Pobreza, drogas, brigas entre gangues, pais ausentes, desamor, facilidade de
acesso a armas, preconceito, superpopulação, desigualdades sociais, entre
outros, são fatores sociais que facilitam a eclosão da violência, da
criminalidade, do suicídio e dos transtornos mentais.[i]
No entanto, segundo parcela respeitável dos estudiosos espíritas, tem-se
observado uma significativa carência de debates espíritas em torno dos fatores sociais
dos problemas humanos. Afirmam, com propriedade, que as palestras e seminários
espíritas focam quase que unicamente nos fatores pessoais, psíquicos ou
espirituais da corporeidade, relegando a plano secundário os elementos sociais
implicados no sofrimento e nas decisões do Espírito encarnado.
Deolindo Amorim, sociólogo e jornalista conceituado, propondo um diálogo do
Espiritismo com as ciências sociais, escreveu: [ii]
O
movimento espírita não pode ficar alheio aos problemas sociais, cumprindo-lhe,
por isso, interferir na solução desses problemas; devemos desenvolver e
aprimorar cada vez mais a consciência de participação na vida social, em
harmonia com o legítimo pensamento da Doutrina, que não quer o espírita fora do
mundo, mas dentro do mundo, ajudando a transformá-lo.
E
ainda, Deolindo:
É
verdade que a Doutrina se preocupa, acima de tudo, com o lado espiritual da
vida, mas nem por isso devemos desconhecer as omissões da sociedade, que é
culpada de muitos dramas e conflitos por causa de sua indiferença diante de
injustiças de toda ordem. E a sociedade somos todos nós, logo também nos cabe
uma parte de responsabilidade. [...] Não se compreende tamanha desigualdade sob
o céu de uma civilização cristã.
Não podemos, todavia, responsabilizar a literatura espírita em geral, e as obras
de Kardec, em particular, por este fenômeno, pois uma farta referência sobre as
influências do meio sobre o Espírito está à disposição do leitor espírita.
Emmanuel, em obra de 1940, chamava a atenção que se
faz indispensável que o coração esclarecido coopere na transformação do meio em
que vive para o bem, melhorando e elevando as condições materiais e morais de
todos os que vivem na sua zona de influenciação. [iii]
Fornecendo
elementos teóricos que nos auxiliem na melhor compreensão da relação Espírito
encarnado/ambiente, apresentamos algumas considerações extraídas de textos
kardequianos, relacionando-as com três assertivas extraídas dos próprios textos.
Primeira
assertiva: A evolução possui um componente pessoal, ligado ao esforço próprio, e
um componente solidário, vinculado a uma preocupação com o todo, daí o
compromisso de cada um em colaborar com o desenvolvimento coletivo.
A encarnação tem ainda outra finalidade, que é a de pôr o Espírito em condições
de enfrentar a sua parte na obra da criação. É para executá-la que ele toma um
aparelho em cada mundo, em harmonia com a sua matéria essencial, a fim de nele
cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. E dessa maneira, concorrendo
para a obra geral, também progride. A ação dos seres corpóreos é necessária à
marcha do Universo. Mas Deus, na sua sabedoria, quis que eles tivessem, nessa
mesma ação, um meio de progredir e de se aproximarem d'Ele. É assim que, por uma
lei admirável da sua providência, tudo se encadeia, tudo é solidário na
Natureza. LE, item 132
Não há homens reduzidos à mendicidade por sua própria culpa?
- Sem dúvida. Mas se uma boa educação moral lhes tivesse ensinado a praticar a
lei de Deus, não teriam caído nos excessos que os levaram à perda. E é disso,
sobretudo, que depende o melhoramento do vosso globo. LE, item 889
[...] os Espíritos devem concorrer para o progresso recíproco. LE, item 218.
Segunda assertiva: A encarnação coloca o Espírito sob fortes influências
ambientais, que se relacionam evidentemente com a formação de sua personalidade
e com suas atitudes perante a vida. Essa influência será tanto maior quanto
menor a sua condição evolutiva, considerada do ponto de vista intelectual e
moral.
O
homem conserva, em suas novas existências, os traços do caráter moral das
existências anteriores?
- Sim, isso pode
acontecer. Mas ao melhorar-se ele se modifica. Sua posição social também pode
não ser a mesma. Se de senhor ele se torna escravo, suas inclinações serão muito
diferentes e teríeis dificuldades em reconhecê-lo. O Espírito sendo o mesmo, nas
diversas encarnações, suas manifestações podem ter, de uma para outra, certas
semelhanças. Estas, entretanto, serão modificadas pelos costumes da nova
posição, até que um aperfeiçoamento notável venha a mudar completamente o seu
caráter, pois de orgulhoso e mau pode tornar-se humilde e humano, desde que se
haja arrependido. LE, item 216
O meio em que certos homens vivem não é para eles o motivo principal de muitos
vícios e crimes?
- Sim, mas ainda nisso há uma prova escolhida pelo Espírito no estado de
liberdade; ele quis se expor à tentação para ter o mérito da resistência. LE,
item 644
Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua
pode faltar o necessário. Porém, suas próprias faltas são frequentemente
resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a lei de Deus, terá uma
ordem social fundada na justiça e na solidariedade e ele próprio também será
melhor. LE item 930
Credes ter adquirido toda perfeição moral de que o ser seja susceptível na
Terra? Falando doutro modo, supondes haver pessoas que valham mais que vós?
Credes que as haja valendo menos do que vós? Entre todos os homens que têm
vivido na Terra desde que é habitada, haverá muitos que hajam atingido a
perfeição? Haverá muitos que não puderam alcançar essa perfeição por causas
independentes de sua vontade, isto é, porque não estavam em situação de ficar
esclarecidos sobre o Bem e o Mal? Se a condição dos homens após a morte é a
mesma para todos, será preciso fazer o bem em vez de o mal? Se, ao contrário, a
condição é relativa ao mérito adquirido, acharíeis justo que os, de quem não
dependeu se acharem impuros, ficassem privados da ventura para sempre? LE,
primeira edição, nota 04 de Kardec
Não desejam esses Espíritos abreviar seus sofrimentos?
- Desejam-no, sem dúvida, mas falta-lhes energia bastante para quererem o que os
pode aliviar. Quantos indivíduos se contam, entre vós, que preferem morrer de
miséria a trabalhar? LE, item 995
De acordo com isso, a diversidade das aptidões no homem decorre unicamente do
estado do Espírito?
- Unicamente não é de todo exato. As qualidades do Espírito, que pode ter uma
maior ou menor evolução, constituem o princípio, mas é necessário ter em conta a
ascendência da matéria que entrava para mais ou para menos o exercício dessas
faculdades. LE, item 370
Examinando um caso de suicídio relacionado à miséria humana (O padeiro
desumano), o Espírito Lamennais fez a seguinte apreciação sobre o fato em
questão:
“Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa
sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias;
julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso
afirmar: esta infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha.
É que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a
justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência [...] Esta
mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e este homem é amaldiçoado porque
lhe recusou pão. Ó Deus! quando, pois, todos os teus dons serão reconhecidos e
postos em prática? Aos olhos da tua justiça, aquele que recusou o pão será
punido, porquanto o Cristo disse: Aquele que dá pão ao seu próximo, a mim mesmo
o dá.” Revista Espírita, maio de 1862
Quem não conhece a força de arrebatamento que domina as aglomerações onde há
homogeneidade de pensamentos e de vontades? Não se poderia imaginar a quanta
influência estamos assim submetidos, com o nosso desconhecimento. Essas
influências ocultas não podem ser a causa determinante de certos pensamentos?
Desses pensamentos que nos são comuns, no mesmo instante, com certas pessoas;
desses vagos pressentimentos que nos fazem dizer: Há qualquer coisa no ar que
prenuncia tal ou tal acontecimento? Enfim, certas sensações indefiníveis de
bem-estar ou de mal-estar moral, de alegria ou de tristeza, não seriam de nenhum
modo o efeito da reação do meio fluídico no qual estamos dos eflúvios simpáticos
ou antipáticos que recebemos e que nos envolvem como as emanações de um corpo
perfumado?
Se se pudesse duvidar do mecanismo imenso que o pensamento põe em jogo, e dos
efeitos que ele produz de um indivíduo a outro, de um grupo de seres a um outro
grupo, e, enfim, da ação universal dos pensamentos dos homens uns sobre os
outros, o homem ficaria deslumbrado! Sentir-se-ia aniquilado diante dessa
infinidade de detalhes, diante dessas redes inumeráveis ligadas, entre si, por
uma poderosa vontade, e agindo harmonicamente para alcançar um objetivo único: o
progresso universal. Obras póstumas, Introdução ao estudo da fotografia do
pensamento
Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode sofrer
necessidades, a não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem são
frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a
lei de Deus, disporá de uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e
com isso ele mesmo será melhor. LE, item 930.
Terceira
assertiva: Ao nos submetermos às leis da corporeidade passamos a viver sob
poderosas influências do corpo e do ambiente. Ainda assim, prevalece, na imensa
maioria das vezes, o nosso livre-arbítrio em ceder ou não aos arrastamentos.
Negar a opção da escolha individual seria o mesmo que aliar-se às estultices do
materialismo.
Quando o homem está mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se torna para
ele um arrastamento quase irresistível?
- Arrastamento, sim; irresistível, não; porque no meio dessa atmosfera de vícios
podes encontrar grandes virtudes. São Espíritos que tiveram a força de resistir,
e que tiveram, ao mesmo tempo, a missão de exercer uma boa influência sobre os
seus semelhantes. LE, item 645
[...] para julgar um indivíduo, é preciso ter em conta o grau de influência de
cada um, em razão de seu desenvolvimento, depois fazer entrar na balança o
temperamento, o meio, os hábitos e a educação. Revista Espírita, 1862, pág. 95.
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i Psicologia social, cap. 10, Aroldo Rodrigues e col.
ii O Espiritismo e os problemas humanos, Deolindo
Amorim, parte I, Definição e opção.
iii O Consolador, item 121.