All You Need Is Love
Estas breves linhas surgem de uma inspiração profunda,
ouvindo a música dos rapazes de Liverpool All You
Need Is Love, que surge incidentalmente no
maravilhoso e distópico filme “Yesterday - A Trilha
do Sucesso”, de 2019, dirigido por Danny Boyle,
sendo para mim uma obra-prima recente, e que com
linguagem poética mescla a complexidade e a simplicidade
do mundo atual.
Essa supersimplificação das coisas em um mundo tão
complexo é que instigou essa reflexão. Assustados com o
mundo tão complicado, e que sempre esteve lá, mas que se
vê descoberto e assimilado, em especial pela tecnologia,
em toda a sua estranheza, buscamos simplificar as
coisas, apresentando a nós mesmos soluções e explicações
elementares para questões intrincadas, que envolvem
nuanças e aspectos ocultos.
Assim, ouvimos nas ruas e nas redes que a culpa é do
comunismo. Ou do capitalismo. E, ainda, que nos basta
ter força de vontade, querer. Que tudo o que precisamos
é de amor. Um desfile de soluções simples, pasteurizadas
e superficiais para a vida e seus “Wicked Problems”,
termo que designa tecnicamente, no campo das políticas
públicas, problemas que têm muitos fatores
interdependentes, tornando-os impossíveis de terem uma
resolução rápida.
E a fé, aquela que o Espiritismo se propõe com o
adjetivo de raciocinada, pode ser um subterfúgio para
essas simplificações, com seus mistérios inquestionáveis
e porta-vozes monotônicos. Mas, temos nós, os espíritas,
também nossos mantras reducionistas das questões do ser,
do destino e da dor. É a falta de Deus, é combater o
orgulho e o egoísmo, é o sofrimento que purifica pela
lei do Karma.
Simplificar é uma forma de digerir problemas grandiosos,
antigos e um tanto indigestos. Um artifício, uma
estratégia de sobrevivência em um mundo que se apresenta
tão confuso e desesperançoso. Mas, também é uma forma de
ignorar o que deve ser feito, com soluções fantasiosas e
pouco efetivas frente ao que se poderia realmente fazer.
Chega-se assim ao tema central deste artigo. Uma
simplificação que tem andado na moda entre os espíritas,
diante dos acontecimentos desastrosos da vida cotidiana:
a transição planetária. Uma ideia de que estamos
passando de um mundo de provas e expiações em direção à
classificação de mundo de regeneração, trazida, bem
verdade, e com as devidas vênias, por Kardec em A
Gênese, quando fala da “Geração nova”, mas em um
sentido bem diverso do que se vê hoje, considerando-se
ainda que o texto kardequiano tem mais de 150 anos.
Mas a coisa se acentuou mais ainda com o frenesi
apocalíptico que tomou conta do mundo nos anos 2.000,
com uma raiz no medo do flagelo nuclear da década de
1970 redesenhado, e com derivações de calendário maia,
meteoros e outras coisas que fazem com que estejamos a
duas décadas com esse papo de fim de mundo, em uma
simplificação na visão de um mundo que muda em uma
velocidade ciclópica.
E o espírita médio, imerso nesse caldo de promessas do
fim que virá, reduz cada catástrofe, crime hediondo ou
desastre que recebe pela imprensa e pelas redes sociais
ao mantra anestésico de que é por conta da transição
planetária. E volta aos seus afazeres domésticos,
aplacada a sua consciência. Suprem-se assim debates,
análises e soluções, que poderiam gerar ações,
movimentos, no micro e no macrocosmo social, que
resultariam em melhorias no mundo real, o sentido
profundo da palavra evolução.
A transição planetária não pode ser uma venda que reduza
a capacidade de análise dos espíritas, um traço marcante
desse grupo, e que nos tire, consequentemente, a
capacidade de agir. A ideia de fim de mundo mexe com
medos ancestrais, presente em várias culturas, inclusive
no cristianismo, e traz em si uma esperança
imobilizadora de que nos basta esperar os acontecimentos
inexoráveis, fruto de um Deus decepcionado com a sua
criação.
Jesus nos ensinou que o reino de Deus é uma construção
cotidiana, e problemas sociais gritantes que batem à
nossa porta pelas notícias são avisos de que algo
precisa ser feito, por cada indivíduo ou grupo, dentro
das suas possibilidades, buscando reduzir a chance
daquele quadro não se repetir, e não jogar tudo no
diagnóstico simplificador da transição planetária ou
qualquer outro chavão popular.
John Lennon e Paul McCartney estavam cobertos de razão
ao dizer que tudo o que precisamos é de amor. Jesus,
aliás, também disse isso. Nós é que subestimamos o amor,
entendido como algo simples, e superficial, mas que na
verdade é uma força complexa e profunda, que move homens
e mundos, sendo a verdadeira essência divina. (*)
(*) A frase All You Need Is Love significa
em português: tudo
que você precisa é de amor.