Artigos

por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Ainda sobre o aborto


Para Kardec, o aborto provocado é crime, em qualquer período da gestação. Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, pois isso impede uma alma de passar pelas provas a que serviria de instrumento o corpo que se estava formando.[i]

Kardec admitiu uma única exceção: dado o caso que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, então não haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda. [ii]

A exceção reconhecida por Kardec vem sendo nomeada como aborto terapêutico. Grande parte dos espíritas reconhecem que tal exceção cabe em uma situação recentemente divulgada pela imprensa nacional. O caso de uma menina de 11 anos, que engravidou em decorrência da violência sexual de um tio. A retirada do bebê, em casos assim, é a única medida possível, em decorrência dos graves riscos inerentes a uma gravidez em idade tão precoce.

Situações novas envolvendo o aborto, não identificadas à época de Kardec, têm promovido discussões entre os espíritas. Algumas delas:

a) Aborto eugênico: a interrupção da gravidez quanto a criança possui fundadas probabilidades de apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas e/ou mentais. O desenvolvimento de testes pré-natais não invasivos em 2011 permitiu que as mulheres grávidas testassem a presença de distúrbios genéticos. Na América do Norte, estima-se que aproximadamente 30% das gravidezes nos quais há um diagnóstico de síndrome de Down sejam interrompidas eletivamente.[iii]

b) Aborto decorrente de uma gravidez resultado do estupro: segundo a Norma Técnica do Ministério da Saúde - MS (Brasil, 2012) que versa sobre prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, o risco de gravidez decorrente do estupro varia entre 0,5 e 5%, depende de alguns fatores, como: idade da vítima, coincidência com o período fértil, se a violência foi um caso isolado ou se é uma violência continuada, e se a vítima estava utilizando métodos anticoncepcionais. Considera-se que os casos de gravidez entre as adolescentes são mais numerosos em face da alta recorrência de estupro entre crianças e adolescentes, o que faz com que a probabilidade de gravidez aumente substancialmente. [iv]

c) Aborto do feto anencéfalo. A anencefalia é uma má formação rara do tubo neural caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária. Trata-se de patologia letal. Bebês com anencefalia possuem expectativa de vida muito curta, embora não se possa estabelecer com precisão o tempo de vida que terão fora do útero. A anomalia pode ser diagnosticada, com certa precisão, a partir das 12 semanas de gestação, através de um exame de ultrassonografia, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal.

Grande parte do movimento espírita tem assumido postura contrária ao aborto nas três situações relacionadas, além, de ratificarem o pensamento de Kardec que considera o aborto como crime e admite a exceção proposta por ele.

Quais são os argumentos apresentados?

Primeiro, consideram frágeis a argumentação dos que defendem o aborto. Quase sempre se fundamentam na ideia de que a mulher é dona de seu corpo, e deve ter o direito de dispor dele como lhe aprouver. Em verdade, alegam, o corpo não nos pertence, é um empréstimo. Se fôssemos donos reais de nosso corpo, não estaríamos sujeitos às enfermidades e a morte. Além disso, o indivíduo que cresce no ventre materno, não é parte do corpo da mulher, é outro ser, com um conjunto particular de genes. Apenas 50% de seus genes são oriundos da mãe.

E, o mais relevante:  não se trata simplesmente de uma organização biológica incompleta em desenvolvimento. Trata-se de um ser espiritual, com história, sentimentos, sonhos e expectativas, com íntima e profunda conexão com aquela que hoje lhe fornece os meios de religar-se a matéria física.

As relações mãe/filho e filho/mãe são as mais profundas que se conhecem. É quase impossível que um Espírito se ligue a organização genésica de uma mulher através da gravidez, sem que exista entre eles conexões com o passado reencarnatório.

A interrupção voluntária da gestação configura, do ponto de vista espiritual, em uma quebra de compromisso e confiança entre duas almas afins, que se reencontram com objetivos evolutivos comuns.

Isso se verifica até mesmo na gravidez que decorre da violência sexual. A atitude brutal e injustificável do agressor nenhuma relação possui com o vínculo espiritual previamente estabelecido entre a vítima da agressão e o Espírito que se ligou a ela. A ligação do Espírito desencarnado, que se dá no instante em que os gametas se encontram na tuba uterina, não é fruto do acaso. Se não se verificasse nesta oportunidade, provavelmente, se daria depois. O agressor, via de regra, não possui vínculos espirituais com as almas envolvidos no acontecimento cruel e lamentável. O vínculo é da mulher com o bebê. E depois, dois erros não fazem um acerto.

A interrupção da gravidez quando a criança possui fundadas probabilidades de apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas e/ou mentais – denominado aborto eugênico – parece, segundo o parecer de grande parte dos espíritas, a mais absurda de todas. Ao pactuarmos com essa prática, nos outorgamos o direito de dizer quem pode e quem não pode nascer, baseados unicamente em possíveis problemas a serem apresentados. Trata-se de lamentável exclusão, a que se dá antes mesmo do nascimento.

Sobre isso, me recordo do depoimento emocionante de um garoto, em um seminário sobre aborto:

- Minha mãe teve rubéola, quando estava grávida de mim. Muita gente disse para ela tirar o bebê, porque ia ter um filho deformado. Ela não aceitou as sugestões e me deixou nascer. Eu nasci assim (ergueu os braços, mostrando que faltavam dois dedos em cada uma de suas mãos), mas, no restante, sou completamente normal. Fico pensando se ela tivesse me tirado. Por causa de apenas uns poucos dedinhos eu não teria tido essa oportunidade linda de viver.

O argumento acima tem sido aplicado na gravidez de um feto anencéfalo. A anencefalia nunca é total e um Espírito encontra-se ligado àquele corpo em vias de formação, Assim sendo, há nisso um propósito divino.

Nem todos os espíritas, no entanto, concordam com todos esses argumentos.

Questões que são levantadas por alguns deles:

a) A ciência atual considera que o evento que marca o fim da vida é a cessação de ondas cerebrais. Ora, se assim for, só faz sentido se falar em início da vida quando o cérebro já estivesse funcionando. Portanto, para não ser contraditória, a ciência tem que admitir que em estágios iniciais da vida embrionária, ainda não haja vida. Isso permitiria o descarte de células-ovo em casos de reprodução assistida e a pesquisa em células-tronco embrionárias. Considerando que só se identifica atividade cerebral fetal a partir da oitava semana de vida intrauterina [v], a retirada do feto antes desse período não deveria configurar crime.

b)  Em relação a gravidez decorrente do estupro, alguns espíritas têm considerado como atitude de grave insensibilidade, pressionar a jovem violentada a manter a gravidez. Além do trauma da violência sexual, vamos pactuar com um segundo trauma, o de manter no ventre o filho de um indivíduo de tão lamentável perversidade. Um estudo com 203 adolescentes vítimas de violência sexual que engravidaram, comparou a rejeição do filho nestas adolescentes em relação a outras que não sofreram a violência e viviam com seus parceiros. Sobre esse aspecto, ou seja, a atitude pelo filho ao nascer, 68,5% das adolescentes vítimas de violência sexual rejeitaram versus 8,7% nos casos controle. Também os pais das primeiras rejeitaram mais a criança que os das segundas.[vi]   

c) De forma semelhante, há espíritas que pensam que não se justifica a manutenção de uma gravidez de um feto anencéfalo, sem nenhuma possibilidade de sobrevivência, causando dessabores e angústias nas pessoas envolvidas.

O tema é complexo, estando sempre aberto a novos estudos e reflexões, que devem ser feitas de forma pacifica e amorosa, evitando posições extremadas e passionais.


 

[i] O livro dos espíritos, item 358.

[ii] Idem 359.

[iii] Desenvolvimento humano, Papalia e Martorell.

[iv] Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro 2017.

[v] Revista da Associação Médica Brasileira Volume 59, Issue 5, September–October 2013, pages 507-513.

[vi] Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro 2017.

 


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita