, nem de convenções, pois, enquanto
precisarmos de dias especiais para reverenciar e lembrar
este ou aquele, certamente estaremos muito distantes do
que espera Deus da humanidade.