Lições e relatos comoventes compõem O Céu e o Inferno,
obra que Kardec lançou em agosto de 1865
No
dia 1º de agosto de 1865 apareceu em Paris uma das obras
mais interessantes que Allan Kardec ofereceu ao mundo: O
Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o
Espiritismo.
Em nossa
edição 784, nosso colega Thiago Bernardes lembrou esse
fato e apresentou-nos o plano geral e um sumário das
matérias que compõem a citada obra. Para acessar o texto
então publicado, clique
aqui
A obra,
cujo principal objetivo é explicar como se opera a
justiça de Deus à luz da Doutrina Espírita e mostrar a
condição que usufruiremos no mundo espiritual como
consequência de nossos próprios atos, divide-se em duas
partes.
Na segunda
parte, o livro reúne exemplos acerca da situação da alma
durante e após a desencarnação e nos oferece depoimentos
diversos dados pelos próprios Espíritos, entre os quais
se situam criminosos arrependidos, espíritos
endurecidos, espíritos felizes, medianos, sofredores,
suicidas e em expiação terrestre.
A
história de Max, o mendigo
Um desses
depoimentos tem a assinatura do Espírito de Max, que
faleceu em idade avançada em 1850 numa vila da Baviera.
O caso integra o capítulo VIII da segunda parte da obra
em foco.
“Max, o
mendigo”, assim Kardec intitulou o comovente relato, que
adiante reproduzimos.
Max não
possuía família; pelo menos é o que se deduz de sua
história. Não se sabia, pois, qual a sua origem. Ao
falecer, fazia mais de cinquenta anos que ele se
invalidara, sem outro recurso além da mendicidade para
ganhar o próprio sustento, situação que dissimulava
procurando vender, pelas herdades e castelos, almanaques
e outras miudezas. Deram-lhe a alcunha de “conde Max” e
as crianças o chamavam somente assim, fato que o fazia
rir sem melindres.
Por que
“conde Max”? Ninguém saberia dizê-lo, mas o hábito o
sancionara. Talvez tivesse provindo de sua fisionomia,
de suas maneiras, cuja distinção contrastava com a
miserabilidade de suas vestes, melhor dizendo, seus
andrajos.
Muitos
anos depois da morte, o Espírito de Max apareceu em
sonho à filha do proprietário de um castelo em cuja
estrebaria ele era com frequência hospedado, visto que
não possuía domicílio próprio. Nessa aparição, disse
ele: “Agradeço o terdes lembrado do pobre Max nas vossas
preces, porque o Senhor as ouviu. Alma caritativa, que
vos interessastes pelo pobre mendigo, já que quereis
saber quem sou, vou satisfazer-vos, ministrando, ao
mesmo tempo e a todos, um grande ensinamento”.
Quem
foi Max numa anterior existência
O próximo
Max assim revelou: “Há cerca de século e meio era eu um
dos ricos e poderosos senhores desta região, porém
orgulhoso da minha nobreza. A fortuna imensa, além de só
me servir aos prazeres, mal chegava para o jogo, para o
deboche, para as orgias, que eram a minha única
preocupação na vida. Quanto aos vassalos, porque os
julgasse animais de trabalho destinados a servir-me,
eram espezinhados e oprimidos, para proverem às minhas
dissipações. Surdo aos seus queixumes, como em regra
também o era com todos os infelizes, julgava eu que eles
ainda se deveriam ter por honrados em satisfazer-me os
caprichos. Morri cedo, exausto pelos excessos, mas sem
ter, de fato, experimentado qualquer desgraça real. Ao
contrário, tudo parecia sorrir-me, a ponto de passar por
um dos seres mais ditosos do mundo. Tive funerais
suntuosos e os boêmios lamentavam a perda do ricaço, mas
a verdade é que sobre o meu túmulo nenhuma lágrima se
derramou, nenhuma prece por mim se fez a Deus, de
coração, enquanto minha memória era amaldiçoada por
todos aqueles para cuja miséria contribuíra. Ah! e como
é terrível a maldição dos que prejudicamos! Pois essa
maldição não deixou de ressoar-me aos ouvidos durante
longos anos que me pareceram uma eternidade. Depois, por
morte de cada uma das vítimas, era um novo espectro
ameaçador ou sarcástico que se erguia diante de mim, a
perseguir-me sem tréguas, sem que eu pudesse encontrar
um vão esconso onde me furtasse às suas vistas! Nem um
olhar amigo! Os antigos companheiros de devassidão,
infelizes como eu, fugiram, parecendo dizer-me
desdenhosos: ‘Tu não podes mais custear os nossos
prazeres.’ Oh! então, quanto daria eu por um instante de
repouso, por um copo d’água para saciar a sede ardente
que me devorava! Entretanto eu nada mais possuía, e todo
o ouro a jorros derramado sobre a Terra não produzia uma
só bênção, uma só que fosse... ouviste, minha filha?!”
E Max
prosseguiu contando: “Cansado por fim, opresso, qual
viajor que não lobriga o termo da jornada, exclamei:
‘Meu Deus, tende compaixão de mim! Quando terminará esta
situação horrível?’ Então uma voz — primeira que ouvi
depois de haver deixado a Terra — disse: ‘Quando
quiseres.’ Que será preciso fazer, grande Deus? —
repliquei. — Dizei-o, que a tudo me sujeitarei. ‘É
preciso o arrependimento, é preciso te humilhares
perante os mesmos a quem humilhastes; pedir-lhes que
intercedam por ti, porque a prece do ofendido que perdoa
é sempre agradável ao Senhor.’ E eu me humilhei, e eu
pedi aos meus vassalos e servidores que ali estavam
diante de mim, e cujos semblantes, pouco a pouco mais
benévolos, acabaram por desaparecer. Isso foi para mim
como que uma nova vida; o desespero dava lugar à
esperança, enquanto eu agradecia a Deus com todas as
forças de minha alma. A voz acrescentou: ‘Príncipe!’ ao
que respondi: ‘Não há aqui outro príncipe senão Deus, o
Deus Onipotente que humilha os soberbos. Perdoai-me,
Senhor, porque pequei; e se tal for da vossa vontade,
fazei-me servo dos meus servos.’”
Em que
condições Max reencarnou e viveu
Na
sequência, Max relatou como foi sua derradeira
existência: “Alguns anos depois reencarnei numa família
de burgueses pobres. Ainda criança perdi meus pais e
fiquei só no mundo, desamparado. Ganhei a vida como
pude, ora como operário, ora como trabalhador de campo,
mas sempre honestamente, porque já acreditava em Deus.
Mas aos 40 anos fiquei totalmente paralítico, sendo-me
preciso daí por diante mendigar por mais de 50 anos por
estas mesmas terras de que fora o absoluto senhor. Nas
herdades que me haviam pertencido, recebia uma migalha
de pão, feliz quando por abrigo me davam o teto de uma
estrebaria. Ainda por uma acerba ironia do destino,
apelidaram-me Sr. Conde... Durante o sono, aprazia-me
percorrer este mesmo castelo onde reinei despoticamente,
revendo-me no fausto da minha antiga fortuna! Ao
despertar, sentia de tais visões uma impressão de
amargura e tristeza, mas nunca uma só queixa se me
escapou dos lábios; e quando a Deus aprouve chamar-me,
exaltei a sua glória por me haver sustentado com firmeza
e resignação numa tão penosa prova, da qual hoje recebo
a recompensa. Quanto a vós, minha filha, eu vos bendigo
por terdes orado por mim.”
*
Comentando
o relato de Max, o ex- mendigo da Baviera, Allan Kardec
escreveu: “Para este fato pedimos a atenção de todos
quantos pretendem que, sem a perspectiva das penas
eternas, os homens deixariam de ter um freio às suas
paixões. Um castigo como este do pai Max será porventura
menos profícuo do que essas penas sem-fim, nas quais
hoje ninguém acredita?”
Como diria
Jesus, veja quem possua “olhos
de ver” e ouça quem tenha “ouvidos de ouvir”.