Ainda sobre o aborto
Para Kardec, o
aborto provocado é crime, em qualquer período da
gestação. Uma mãe, ou quem quer que seja,
cometerá crime sempre que tirar a vida a uma
criança antes do seu nascimento, pois isso
impede uma alma de passar pelas provas a que
serviria de instrumento o corpo que se estava
formando.[i]
Kardec admitiu
uma única exceção: dado o caso que o nascimento
da criança pusesse em perigo a vida da mãe dela,
então não haverá crime em sacrificar-se a
primeira para salvar a segunda. [ii]
A exceção
reconhecida por Kardec vem sendo nomeada como
aborto terapêutico. Grande parte dos espíritas
reconhecem que tal exceção cabe em uma situação
recentemente divulgada pela imprensa nacional.
O caso
de uma menina de 11 anos, que engravidou em
decorrência da violência sexual de um tio. A
retirada do bebê, em casos assim, é a única
medida possível, em decorrência dos graves
riscos inerentes a uma gravidez em idade tão
precoce.
Situações novas envolvendo o aborto, não
identificadas à época de Kardec, têm promovido
discussões entre os espíritas. Algumas delas:
a) Aborto eugênico: a interrupção da gravidez
quanto a criança possui
fundadas probabilidades de apresentar graves e
irreversíveis anomalias físicas e/ou mentais. O
desenvolvimento de testes pré-natais não
invasivos em 2011 permitiu que as mulheres
grávidas testassem a presença de distúrbios
genéticos. Na América do Norte, estima-se que
aproximadamente 30% das gravidezes nos quais há
um diagnóstico de síndrome de Down sejam
interrompidas eletivamente.[iii]
b) Aborto decorrente de uma gravidez resultado
do estupro: segundo
a Norma Técnica do Ministério da Saúde - MS
(Brasil, 2012) que versa sobre prevenção e
tratamento dos agravos resultantes da violência
sexual contra mulheres e adolescentes, o risco
de gravidez decorrente do estupro varia entre
0,5 e 5%, depende de alguns fatores, como: idade
da vítima, coincidência com o período fértil, se
a violência foi um caso isolado ou se é uma
violência continuada, e se a vítima estava
utilizando métodos anticoncepcionais.
Considera-se que os casos de gravidez entre as
adolescentes são mais numerosos em face da alta
recorrência de estupro entre crianças e
adolescentes, o que faz com que a probabilidade
de gravidez aumente substancialmente. [iv]
c) Aborto do feto
anencéfalo. A anencefalia é
uma má formação rara do tubo neural
caracterizada pela ausência parcial do encéfalo
e da calota craniana, proveniente de defeito de
fechamento do tubo neural nas primeiras semanas
da formação embrionária. Trata-se de patologia
letal. Bebês com anencefalia possuem expectativa
de vida muito curta, embora não se possa
estabelecer com precisão o tempo de vida que
terão fora do útero. A anomalia pode ser
diagnosticada, com certa precisão, a partir das
12 semanas de gestação, através de um exame de
ultrassonografia, quando já é possível a
visualização do segmento cefálico fetal.
Grande parte do movimento espírita tem assumido
postura contrária ao aborto nas três situações
relacionadas, além, de ratificarem o pensamento
de Kardec que considera o aborto como crime e
admite a exceção proposta por ele.
Quais são os argumentos apresentados?
Primeiro,
consideram frágeis a argumentação dos que
defendem o aborto. Quase
sempre se fundamentam na ideia de que a mulher é
dona de seu corpo, e deve ter o direito de
dispor dele como lhe aprouver. Em verdade,
alegam, o corpo não nos pertence, é um
empréstimo. Se fôssemos donos reais de nosso
corpo, não estaríamos sujeitos às enfermidades e
a morte. Além disso, o indivíduo que cresce no
ventre materno, não é parte do corpo da mulher,
é outro ser, com um conjunto particular de
genes. Apenas 50% de seus genes são oriundos da
mãe.
E, o mais relevante: não se trata simplesmente
de uma organização biológica incompleta em
desenvolvimento. Trata-se de um ser espiritual,
com história, sentimentos, sonhos e
expectativas, com íntima e profunda conexão com
aquela que hoje lhe fornece os meios de
religar-se a matéria física.
As relações mãe/filho e filho/mãe são as mais
profundas que se conhecem. É quase impossível
que um Espírito se ligue a organização genésica
de uma mulher através da gravidez, sem que
exista entre eles conexões com o passado
reencarnatório.
A interrupção voluntária da gestação configura,
do ponto de vista espiritual, em uma quebra de
compromisso e confiança entre duas almas afins,
que se reencontram com objetivos evolutivos
comuns.
Isso se verifica até mesmo na gravidez que
decorre da violência sexual. A atitude brutal e
injustificável do agressor nenhuma relação
possui com o vínculo espiritual previamente
estabelecido entre a vítima da agressão e o
Espírito que se ligou a ela. A ligação do
Espírito desencarnado, que se dá no instante em
que os gametas se encontram na tuba uterina, não
é fruto do acaso. Se não se verificasse nesta
oportunidade, provavelmente, se daria depois. O
agressor, via de regra, não possui vínculos
espirituais com as almas envolvidos no
acontecimento cruel e lamentável. O vínculo é da
mulher com o bebê. E depois, dois erros não
fazem um acerto.
A interrupção da gravidez quando a criança possui
fundadas probabilidades de apresentar graves e
irreversíveis anomalias físicas e/ou mentais –
denominado aborto eugênico – parece,
segundo o parecer de grande parte dos espíritas,
a mais absurda de todas. Ao pactuarmos com essa
prática, nos outorgamos o direito de dizer quem
pode e quem não pode nascer, baseados unicamente
em possíveis problemas a serem apresentados.
Trata-se de lamentável exclusão, a que se dá
antes mesmo do nascimento.
Sobre isso, me recordo do depoimento emocionante
de um garoto, em um seminário sobre aborto:
- Minha mãe teve rubéola, quando estava grávida
de mim. Muita gente disse para ela tirar o bebê,
porque ia ter um filho deformado. Ela não
aceitou as sugestões e me deixou nascer. Eu
nasci assim (ergueu os braços, mostrando que
faltavam dois dedos em cada uma de suas mãos),
mas, no restante, sou completamente normal. Fico
pensando se ela tivesse me tirado. Por causa de
apenas uns poucos dedinhos eu não teria tido
essa oportunidade linda de viver.
O argumento acima tem sido aplicado na gravidez
de um feto anencéfalo. A anencefalia nunca é
total e um Espírito encontra-se ligado àquele
corpo em vias de formação, Assim sendo, há nisso
um propósito divino.
Nem todos os espíritas, no entanto, concordam
com todos esses argumentos.
Questões que são levantadas por alguns deles:
a) A ciência atual considera que o evento que
marca o fim da vida é a cessação de ondas
cerebrais. Ora, se assim for, só faz sentido se
falar em início da vida quando o cérebro já
estivesse funcionando. Portanto, para não ser
contraditória, a ciência tem que admitir que em
estágios iniciais da vida embrionária, ainda não
haja vida. Isso permitiria o descarte de
células-ovo em casos de reprodução assistida e a
pesquisa em células-tronco embrionárias.
Considerando que só se identifica atividade
cerebral fetal a partir da oitava semana de vida
intrauterina [v],
a retirada do feto antes desse período não
deveria configurar crime.
b) Em relação a gravidez decorrente do estupro,
alguns espíritas têm considerado como atitude de
grave insensibilidade, pressionar a jovem
violentada a manter a gravidez. Além do trauma
da violência sexual, vamos pactuar com um
segundo trauma, o de manter no ventre o filho de
um indivíduo de tão lamentável perversidade. Um
estudo com 203 adolescentes vítimas de violência
sexual que engravidaram, comparou a rejeição do
filho nestas adolescentes em relação a outras
que não sofreram a violência e viviam com seus
parceiros. Sobre esse aspecto, ou seja, a
atitude pelo filho ao nascer, 68,5% das
adolescentes vítimas de violência sexual
rejeitaram versus 8,7% nos casos
controle. Também os pais das primeiras
rejeitaram mais a criança que os das segundas.[vi]
c) De forma semelhante, há espíritas que pensam
que não se justifica a manutenção de uma
gravidez de um feto anencéfalo, sem nenhuma
possibilidade de sobrevivência, causando
dessabores e angústias nas pessoas envolvidas.
O tema é complexo, estando sempre aberto a novos
estudos e reflexões, que devem ser feitas de
forma pacifica e amorosa, evitando posições
extremadas e passionais.
[i] O
livro dos espíritos, item 358.
[iii] Desenvolvimento
humano, Papalia e Martorell.
[iv] Arq.
bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro
2017.
[vi] Arq.
bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro
2017.