Sobre fomes,
apetites,
desesperos e
gulodices
Há alguns anos,
dois amigos de
movimento
espírita se
casaram. A
cerimônia foi no
sítio da família
do noivo, em uma
cidade distante
cerca de 100km
de Petrópolis
(RJ), onde moro.
Decidimos fretar
um ônibus.
Assim, todos os
convidados da
Cidade Imperial
iriam juntos. E
chegariam com
mais segurança
ao local, já que
nem todos
conhecem a
cidade, e o
sítio está
situado na zona
rural. A família
da noiva é de
Petrópolis; a do
noivo, de outra
cidade vizinha.
E havia também
convidados de
outras cidades,
inclusive da
capital.
A cerimônia
civil estava
marcada para o
meio-dia, se não
me engano. Em
seguida, seria
servido um
opíparo almoço,
já que a família
do noivo é
proprietária de
vários
restaurantes.
Para que todos
chegassem a
tempo ao sítio,
tiveram de
acordar cedo e
se produzir como
convém à
ocasião. E todo
mundo tomou café
da manhã bem
cedo também. Eu,
inclusive.
Era um sábado de
feriado
nacional, não me
lembro qual.
Casamento em
zona rural, ou
seja, nada de
mercados,
lanchonetes e
afins. E se
houvesse, talvez
estivessem
fechados. Tudo
pronto para a
cerimônia. Noivo
e convidados a
postos. Deram
12h, 13h, 13h30
e nada da noiva.
Motivo: só havia
um cabeleireiro
e várias
mulheres para
serem penteadas.
Além da nubente,
havia a mãe e a
sogra dela, além
das madrinhas.
Uma agitação se
instalou entre
os convidados.
Todos haviam
tomado café da
manhã muito cedo
e ninguém
conhecia a
região para sair
em busca de
algum lanche.
Mesmo porque,
não havia nada
por perto. E era
feriado, ainda
por cima. Quem
poderia garantir
se
encontraríamos
algo
funcionando? A
agitação foi se
transformando em
desespero
causado pela
fome; e nada da
noiva chegar.
Foi quando o pai
do noivo mandou
improvisar uma
tenda, na qual
foram colocadas
dezenas de pães
franceses, além
de fatias e mais
fatias de queijo
prato e
presunto. Devem
ter vindo de
alguma padaria
da região. Foi
um Deus nos
acuda! Os
convidados,
todos
devidamente
engalanados,
maquiados e
penteados, se
acotovelaram, na
disputa por um
sanduíche.
Eu e os amigos
de movimento
espírita apenas
observávamos.
Aliás, tiro o
chapéu para a
turma espírita
que estava
presente. Nenhum
de nós, apesar
da fome, avançou
na tenda.
Patrícia, uma
amiga, pediu
para que eu, de
forma
civilizada,
fosse até lá e
fizesse um
sanduíche para
ela. Aquiesci e
me aproximei
tranquilamente.
À minha frente,
uma elegante
senhora, entre
desesperada e
esbaforida,
terminava de
colocar várias
fatias de queijo
e presunto no
pão. Não me
arrisquei a
entrar no
embate. Preferi
aguardar um
pouquinho que
fosse.
Subitamente, só
eu fiquei no
local. Todos já
haviam preparado
suas iguarias
improvisadas e
se afastado.
Havia sobrado
meia banda de
pão francês.
Achei curioso
como tanta gente
faminta havia
deixado aquela
metade de pão
para trás. Será
que alguém
montou o sanduba
só com a outra
banda do pão?
Vali-me, então,
de um guardanapo
que também
sobrara, peguei
aquele pão,
levei até
Patrícia e disse
que era o que
havia restado
para contar a
história. Como
ela preferiu não
comer meia banda
de pão seco,
coloquei a
iguaria de volta
na mesa da
tenda. Vai que
alguém ainda à
cata de uma
migalha pudesse
se interessar?
Felizmente,
minutos depois,
a noiva chegou,
o casamento se
concretizou, o
almoço foi
servido e todo
mundo se
refestelou.
Confesso a vocês
que foi um
experimento e
tanto ver como a
fome faz muita
gente descer do
salto. E isso
num caso de fome
momentânea! Fico
imaginando como
deve ser com
quem padece de
fome crônica.
É bem
interessante
notar como a
comida que é
ofertada causa a
mais variada
gama de reações.
No caso que
narrei,
tratava-se de
uma cerimônia
formal. Um
enlace
matrimonial.
Ninguém foi lá
para comer,
embora soubesse
que haveria
almoço seguido
de mesa de
doces, bolo de
casamento etc. E
de fato foi uma
tarde bem farta
e variada. Mas
como todos os
estavam há
muitas horas sem
comer, os
sanduíches
improvisados – e
nos quais muitos
dos presentes
não tocariam se
fizessem parte
do menu oficial
– se
transformaram
num manjar dos
deuses a saciar
a fome de
adultos e
crianças
solenemente
trajados para a
ocasião.
Festas de
casamento,
aliás, são
excelentes
ensejos para
observamos a
relação que
temos com
fartura de
comidas e
bebidas. Já
presenciei cenas
que foram do
divertido ao
patético. Entre
elas, casamentos
em que os
convidados
depenaram a mesa
de doces logo no
início da festa.
De nada adiantou
as famílias dos
noivos pedirem
para os convivas
deixarem a mesa
intacta até o
momento das
fotos e de
cortar o bolo.
As trufas,
“fondants”,
bem-casados e
afins foram
atacados sem dó
nem piedade. E
isso com o
jantar sendo
servido! Creio
que a profusão
de cores, aromas
e sabores faz a
turma comer com
os olhos. E como
o olho é maior
que a barriga,
lá se vai a mesa
de doces para o
tombo! E tem a
ver com falta de
educação também,
convenhamos! Tem
gente que não
pode ver comida
bonita, arrumada
e em profusão.
Às vezes não
sobram nem os
objetos de
decoração que
pertencem ao
local onde a
festa aconteceu.
Já ouvi de um
cerimonialista
que ele teve de
cobrar dos
noivos por
alguns jarros
que os
convidados
levaram para
casa. Jarros que
eram propriedade
da empresa de
cerimonial.
Não precisamos,
contudo, de um
casamento com
pompa e
circunstância
para atestarmos
como do egoísmo
derivam todos os
males que
assolam a
humanidade, como
diz a questão
913 de “O Livro
dos Espíritos”,
de Allan Kardec.
Falarei sobre
dois que têm a
ver com o
assunto em
questão.
O primeiro mal é
a gulodice, que
faz o cidadão
pensar só em si
na hora de se
servir. Certa
vez, num
restaurante a
quilo, uma
senhora se
deparou com dois
pratos à base de
camarão. Um
deles era chuchu
com camarão. Do
outro, não me
lembro. Eu
estava
imediatamente
atrás dela. A
mulher ficou
maravilhada e
começou a falar
para si mesma (e
para mim também,
creio) que
adorava camarão,
que era uma
iguaria
estupenda e
coisa e tal. Em
seguida, pegou
todo o camarão
que havia nos
dois pratos. O
chuchu com
camarão virou
chuchu com
chuchu. O outro
prato também
ficou desprovido
do apreciado
fruto do mar. A
mim não afetou,
e por um motivo
bem simples:
detesto camarão!
Mas os clientes
que vinham em
seguida a mim
decerto
gostariam de se
servir de tão
badalada
iguaria. Não
puderam porque a
lépida
senhorinha de
classe média
sequestrou o
camarão só para
si.
O outro mal é o
parco acesso que
boa parte da
população tem a
uma mesa farta,
nutritiva e
colorida. Por
isso, quando se
depara com uma
situação de
fartura, a gula
fala mais alto.
Uma gula que
pode ser
sinônimo de uma
fome nunca
dantes saciada.
E não falo
somente sobre
barriga vazia,
mas sobre
barriga que
nunca teve
acesso a uma
alimentação rica
e variada. A
isso, Maria
Luíza, amiga e
colega de
trabalho por
muito tempo, dá
o nome de fome
tardia.
Marilu, como eu
a chamo, teve
uma empregada
que vivia
comendo em
excesso. Até de
um vinho de
baixa qualidade
que minha amiga
guardava para
temperar a carne
de vez em
quando, a
empregada deu
cabo. O mesmo
destino tiveram
algumas
garrafinhas de
uma bebida que
ela comprou
porque iria
receber um casal
de amigos.
Quando abriu a
geladeira, dos
seis exemplares
que Maria Luíza
havia comprado,
só restavam
dois. A
empregada tomara
quatro. E fazia
a mesma coisa se
Marilu comprasse
quindins,
cocadas,
pastéis, caquis,
morangos,
quibes,
pêssegos... É a
fome de quem
sempre come mal
e, ao se deparar
com fartura,
engole tudo para
compensar a fome
por uma despensa
cheia e por não
saber quando
haverá ensejo de
comer bem
novamente.
Na mesma questão
913 de “O Livro
dos Espíritos”,
Kardec ressalta
que o egoísmo é
incompatível com
a justiça, o
amor e a
caridade. Já na
questão 875-a, é
dito que a base
dessas três
virtudes é
querermos para
os outros o
mesmo que
queremos para
nós mesmos. Aí,
cabe a pergunta:
por que nem
sempre queremos
para os outros a
qualidade do que
queremos para
nós mesmos? Isso
me faz lembrar
um então
prefeito
brasileiro, que
sugeriu dar
ração como
merenda escolar.
Acharíamos justo
se nossos filhos
comessem ração
humana na hora
do recreio? Ou
será que
pensamos que só
nossas crianças
têm direito a
levar sucos,
sanduíches,
frutas e bolos
na lancheira?
Julgamos natural
que algumas
crianças tenham
direito a uma
merenda farta
enquanto outras
comem ração? Se
a resposta é
positiva,
aconselho
pesarmos
direitinho na
balança da nossa
consciência o
que de fato quer
dizer a palavra
cristão.
Volto a “O Livro
dos Espíritos”.
Dessa vez, na
questão 803, a
primeira do
capítulo sobre a
lei de
igualdade.
Kardec indaga se
todos os homens
são iguais
perante Deus. Os
amigos
espirituais
respondem que
todos tendem
para o mesmo
fim, que o sol
nasce para todos
e que todos são
submetidos às
mesmas leis da
natureza. Em
suma, todos têm
as mesmas
necessidades,
alegrias, dores
físicas e
morais. Tenhamos
em mente que a
dor da fome,
seja ela crônica
ou momentânea, é
imensurável e,
antes de tudo,
imoral. Afinal,
o mundo tem
capacidade de
sobra para que
todos tenham uma
alimentação rica
e saudável. Se o
sol nasce para
todos, há água,
terra, ar, além
de frutas,
legumes,
verduras e
cereais para
todos. O que
atrapalha é a
proposital má
gestão dos bens
que o planeta
produz a fim de
que os poderosos
de sempre sejam
beneficiados. A
isso se dá o
nome de egoísmo,
a maior de todas
as chagas morais
que aturdem o
homem.
Bibliografia:
1- KARDEC,
Allan – O
Livro dos
Espíritos,
60ª edição,
1986, Federação
Espírita
Brasileira
(FEB), Brasília,
DF.