Internacional
por Thiago Bernanrdes

Ano 17 - N° 837 - 20 de Agosto de 2023

 

 

A primeira medida formal para coibir as sessões espíritas ocorreu há 160 anos


Em de agosto de 1863 fazia pouco mais de 6 anos que havia sido publicado O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, fato que se deu no dia 18 de abril de 1857. Com essa publicação nascera, então, a doutrina espírita e a partir daí as ideias e as práticas espíritas regulares se espalharam por todos os cantos do planeta. Basta consultar as edições da Revista Espírita, periódico mensal lançado em 1º de janeiro de 1858, para vermos que tanto na Europa como na América e também na África o Espiritismo havia conquistado milhares de adeptos e simpatizantes em grande número.

Foi isso que também ocorreu na Argélia, a ponto de preocupar as autoridades da Igreja,
como o monsenhor Bispo de Argel, que publicou no dia 18 de agosto de 1863 um documento endereçado aos párocos de sua diocese com o título de “Carta circular e ordem sobre a superstição dita Espiritismo”, numa tentativa, até então inédita, de coibir as sessões espíritas não só na diocese de Argel, mas em toda a Argélia.
Na edição de novembro de 1863 da Revista Espírita, Allan Kardec reproduziu várias passagens da Carta pastoral, seguidas de seus comentários a
propósito do assunto.

Lembrando o lamentável episódio, cujo resultado foi – como sabemos – completamente nulo, porque não evitou que o Espiritismo se propagasse na Argélia, transcrevemos aqui, para conhecimento de nossos leitores, trechos do documento:

 

"...Tínhamos o pensamento de juntar uma modesta página a esses luminosos anais, desonrando, das alturas do bom senso e da fé, como merece sê-lo, o Espiritismo que, renovação da mais velha e da mais grosseira idolatria, veio se abater sobre a Argélia. Pobre colônia! Depois de tantas cruéis provas, lhes seria preciso ainda uma prova deste gênero!”

"Mas diversas considerações, senhor cura, nos retiveram até este dia. De início, hesitamos em revelar essa vergonha nova, acrescentada a tantas misérias exploradas, com uma amarga ironia, pelos inimigos de nossa cara e nobre Argélia. De outra parte, sabemos que o Espiritismo quase não penetrou entre nós senão em certas cidades, onde os desocupados se contam em maior número; onde a curiosidade, sem cessar excitada, se nutre avidamente de tudo o que se apresenta com um caráter de novidade; onde a necessidade de brilhar e de se distinguir da multidão não fica sempre estranha, mesmo para as inteligências de mais ou menos importância, ao passo que o maior número de nossas pequenas cidades e de nossos campos ignoram, e, certamente, nada têm com isso a perder, até no nome bizarro e pretensioso de Espiritismo. Pensamos, enfim, que tais práticas não estão jamais destinadas a viver uma vida muito longa, porque o desabuso vem depressa para os escândalos de imaginação, que contundem quase sempre com sua própria vergonha. Assim ocorreu com os malabarismos de Cagliostro e de Mesmer; assim o furor das mesas girantes acalmou-se, sem deixar atrás delas senão o ridículo de seus arrastamentos e de suas lembranças."

"Aprendemos, dizeis, a disso não duvidar, que os verdadeiros cristãos, os sinceros católicos, pensam poder associar Jesus Cristo e Belial, os mandamentos da Igreja com os procedimentos do Espiritismo."

"Se se encontram em sua paróquia Espíritas, de alguma condição que possam ser, em geral os descrentes, as mulheres vaidosas, as cabeças fracas, formando sempre o grosso dos cortejos supersticiosos, que o padre não hesite em declarar-lhes que não há nenhuma transação possível entre o catolicismo e o Espiritismo; que, em suas experiências, não pode ali haver senão uma destas três coisas: malabarismos da parte de uns, alucinação da parte de outros, e, indo ao pior, senão uma evocação diabólica."

"Estivemos lá, senhor cura, de nosso labor apostólico, quando recebemos numerosos artigos de jornais, brochuras, livros, e notadamente um discurso (o do Padre Nampon), onde, salvo as ideias gerais, encontramos muito claramente e muito nitidamente exposto o que iríamos vos dizer em seguida, a propósito do Espiritismo. Como não gostamos de refazer sem necessidade o que julgamos estar bem feito, vos convidamos a vos proporcionar algumas dessas obras, e ao menos um exemplar desse discurso, que vos esclarecerá suficientemente sobre os procedimentos, a doutrina e as consequências do Espiritismo."

"Antes de qualquer coisa, não seria deplorável encontrar na Argélia cristãos sérios que hesitassem em se pronunciar energicamente contra o Espiritismo; uns sobre o pretexto de que há abaixo alguma coisa de verdade, outros por esse motivo que viram os materialistas forçados a retornarem, por meio do Espiritismo, à crença na outra vida? Ilógica ingenuidade das duas partes!"

"Gosto mais que os incrédulos fiquem fora da Igreja do que entrem para o Espiritismo. Não são inteiramente as palavras do Cristo que disse: Gosto mais da misericórdia do que do sacrifício. Ou esta outra, pronunciada alhures: Prefiro ver os operários saírem bêbados do cabaré do que sabê-los Espíritas."

"Que apesar da voz da consciência, os homens, educados nos princípios do cristianismo e tendo-os infelizmente esquecido, negado em seu coração, e combatido em seus livros, tentem transigir com esses princípios, admitindo uma imortalidade da alma, um purgatório e um inferno tudo diferentes da imortalidade da alma, do purgatório e do inferno dos Evangelhos, tiverem ganho, pelo Espiritismo, alguma coisa para a fé e para sua salvação, qual cristão poderá se imaginar, uma vez que não puseram no lugar senão as mais sacrílegas blasfêmias da crença!"

“Far-se-lhes-á compreender igualmente que é a renovação das teorias pagas caídas no desprezo dos sábios, antes mesmo da aparição do Evangelho, que, introduzindo a metempsicose, ou a transmigração das almas, o Espiritismo mata a individualidade pessoal, e coloca no nada a responsabilidade moral; que, destruindo a ideia do purgatório e do inferno eternamente pessoal, abre o caminho a todas as desordens, a todas as imoralidades.”

"Não será inútil acrescentar, senhor cura, que a paz das famílias está gravemente perturbada pela prática do Espiritismo; que um grande número de cabeças nisso já perderam o sentido, e que os hospícios da América, da Inglaterra e da França regurgitam, desde o presente, de suas muito numerosas vítimas; de tal sorte que, se o Espiritismo propagasse suas conquistas, seria preciso mudar o nome de Petites-Maisons para Grandes-Maisons."

"A essas causas, e o Espírito Santo evocado, temos ordenado e ordenamos o que segue:

Art. 1. A prática do Espiritismo ou a invocação dos mortos é interditada a todos e a cada um na diocese de Argel.

Art. 2. Os confessores recusarão a absolvição a quem não renuncie a toda participação, seja como médium, seja como adepto, seja como simples testemunha em sessões privadas ou públicas, ou, enfim, em uma operação qualquer de Espiritismo.

Art. 3. Em todas as cidades da Argélia e nas paróquias rurais onde o Espiritismo se introduziu com algum estrondo, senhores curas lerão publicamente esta carta no púlpito, o primeiro domingo depois de sua recepção. Por toda a parte, alhures, será comunicada em particular, segundo as necessidades.

Dada em Argel, a 18 de agosto de 1863."

 

*

 

Como dissemos, a cada passagem da Carta pastoral, Kardec aditou seus comentários e observações, enfatizando o que hoje todos sabemos, ou seja, que os ataques, as críticas e os sermões feitos pelas autoridades da Igreja contra o Espiritismo nada produziram, exceto a popularização de uma doutrina cujo principal objetivo é o progresso moral da Humanidade.

Na edição de dezembro de 1863, voltando ao assunto, Kardec acrescentou aos comentários anteriores as seguintes considerações:

I) O Espiritismo deve ser aceito livremente, atraindo as pessoas para si pela força de seu raciocínio, sem jamais violentar consciências.

II) Em todas as suas refutações, ele nunca visou os indivíduos, porque as questões pessoais morrem com as pessoas.

III) O Espiritismo vê as coisas mais do alto; liga-se às questões de princípios, que sobrevivem aos indivíduos.

IV) O clero não é unânime na reprovação ao Espiritismo.

E, a propósito da posição do clero, relatou na Revista Espírita dois fatos bastante curiosos envolvendo dois padres favoráveis às ideias espíritas, que o leitor pode ler consultando a edição de dezembro de 1863. (Cf. Revista Espírita de 1863, edição publicada pela Edicel, págs. 360 a 363.)


 
  


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