Seis questões sobre a exposição
espírita
No Projeto 1868,
Kardec se refere à necessidade da preparação de
pessoas esclarecidas e talentosas encarregadas
de espalhar a Doutrina espírita. [i] Isso
se deu de forma evidente: inúmeros espíritas,
investidos do espírito de gratuidade e de boa
vontade, vêm-se dedicando a essa tarefa.
Cerca de 150 anos depois, diante de profundas
transformações em todas as dimensões humanas,
incluindo o surgimento de disciplinas
inexistentes no século XIX, podemos examinar
algumas questões pertinentes ao ensino do
Espiritismo, enriquecidas por formas
contemporâneas de análise do homem e do mundo.
Para pensarmos sobre isso, apresento seis
proposições, considerando a ampla possibilidade
do contraditório, sempre saudável, quando
sincero e cordial.
Primeira
Não deveríamos falar em nome do Espiritismo,
mas, em nome da leitura que fazemos das questões
pertinentes ao Espiritismo. Isso porque ninguém
está autorizado, a falar em nome da Doutrina
espírita, por si só. O Espiritismo deve ser
entendido como um movimento de ideias
apresentadas pelos Espíritos e desenvolvidas e
expandidas pelos homens, cuja leitura guardará
sempre o colorido de quem lê.
Quem lê o faz a partir de si mesmo, de sua
personalidade, seu jeito de ser e pensar. Nossa
personalidade é construída a partir de diversas
e poderosas influências: espirituais,
biológicas, familiares, sociais, históricas etc.
Assim, na medida que somos seres singulares, a
compreensão do que vemos, ouvimos e lemos tem um
caráter de singularidade. O valor que damos às
palavras e aos conceitos é matizado por aquilo
que construímos em nosso mundo íntimo. A forma
de compreender um texto não será absolutamente a
mesma considerando indivíduos de culturas
diferentes, de condição social diferente, de
gênero ou idade diferentes, de etnia diversa, de
formação escolar diferente, de constituição
familiar diferente.
Pierre Bourdier iniciava suas aulas dizendo que é
evidente que aquilo que vou propor é minha visão
da sociologia.[ii] Chamado
a opinar sobre a política humana, Emmanuel fez
questão de deixar claro que os meus pareceres
são igualmente pessoais como os vossos, sem o
caráter da infalibilidade. [iii]
Ao examinarem, por exemplo, as desigualdades
sociais, um bem-sucedido empresário e um
assalariado, muito provavelmente, identificarão
aspectos diferentes do problema. De forma
semelhante, pessoas há longos anos consorciadas
irão apresentar problemas diferentes em torno do
matrimônio se comparadas com uma pessoa
celibatária.
Uma expositora muito conceituada na zona da mata
mineira causou certo alvoroço, quando colocou
que a principal função social da mulher é criar
os filhos. Assim, segundo ela, as mulheres
deveriam se dedicar ao lar e à família. Uma
jovem que a conhecia comentou:
- Ela devia ter revelado o salário mensal do
marido.
Segunda
Não deveríamos falar ancorados em uma pretensa
autoridade moral ou intelectual que,
eventualmente, nos foi conferida, ou nos
conferimos. Além dessa autoridade ser enganosa,
considerando a condição evolutiva da maioria
esmagadora dos Espíritos domiciliados na Terra,
ela não deveria ser justificativa para o
convencimento dos ouvintes. Mesmo porque quem
está autorizado a falar com autoridade? E como
podemos determinar quem tem autoridade para
falar com autoridade? A
argumentação lógica e embasada em princípios
racionais e autênticos deveria ser o único fator
a valorar nosso discurso.
De forma equivalente, não deveria também se
ancorar no fato de possuir uma origem mediúnica,
sabedores que somos dos amplos fatores que
intervêm na relação dos Espíritos com os homens.
Todos sabemos que dependendo do autor que
designamos a uma obra, a percepção da obra muda,
e também sua apreciação não apenas subjetiva,
mas também objetiva e objetivamente
quantificável pelo preço do mercado. Necessário
tentarmos minimizar essa possível influência.
Uma amiga, questionando sobre algo lido em uma
página mediúnica, foi interpelada pelo dirigente
do grupo de estudos:
- Mas quem somos nós para discordarmos do Dr.
Bezerra!
Kardec foi
decisivo ao afirmar que jamais o nome é uma
garantia; a única, a verdadeira garantia de
superioridade é o pensamento e a maneira por que
este é expresso. [iv]
Compete, portanto, ao expositor abrir mão de
qualquer pretensa autoridade ao apresentar um
tema, colocando-se ao lado do ouvinte,
convidando-o a refletir com ele em torno do tema
examinado.
Terceira
Observarmos cuidadosamente a temporalidade do
nosso pensamento. Tudo o que falamos tem o
caráter da transitoriedade, pois é como vemos a
questão no momento presente. Podemos vê-la de
forma diferente, amanhã. Isso deve ser
transparente em nossa fala. Kardec, em vários
pontos, reviu conceitos propostos anteriormente.
Lembrando que isso se deu em um período inferior
a 15 anos. Se essa possibilidade não está
colocada no discurso espírita, corremos o risco
de descambarmos na hipocrisia ou na incoerência.
Um exemplo pessoal: há cerca de trinta anos
assumi uma dada posição em torno do casamento
entre dois homens ou duas mulheres e a tornei
pública em artigos e palestras espíritas. Penso,
hoje, radicalmente de forma diferente. O mesmo
ante a possibilidade desses casais adotarem
filhos.
A ideia de que a personalidade não é
permanente tem sido cada vez mais aceita no campo
da psicologia,
derrubando a antiga suposição de que ela era
estática. As
mudanças de personalidade podem acontecer de
acordo com as mais variadas experiências
vividas. Ambientes de trocas constantes, seja
no trabalho ou
mesmo grupos de amigos têm impactos
significativos. Somos
mentes em constante mutação. A forma de
entendermos as coisas muda naturalmente quando
mudamos como pessoas.
Quarta
A fala espírita deve fazer pensar, levando o
ouvinte a chegar às próprias conclusões a partir
dos elementos que lhe apresentamos. Nosso
discurso pode ser admirável pelos resultados que
produz, mas também pelo modo de pensar que
coloca em operação. A melhor filosofia ensina a
se colocar em estado de disponibilidade total,
em estado de ignorância, como se necessário
fosse inicialmente desaprender tudo que sabemos
ou que acreditamos, e a partir daí
reconstruirmos nossas ideias em bases mais
sólidas.
Pierre Bourdieu
dizia, em suas aulas: meu
desejo não é na verdade transmitir saberes
realizados e prontos, mas sim uma maneira de
pensar, uma maneira de fazer perguntas.[v]
Segundo Paulo
Freire, pensar
certo é não estarmos demasiado certos de nossas
certezas. Daí que seja tão fundamental conhecer
o conhecimento existente quanto saber que
estamos abertos e aptos à produção do
conhecimento ainda não existente. [vi]
E ainda, Freire: Ensinar
não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou a
sua construção. Quando entro em uma sala de aula
devo estar sendo um ser aberto a indagações, à
curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas
inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto
em face da tarefa que tenho - a de ensinar e não
a de transferir conhecimento. [vii]
Confesso que, em 35 anos de atividade expositiva
espírita, por diversas vezes, fui levado a rever
“verdades” consolidadas, em contato com
desafiadoras colocações de pessoas que se
iniciavam no estudo espírita. Para ilustrar,
recorro a um fato que se deu, há muitos anos,
quando examinava o tema Reprodução
artificial.
Indagado sobre a eventualidade dos embriões
congelados encontrarem-se ligados a Espíritos,
um jovem comentou, com bom humor:
- Quer dizer, então, que nós inventamos uma
máquina de capturar Espíritos?
A perspicácia de sua colocação me fez rever a
maneira de entender o processo.
Quinta
Em nosso discurso, devemos estar cientes da
heterogeneidade das pessoas que nos ouvem ou
leem. São diferentes na capacidade de
entendimento e na possibilidade de aceitação das
ideias que apresentamos. Muitas pessoas não
conseguem, não podem ou não querem assimilar a
nossa proposta de compreensão dos temas
espíritas. Isso porque a assimilação de nossas
ideias pode ser incompatível com os elementos da
fé que as alimenta e as ajuda a superar as
vicissitudes da vida.
A fé deve ser vista, também, como estratégia de
sobrevivência; um sentimento que dá a força
necessária para a superação dos desencantos da
vida. Pode acontecer que nossa proposta de
entendimento venha abalar tão profundamente os
elementos de sustentação de sua fé, que ela
prefira não admitir a nossa hipótese.
Por isso, muitas pessoas não se adequam a certos
grupos de estudos espíritas. A forma de
abordagem dos temas as incomoda perigosamente,
pois colocam em xeque tudo aquilo em que
acreditam, e o que acreditam lhes tem servido de
sustentáculo nas lutas cotidianas. Assim, até
certo ponto, cada um “escolhe” em que acreditar.
Não “suportaria” crença diferente.
Para ilustrar, recorro a um fato ocorrido em uma
pequena cidade norte-americana (e que se
transformou em filme). Um casal, fortemente
agregado a uma comunidade evangélica, depara-se
com um grave problema de saúde no filho caçula;
Diabetes melitus tipo I. O pastor e os demais
membros da congregação estão convencidos de que
a cura vira pela fé, sem socorro médico. A
criança é colocada sobre uma mesa no centro da
igreja, e, dia e noite, oram por ela. Além das
preces, o jejum, e um fortíssimo sentimento
comunitário. Todos, inclusive os pais, estão
convencidos de que se trata de uma prova de fé
para a família, os amigos e os crentes: Deus vai
salvá-lo, restituindo-lhe a saúde, se mostrarem
uma fé capaz de “derrubar montanhas”.
Mas o pior acontece: a criança evolui para o
óbito.
O final do filme é revelador. Mostra os pais,
agora sozinhos, em profundo estado de desalento.
Em certo momento, a mulher, volta-se para o
companheiro e diz:
- Não sei o que mais me dói: a morte de nosso
filho ou a morte de minha fé.
Sexta
O Espiritismo lida com questões que estão na
dimensão da fé, e não de fatos científicos
consolidados. A fé é uma crença não baseada em
evidências, portanto, está sujeito ao
subjetivismo de quem crê. Há desonestidade
intelectual quando apresentamos uma questão de
fé como sendo algo comprovado a partir de
evidências científicas.
Fiquei imensamente surpreendido quanto
verifiquei que os conceitos de fases da libido
de Freud (oral, anal etc.), bem como o complexo
de Édipo, ou a interpretação psicanalítica dos
sonhos não eram fatos científicos. Porque me
foram apresentados na faculdade de Medicina como
tal, quando, em verdade, nunca deixaram de ser
ideias construídas pela mente genial de Freud,
mas jamais examinadas empiricamente pelos
métodos científicos. Faltou aos professores que
ministraram a disciplina dizer isso. Penso,
hoje, que talvez eles não soubessem disso.
Compete ao expositor espírita colocar de forma
transparente que Deus, reencarnação,
imortalidade da alma e mediunidade são artigos
de fé, que fazem parte do nosso credo. Kardec se
valeu da expressão Credo espírita, como
título de um artigo, publicado em Obras
póstumas. Esses princípios estão em dimensão
diferente daqueles que a ciência oficial
considera como fatos científicos. Não podem ser
colocados em uma palestra da mesma forma que
informamos que o coração humano tem quatro
cavidades, ou que respondem pelo clima de uma
região a latitude,
a altitude, as massas de ar e as correntes
marítimas.
Concluímos com a seguinte questão: as
proposições desenvolvidas neste texto poderiam
conduzir ao pensamento de que, tendo a
apresentação espírita o caráter da relatividade,
da modéstia, da transitoriedade, da
contextualidade, da crença não baseada em
evidências e da construção conjunta do
conhecimento, jamais seria possível a unidade
dos princípios espíritas.
Respondo com
Kardec. Ao dissertar aos espíritas lioneses,
afirmou que as
divergências que podem surgir só podem dar-se
nos detalhes e não sobre o fundo.[viii] Isso
porque os princípios fundamentais da Doutrina
são sobejamente conhecidos e sobre eles não há
controvérsias.
Segundo Pierre
Bourdieu, toda disciplina é constituída por uma
série de lições ligadas por uma lógica. Isso
envolve dificuldades porque a divisão em lições
e temas cria o risco de fazer a lógica do
conjunto desaparecer. [ix]Em
Espiritismo, a lógica que acompanha a análise de
qualquer tema é a evolução/progresso
espiritual.
Em um conjunto básico de ideias, orientado pelo
fio de prumo da evolução do Espírito se
estabelece a unidade espírita As controvérsias
se estabelecem nos desdobramentos desses
princípios, no que Kardec chamou de detalhes.
Diante desses
desdobramentos, Kardec convida ao uso racional
do pensamento: [...] tendes
um critério infalível para o apreciar, quer se
trate de simples detalhes, quer de sistema
radicalmente divergentes; examinai, antes, o que
é mais lógico, o que melhor corresponde às
vossas aspirações, que melhor pode alcançar o
objetivo. O mais verdadeiro será, evidentemente,
aquele que explica melhor, que melhor dá a razão
de tudo. Se se puder opor a um sistema um único
fato em contradição com a sua teoria, é que a
teoria é falsa ou incompleta. A seguir, examinai
os resultados práticos de cada sistema; a
verdade deve estar do lado de quem produz maior
soma de bem, exerce uma influência mais salutar,
produz mais homens bons e virtuosos e impele ao
bem pelos motivos mais puros e mais racionais. A
felicidade é o objetivo constante a que aspira o
homem.
E ainda: [...] a
verdade estará do lado do sistema que
proporciona maior soma de satisfação moral; numa
palavra, que torna o homem mais feliz.[x]
[iii] Palavras
do infinito
[v] Sociologia
geral volume I
[vi] Pedagogia
da autonomia