Somos todos
médiuns?
O item 159 d´O Livro dos Médiuns afirma,
no seu início, que todos somos “mais ou menos”
médiuns:
Médium é toda pessoa que sente, num grau
qualquer, a influência dos Espíritos. Essa
faculdade é inerente ao homem e, por
conseguinte, não constitui um privilégio
exclusivo. Por isso mesmo, raras são as pessoas
que não possuam alguns rudimentos dessa
faculdade. Pode-se, pois, dizer que todos são
mais ou menos médiuns. (...) (1) (grifo
nosso).
Ou seja, toda pessoa que venha a sentir a
influência dos Espíritos seria médium. Tal
assertiva, se considerada isoladamente, pode
levar a conclusões apressadas, já que a
continuação do mesmo item informa:
(...). Usualmente, porém, essa qualificação só
se aplica àqueles em quem a faculdade se mostra
bem caracterizada e se traduz por efeitos
patentes, de certa intensidade, o que depende de
uma organização mais ou menos sensitiva. É de
notar-se, além disso, que essa faculdade não se
revela da mesma maneira em todos os sensitivos.
Geralmente, os médiuns têm uma aptidão especial
para os fenômenos desta ou daquela ordem, de
modo que há tantas variedades quantas são as
espécies de manifestações (...) (1). (grifo
nosso)
O texto confirma ser comum chamarmos por médium
somente a quem tenha mediunidade patente ou
ostensiva e informa também a dependência da
mediunidade de uma organização mais sensitiva.
Porém, estava Kardec se referindo à maneira como
a sociedade se referia aos médiuns, ou há uma
distinção clara em suas obras, utilizando dois
sentidos para a palavra “médium”?
Ora, a edição da Revista Espírita de
novembro de 1861 traz um discurso de Allan
Kardec, feito durante uma reunião dos espíritas
de Bordeaux, ocorrida, naquele ano, onde o
Codificador afirma não ser médium:
Nos trabalhos que tenho feito para alcançar o
objetivo a que me propunha, sem dúvida fui
ajudado pelos Espíritos, como eles próprios já
me disseram várias vezes, mas sem o menor sinal
exterior de mediunidade. Assim, não sou
médium, no sentido vulgar da palavra, e hoje
compreendo que é uma felicidade que assim o
seja. (2) (grifo
nosso)
Ao assegurar ter sido ajudado pelos Espíritos, e
assim sentido a influência deles, mas a seguir
reafirmar não ser médium no sentido comum da
palavra, Kardec nos permite afirmar haver dois
sentidos para o termo “médium” em sua obra.
Antes de procurar entender esses sentidos, vamos
recordar a definição de médium. Conforme o
mestre Lionês, médiuns são “meios ou
intermediários entre os Espíritos e os homens” (3),
ou ainda, médium é “o indivíduo que serve de
traço de união aos Espíritos, a fim de que estes
possam comunicar-se facilmente com os homens” (4).
Tais definições nos fazem pensar: se fôssemos
todos médiuns, necessitaríamos de
intermediários? Essa acepção de “médium” dada
por Kardec claramente se opõe à ideia de sermos
todos médiuns.
No entanto, há outras passagens d´O Livro dos
Médiuns reafirmando sermos todos médiuns:
Channing nos pede para escutar a voz dos bons
Espíritos, para chegarmos “progressivamente a
ouvir o (...) anjo da guarda” (5) e
ressalta: “(...) a voz íntima que fala ao
coração é a dos Espíritos bons e é deste
ponto de vista que todos os homens são
médiuns.” (5) (grifos
nossos).
Na mesma direção, ao estudarmos a definição de
Médiuns inspirados ou involuntários, aprendemos:
“a inspiração vem dos Espíritos que nos
influenciam para o bem ou para o mal” e “sob
esse aspecto, pode-se dizer que todos são
médiuns” (6) (grifos
nossos)
Há, portanto, duas definições aparentemente
antagônicas na Codificação: médium seria o
intermediário, o traço de união entre os
Espíritos e os homens, ou poderíamos chamar
qualquer ser humano de médium, se assumirmos que
todos podemos ouvir a voz interior de nosso anjo
guardião ou sentir a influência dos Espíritos?
O Codificador esclarece a questão, ao ensinar,
como vimos acima, que a faculdade mediúnica bem
caracterizada “depende de uma organização mais
ou menos sensitiva.” (1),
e acrescentar que essa organização sensitiva
depende de fatores alheios à nossa vontade,
pois, embora cada um de nós tenha em si “o
gérmen das qualidades necessárias para se tornar
médium, tais qualidades existem em graus muito
diferentes e o seu desenvolvimento depende de
causas que criatura alguma pode provocar à
vontade” (7).
Dessa maneira, a
faculdade relativa à mediunidade não pode ser
desenvolvida por todas as pessoas. Para reforçar
esse raciocínio, na mesma obra, Kardec afirma
não haver “nenhum meio para diagnosticar, ainda
que de forma aproximada, que alguém possua essa
faculdade [a mediunidade]” e existir apenas “um
meio de se comprovar sua existência [da
mediunidade]: é experimentar” (8).
No mesmo capítulo, somos aconselhados, caso “a
mediunidade não se revelar de modo algum” a
“renunciar a ser médium”, assim como “renuncia
ao canto quem reconhece não ter voz”.
(9)
Ou seja, podemos desenvolver a mediunidade, se
tivermos as qualidades orgânicas necessárias no
grau adequado, mas não basta
apenas a vontade de ser médium para sê-lo, pois
há limites que não conseguimos ultrapassar
somente com nosso desejo, e assim, devemos nos
contentar com os dons que Deus nos deu, “sem
procurarmos o impossível” pois se tivermos
mediunidade “ela se
manifesta por si mesma” (10).
Explicando um pouco melhor tais limitações,
Kardec afirma ser “peculiar aos médiuns” uma
“afinidade especial” e “uma força de expansão
particular, que lhes suprimem toda
refratariedade” e, assim, essa resistência da
matéria se opõe “ao desenvolvimento da
mediunidade na maior parte dos que não são
médiuns” (4) (grifo
nosso).
Deste modo, é evidente haver pessoas que, além
de não serem médiuns, não conseguem desenvolver
nenhuma espécie de mediunidade pois não possuem
a afinidade especial necessária, e tampouco a
força para transpor a barreira que separa o
mundo material do mundo espiritual.
N´O Livro dos Médiuns encontramos a
confirmação sobre a limitação da mediunidade
em outras ocasiões. Ao lermos sobre a perda e
suspensão da mediunidade, observamos haver casos
de sua interrupção com o objetivo de ensinar aos
médiuns sobre a liberdade dos Espíritos, “que
não podeis obrigá-los a agir à vossa vontade.” E
sendo “ainda por esta razão que as pessoas
que não são médiuns nem sempre recebem todas
as comunicações que desejam” (11) (grifo
nosso).
Também quando estudamos o questionamento de
Kardec sobre a relação entre obsessão e
mediunidade, aprendemos: “todo aquele que recebe
más comunicações espíritas, escritas ou verbais,
está sob má influência. Essa influência se
exerce sobre ele, quer escreva, quer não, isto
é, seja ou não seja médium” (12) (grifo
nosso),
deixando bem explícito não ser necessária a
mediunidade para sermos obsidiados, ou mesmo
influenciados, condição anteriormente citada
para afirmar que todos são médiuns. Além disso,
reafirma no resumo da questão: “Mesmo os que
não são médiuns podem se deixar apanhar
pelas artimanhas dos Espíritos inferiores.” (12) (grifo
nosso).
Os trechos elucidam claramente a existência de
pessoas desprovidas de faculdades que lhes
permita desenvolver a mediunidade, dependentes
de médiuns para receberem comunicações dos
Espíritos, e a independência entre obsessão e
mediunidade, ou seja, o fato de pessoas, não
médiuns, serem também obsidiados.
Para reforçar o conceito, o Codificador também
nos informa que metade do gênero humano é
médium, nos permitindo concluir que a outra
metade não o é: “Para se encarcerarem todos os
médiuns, seria preciso que se prendesse a metade
do gênero humano.” (13)
Quanto às afirmativas de sermos todos médiuns,
seja por podermos ouvir a voz do nosso anjo
guardião ou dos Espíritos, observamos nos dois
trechos d´O Livro dos Médiuns onde consta
tal assertiva, haver ressalvas quanto ao “ponto
de vista” (5) e ao “aspecto” (6),
nos explicando que somente sob tais condições
podemos afirmar sermos todos médiuns e não de
forma generalizada.
Ou seja, como nem todos podemos sentir a
influência dos Espíritos – apesar de sermos por
eles influenciados (14) - todos
podemos ser chamados de médiuns se assim
denominarmos a toda humanidade por ser possível
ouvir a voz dos Espíritos ou de nosso anjo
guardião.
Portanto, estamos diante de uma polissemia,
pois, como vimos, Kardec e os Espíritos usaram a
palavra médium com dois sentidos bem distintos.
Tal fato nos convida a ter cuidado em afirmar
categoricamente sermos todos médiuns, se o
contexto da afirmativa se referir à mediunidade
ostensiva, requerida para uma reunião mediúnica,
por exemplo.
Tal assertiva pode frustrar desnecessariamente
os irmãos neófitos, que, ao se depararem com tal
conceito, se colocado de forma inadequada, se
sintam mal por não serem médiuns e verem seus
esforços frustrados em externar a faculdade.
A insistência em defender o tema sem
condicionantes, diante da realidade pode até
afastar do Espiritismo aquelas pessoas que
acreditarem que todas as outras sejam médiuns,
caso elas, de fato, não o forem, ou, pior ainda,
não consigam desenvolver a faculdade mesmo após
tentá-lo.
Pelo prisma científico do Espiritismo, como o
próprio Kardec informou não ser médium, a
afirmativa feita sem as devidas ressalvas
poderia até colocar a credibilidade da
Codificação em risco ou dúvida.
Esperamos ter contribuído com o entendimento dos
diferentes escopos da palavra médium, e dos
limites existentes para o desenvolvimento da
mediunidade. Cremos que assim, auxiliamos também
a ciência Espírita, qualificando melhor uma
afirmativa que poderia se mostrar desatenta e
distante da realidade empírica.
Referências:
1. KARDEC,
Allan, O Livro dos Médiuns. Trad. Evandro
Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília,
DF: FEB, 2013. it. 159.
2. KARDEC,
Allan, Revista Espírita, Ano IV - 1861. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 1ª imp.
Brasília, DF: FEB 2019. Novembro, Reunião geral
dos espíritas bordeleses – Discurso do Sr. Allan
Kardec.
3. KARDEC,
Allan, O Livro dos Espíritos. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp.
Brasília, DF: FEB 2018.Introdução, it. IV.
4. KARDEC,
Allan, O Livro dos Médiuns. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp.
Brasília, DF: FEB 2013. it. 236.
5. ______,
______. Cap. XXXI, it. X
6. ______,
______. it. 182.
7. ______,
______. Introdução.
8. ______,
______. it. 200.
9. ______,
______. it. 218.
10. ______, ______. it. 171.
11. ______,______
. it. 220, parágrafo 11º.
12. ______,
______. it. 244.
13. KARDEC,
Allan, O Livro dos Espíritos. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp.
Brasília, DF: FEB 2018, Conclusão, it. VI.
Rodolfo Collevatti, palestrante e
conselheiro do Centro Espírita Divino Mestre,
reside em São José dos Campos (SP).