Kardec racista?
Surge no horizonte cultural humano a onda da revisão de
conteúdo de clássicos da literatura mundial, com a
justificativa não apenas de modernizar a linguagem do
autor de uma época passada, mas de amenizar palavras e
ideias para uma sociedade atual que combate o racismo, a
misoginia, a discriminação de gênero e assim por diante.
É um movimento delicado, com muitos defensores e também
muitos críticos, ou seja, com muitos prós e contras
Aqui no Brasil já se tentou mudar os escritos de
Monteiro Lobato, que seriam racistas. De nossa parte
consideramos o escrito como território sagrado. Ninguém
tem o direito de alterar, modificar o que o autor da
obra escreveu. Agora, tanto o tradutor, quando se trata
de obra estrangeira, ou a editora podem perfeitamente
criar notas de rodapé contextualizando a fala do autor
com sua época e com a época atual. O texto original fica
preservado e explicado para o leitor. Acreditamos que
esse seja o melhor caminho.
Uma obra que já esteja em domínio público pode ser
publicada por várias editoras. Como vamos saber qual é o
texto original se cada editora mudar o escrito a seu bel
prazer, com a justificativa de estar amenizando termos e
corrigindo conceitos do autor?
Bem, esse movimento cultural não deixou de fora o
Espiritismo. Não é de hoje que vemos propostas de
modernizar as obras da Codificação, ou seja, aquelas
assinadas por Allan Kardec. Afinal, como opinam os
críticos, os livros foram escritos no início da segunda
metade do século dezenove…
E daí? – perguntamos. Por terem mais de cem anos devem
ser consideradas obsoletas? E que dizer, então, das
obras do filósofo grego Platão, que têm mais de dois mil
anos?
Mas acontece que em vários trechos de seus livros Kardec
– dizem então –mostra-se racista. Como? Kardec racista?
Como pode ser isso se ele sempre representou com
dignidade, ética e humildade o Espiritismo, que é uma
doutrina que prega a fraternidade, a solidariedade, o
respeito ao próximo e o amai-vos uns aos outros? Que
proclama que os direitos entre homens e mulheres são
iguais?
Os críticos de Kardec parecem que se esqueceram de
contextualizar Kardec e sua época, e que ele sempre
distinguia nos seus escritos o que provinha da
universalidade do ensino dos espíritos, e o que era
elaboração dele no terreno das hipóteses.
À época, e eis aqui um exemplo de nota explicativa ao
texto original, o conhecimento europeu sobre a África e
a Ásia era difuso, pouco confiável, baseado em
narrativas de viajantes por esses continentes, relatos
esses muitas vezes repletos de preconceitos, pois a
Europa havia ficado fechada em si mesma durante séculos
e o europeu considerava-se superior aos demais povos.
Alguns exemplos utilizados por Kardec trazem essa
cultura, mas não são ensinos dos Espíritos e, portanto,
não fazem parte do edifício doutrinário.
Bastariam algumas notas explicativas para que tudo
ficasse perfeitamente elucidado, esclarecido, mostrando
que Kardec nunca foi racista, mas estava à mercê da
cultura e conhecimentos da metade do século dezenove no
mundo europeu.
Esse movimento de revisão e verdadeira adulteração das
obras de Kardec está capitaneada pelo coletivo Espíritas
à Esquerda. Eles possuem seu ponto de vista. Se
acontecer um coletivo de Espíritas à Direita, qual será
seu ponto de vista?
Serão, um e outro, apenas pontos de vista, suscetíveis
de enganos e questionamentos.
No fundo, o que temos é ignorância doutrinária. Como
dizia o saudoso e respeitado professor, filósofo e
escritor José Herculano Pires, o Espiritismo continua
sendo, por parte dos próprios espíritas, esse grande
desconhecido.
Não precisamos de edições antirracistas das obras de
Allan Kardec. Precisamos é deixar de lado pontos de
vista para, diante do Espiritismo, nos transformarmos,
nos melhorarmos, pois se assim não fizermos haveremos,
com o tempo, de deturpar de tal modo a doutrina, que ela
ficará irreconhecível, como fizemos ao longo da história
com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Salvemo-nos dessa aberração histórica.
Marcus De Mario é educador, escritor e
palestrante. Coordena o Seara de Luz, grupo de estudo
online do Espiritismo, Publica o canal Orientação
Espírita no YouTube, Possui mais de 30 livros
publicados.