Vida e obra de Hermínio Miranda: Hermínio
– por ele mesmo
A leitura do que o autor redigiu sobre os temas
do título leva-nos a destacar alguns detalhes, ao falar
dele mesmo, de sua própria vida.
Entre eles, sua real modéstia e absoluta dedicação à
arte de escrever – o que se percebe ao olhar sua
vastíssima obra. Raras eram suas entrevistas – e quando
ocorriam falava dos estudos de nossa amada Doutrina
Espírita, de sua importância para a Humanidade,
sobretudo nos tempos que temos vivenciado.
Tratou de variados temas que interessam aos que se
dedicam ao estudo e ao trabalho – irmãos siameses na
Doutrina Espírita!
Eis o que registrou: “Sempre
gostei de resgatar do injusto esquecimento, obras
raras.”
“Amai-vos uns aos outros, este o primeiro ensinamento;
instruí-vos, este o segundo.” 1
Não fugiu de temas complexos e ou raros os simplificava,
para facilitar nosso entendimento.
A meu entendimento, duas recomendações poucas vezes
observadas no meio espírita! O que é lamentável!
Hermínio observou sempre ambas. Sua extensa obra não
seria redigida sem o estudo; e o fato de divulgá-la –
com renúncia pelos direitos autorais, doados a inúmeras
Instituições Espíritas –, revela seu amor ao semelhante.
Imortalizou seus escritos, divulgando-os.
Apreciemos, pois, a seguir, o que revelaram sobre ele:
*
Hermínio Corrêa Miranda, um dos mais cultos e ilustres
escritores espíritas do Brasil, deu ao longo dos seus 93
anos pouquíssimas entrevistas, dentre elas esta,
concedida à jornalista Yeda da Hungria, que o Correio
Fraterno publicou em setembro de 1995 e agora,
resumidamente, trazemos para a 500ª edição do jornal.
Hermínio Miranda assim se apresenta:
Sou uma pessoa sem biografia. Nasci em 1920, em Volta
Redonda, RJ, de família modesta. Não tínhamos o
supérfluo, mas o essencial nunca nos faltou. Tenho pouca
escolaridade formal. Fiz um curso primário muito rápido,
compactado em poucos anos. Vim para Minas Gerais porque
em Volta Redonda não havia escolas adequadas e muito
menos ginásio. Meu padrinho patrocinou-me a instrução em
Baependi e, depois, em Caxambu. Em 1933, fui para Barra
Mansa, onde cursei o ginásio. Só na década de 1940
cursei contabilidade. Já era casado, com a primeira
filha nascida, e trabalhando. Minha escolaridade é
apenas essa. O resto é uma curiosidade insaciável de
aprender línguas, de ler tudo quanto puder para ampliar
conhecimentos. Tornei-me um bom profissional. Entrei
para os serviços da Companhia Siderúrgica Nacional, em
Volta Redonda, em 1942, com 22 anos de idade e, de
simples auxiliar de escritório cheguei a diretor, em
1967.
Como nasceu seu interesse pela doutrina espírita?
Mamãe criou os dez filhos na religião católica. Era uma
pessoa de bom senso e inteligente, dotada de razoável
formação cultural. Estudou em colégio de freiras. Ela
nos ensinava, em casa, a ler e a escrever e, também, um
pouco de aritmética. Íamos para o colégio já sabendo um
pouco de cada coisa. Dizia-nos que, enquanto
estivéssemos sob sua responsabilidade, seríamos
católicos, depois disso, que cada um seguiria seu rumo.
Comecei a ler na adolescência. Lembro-me da impressão
que me causou Schopenhauer, cujas ideias me pareciam
brilhantes. Passei a questionar os ensinamentos da
Igreja e suas práticas. Um dia, algumas pessoas da
família fizeram a clássica reunião mediúnica com o
copinho, e me impressionou observar como ele se
movimentava, escolhendo as letras e construindo palavras
e frases. Por essa época, fui, a trabalho, para os
Estados Unidos. Retornei cinco anos depois, decidido a
estudar aquele fenômeno. Procurei um amigo que eu sabia
espírita, o cel. Euclides Fleury, colega de trabalho na
Siderúrgica, que me deu uma pequena lista de livros, a
partir das cinco obras básicas da codificação. Ao ler O
livro dos espíritos, tive a impressão de que
já o conhecia. Anos depois, comentando o assunto
com Divaldo Franco, ele me disse que, em encarnação
anterior, eu vivera em Paris e até chegara a conhecer
Kardec, com o qual estivera pessoalmente, mais de uma
vez, propondo-lhe perguntas e trocando ideias com ele.
Posteriormente, por certos meios, essa informação me foi
confirmada e eu soube que fora um soldado inglês que
vivera em Paris entre 1851 e 1866, os quinze anos finais
daquela existência. Daí não me ser estranho O
livro dos espíritos.
O que o levou à produção de livros espíritas?
Quando comecei a ler e a estudar a doutrina, senti o
impulso de partilhar com os outros as coisas que eu
estava aprendendo e que me estavam sendo tão
esclarecedoras. Assim, em 1956, arrisquei-me a
escrever um pequeno artigo e o mandei para o Reformador.
Publicaram-no. Aquele foi um momento decisivo para mim,
porque se a matéria houvesse sido rejeitada, talvez eu
me tivesse desencorajado de escrever. De 1958 em diante,
durante 22 anos, escrevi para o Reformador. Às
vezes, estampavam até três artigos meus no mesmo número.
Foi, aliás, por essa época que o Dr. Wantuil me sugeriu
que adotasse também um pseudônimo. Escolhi o de João
Marcus. Em seguida, vieram os livros, que foram tendo
boa aceitação 2.
Qual o livro que lhe exigiu maior trabalho de pesquisa?
Cada livro é uma criança, um filho. Primeiro, a
gestação, as dores, o trabalho, as angústias e as
alegrias, naturalmente. Um livro que me exigiu muito
foi Eu
sou Camille Desmoulins, pois decidi
confirmar as revelações de Luciano dos Anjos. Eram
minúcias, detalhes, problemas miúdos da Revolução
Francesa. Foram anos de pesquisas, refletidas na
quantidade de notas complementares acrescentadas ao
texto básico. Cada livro tem sua pesquisa específica. O
que estou escrevendo, por exemplo, exigirá bastante
trabalho. Farei um levantamento detalhado da obra de
Fénelon, além de buscar mais amplas informações
biográficas a respeito dele, o que não tem sido fácil. O
evangelho gnóstico de Tomé foi também obra
que consumiu longas horas de estudo e pesquisa. Em Alquimia
da mente, foram muitos os apoios de que
necessitei para as teorias que nele desenvolvo. Já os
livros mais simples, como Nossos
filhos são espíritos, dispensam pesquisas de
maior vulto, pois tratam de depoimentos mais do que de
citações eruditas.
Em uma de suas obras são mencionados os manuscritos do
Mar Morto, documentos com ensinos dos essênios e que
teriam influenciado o pensamento cristão. Em outras, são
citados os achados de Nag Hammadi, no Alto Egito, cópias
de textos cristãos primitivos. Qual a relação entre
esses documentos?
Os manuscritos de Nag Hammadi originam-se de uma
comunidade reconhecidamente gnóstica. O gnosticismo foi
um movimento paralelo ao cristianismo primitivo,
ocorrido entre os anos 120 e 240, século 2 e 3,
portanto; os do Mar Morto, descobertos em 1947,
referem-se a uma seita judaica e seus rituais e
procedimentos e, segundo os historiadores, anterior ao
cristianismo. Ainda hoje se discute se seus membros eram
ou não essênios. Há muito livro bom a respeito disso,
como os dos eruditos franceses Charles Guignebert e
Maurice Goguel, além de autores mais recentes. Tenho
a impressão de haver vivido lá, naquela época; daí
porque vagas e imprecisas lembranças me agitam durante a
leitura desse material e mexem com minhas emoções. É
um tema que me atrai e, como disponho de textos
importantes sobre a época, pretendo ainda trabalhá-lo.
Não sei, porém, se terei tempo suficiente para escrever
um livro a respeito. Anos atrás, eu participava de um
grupo mediúnico familiar, no Rio de Janeiro. Numa sessão
de regressão de memória, um amigo e eu discutimos a
possibilidade de mergulhar nas lembranças ocultas de
cada um de nós, a fim de pesquisar a história do
cristianismo primitivo. Esse companheiro me
dissera, numa das regressões, que, no primeiro século,
eu havia sido judeu e ele, romano. Programamos
reunir nossas reminiscências pessoais. Um dos aspectos
que eu pretendia estudar era justamente a história dos
essênios — quem eram, o que faziam, como pensavam e o
que pretendiam. Infelizmente o projeto não foi adiante.
A tese, contudo, é válida e espero demonstrá-la um dia,
senão desta vez, em alguma existência futura, se isso
for permitido. Não creio que o
Cristo haja sido um essênio, como especula, entre
outros, Édouard Schuré. João Batista, sim, parece tê-lo
sido.
Os evangelhos canônicos citam superficialmente Tiago e
Judas Tadeu como irmãos de Jesus. Determinadas correntes
religiosas os consideram primos. O que revelam suas
conclusões?
Tenho encontrado evidências convincentes de que Jesus
teve vários irmãos e irmãs. O assunto é tratado com
maior amplitude em meu livro Cristianismo,
a mensagem esquecida. Quanto a Judas Tadeu,
o problema é complexo, porque os textos gnósticos,
escritos em copta [egípcio antigo] colocam Tadeu como
irmão gêmeo de Jesus, pois o nome Tomé quer dizer gêmeo,
tanto quanto Dídimo (em grego). Em suma, Tadeu, Dídimo,
Tomé são nomes aparentemente atribuídos à mesma pessoa.
É difícil aceitar, contudo, que Jesus haja tido um irmão
gêmeo, a não ser em sentido figurado, como alguém muito
ligado a ele, uma espécie de alter ego. Esse
aspecto foi abordado por mim em O
evangelho gnóstico de Tomé. Quanto a Tiago
Maior, contudo, os textos das Epístolas de Paulo e de
Atos dos Apóstolos são claros em colocá-lo como um dos
irmãos de Jesus. Quando Paulo e Barnabé foram a
Jerusalém, no ano 49, a fim de obter a chamada Carta
Apostólica, isto é, a permissão para pregar o
cristianismo aos gentios, dispensadas, porém, certas
práticas formalistas do judaísmo, a decisão final foi de
Tiago, irmão de Jesus, como afirma Paulo, sem rodeios.
Ao que tudo indica, trata-se, inquestionavelmente, de
irmãos de sangue.
As pesquisas nos textos gnósticos originaram o livro O
evangelho de Tomé — título
mudado para O
evangelho gnóstico de Tomé,
na segunda edição. Pretende você escrever sobre os
demais textos gnósticos?
Sim, existe ainda muito material no volume The
Nag Hammadi Library — a tradução em língua
inglesa dos textos coptas — que não foi aproveitada em O
Evangelho gnóstico de Tomé, mas tenho de
estabelecer prioridades na ordem dos escritos. Projetos,
tenho vários. Gostaria, se possível, de escrever três ou
quatro livros simultaneamente, porque são muitos os
temas que me atraem, mas há limitações incontornáveis a
respeitar. A tradução inglesa oferece material
riquíssimo, como os escritos atribuídos a Pedro e a
Felipe e a outros trabalhadores da primeira hora. Alguns
aspectos podem até ser algo fantasistas, mas precisam
ser estudados com vagar, mesmo porque, em muitos pontos
relevantes, confirmam passagens evangélicas consagradas
nos textos vigentes ou as modificam significativamente.
Maria de Magdala, por exemplo, apresenta-se nesses
documentos como uma presença muito mais marcante do que
a gente poderia supor à vista da relativa descrição dos
textos digamos ‘oficiais’ que nos chegaram. Ela era
dotada de poderosa mediunidade e exerceu papel
preponderante no grupo de pessoas mais chegadas a Jesus.
Deveria ser considerada, com todo direito, legítimo
apóstolo. É uma figura pela qual tenho uma grande
admiração. Em Cristianismo,
a mensagem esquecida escrevi uma página
arrancada do fundo do coração, sobre ela.
Na sua obra Eu
sou Camille Desmoulins, é
narrada a regressão de memória com Luciano dos Anjos.
Numa das passagens, vamos encontrá-lo em Paris, durante
o período da Revolução Francesa. Você lhe solicita uma
informação da época e ele, desconhecendo-a, vai a algum
lugar buscá-la. Como se explica isso?
Recebi, em envelope fechado, uma pergunta, cujo teor
Luciano ignorava e que lhe deveria ser feita depois que
ele já estivesse em transe. Somente depois de ter ele
alcançado esse estado, portanto, abri o envelope e tomei
conhecimento do seu conteúdo. Tratava-se de perguntar a
Luciano, já regredido à condição de Desmoulins, qual a
frase que dissera durante um jantar, com amigos. Ele
observou que não se lembrava, pois dissera e escrevera
muitas frases de efeito e não sabia a qual delas se
referia a pergunta formulada, aliás, por Murillo Alvim,
seu amigo pessoal e professor de desenho anatômico. Quis
saber, a seguir, se eu julgava importante o atendimento
à pergunta. Afirmei-lhe que sim, porque seria um
elemento a mais para conferirmos os dados que ele vinha
revelando. Disse-me então: "Espera, que eu vou lá."
Apliquei-lhe mais passes e ele aquietou-se e permaneceu
em silêncio por alguns momentos. Em seguida, me disse:
"Já estou aqui. O que é mesmo que você quer saber?”. A
partir daquele momento, ele não estava mais se lembrando
do ocorrido; ele se encontrava em algum lugar na
interseção tempo/espaço, no qual era capaz de resgatar
os eventos como se estivessem documentados. Relatou,
então, o clima de tensão vivido naquela fase da
Revolução, que começava a devorar-se a si mesma,
destruindo seus próprios líderes. Encontravam-se
reunidos num jantar ele, Danton, as respectivas esposas
e amigos, todos muito tensos. Dirigindo-se a Danton,
lembrou-lhe num versículo da epístola de Paulo:
"...comamos e bebamos, que amanhã estaremos todos
mortos”. Falou em latim, para que as demais pessoas não
percebessem o estado emocional em que se encontravam.
Esse é o episódio. Não sei como explicá-lo. Em A
memória e o tempo digo que o tempo é também
um local. Ambos, tempo e espaço, para mim, têm algo em
comum.
Para encerrar, gostaria que esclarecesse o conceito de
tempo apresentado em seu livro A
memória e o tempo.
Gostaria muito de poder fazê-lo, mas não me sinto
suficiente para isso. Acho que teríamos de sair do
contexto de espíritos encarnados em que nos encontramos.
Parecem-me conceitos que somente podem ser apreendidos
pela intuição; impossível fazê-lo pelo raciocínio
lógico, limitador por natureza. Vivemos numa dimensão na
qual as coisas são lineares e sequenciais e, pelo que se
sabe, no mundo espiritual a visão é substancialmente
diversa, como se isso que separamos em momentos —
presente, passado e futuro — fossem meros aspectos de
uma só realidade atemporal. Reconheço ser muito difícil,
para nós, prisioneiros da matéria, entender que não
existe passado ou futuro, que tudo isso é uma realidade
única, uma espécie de eterno presente de que falam
alguns. Seja como for, concordemos ou não, compreendamos
ou não, essa é a difícil, mas irrecusável mensagem da
profecia, uma sólida realidade que a parapsicologia
procurou colocar no nicho classificatório da precognição.
*
Pela Correio
Fraterno,
Hermínio Miranda publicou: A
irmã do vizir, O exilado, A dama da noite, As mãos de
minha irmã, O que é fenômeno mediúnico?, O que é
fenômeno anímico? e Os
procuradores de Deus.
(Yeda da Hungria. Acervo do Correio Fraterno,
setembro de 1995.)
Referências bibliográficas:
1. KARDEC,
Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad.
Guillon Ribeiro. 4ª ed. Catanduva, São Paulo: Nova Visão
Editora, 2019. O Espírito de Verdade. (Paris, 1860) cap.
VI, item 5, p. 157.
2. HUNGRIA
Yeda. Acervo do Correio Fraterno. 09/1995.
|