Caridade para com os criminosos e a
legitimação social da violência
Ensinam os
Espíritos que o mal é sempre o mal, qualquer que seja a
posição do homem.
É dizer que o mal não perde a sua qualidade mesmo nas
hipóteses em que sua prática seja necessária. O que é
mutável é o grau de sua reprovabilidade, sendo a
responsabilização do homem mensurada pela extensão de
sua informação.
Como assevera Kardec:
“Quem quer que conheça os preceitos do Cristo e não os
pratique, é certamente culpado;
(...)
Aquele, portanto, que não aproveita essas máximas para
melhorar-se, que as admira como coisas interessantes e
curiosas, sem que lhe toquem o coração, que não se torna
nem menos vão, nem menos orgulhoso, nem menos egoísta,
nem menos apegado aos bens materiais, nem melhor para
seu próximo, mais culpado é, porque mais meios tem de
conhecer a verdade.”
Dentre as exortações
evangélicas chamamos a atenção para a recomendação de
não nos opormos ao mal que, se deseja nos tomar a
túnica, devemos dar-lhe também o manto.
O Nazareno nos convida a embainhar a espada diante da
malevolência do outro, não sob a ótica da covardia (a
estender o pescoço ao ofensor) como imaginaria o
orgulhoso, mas a condenar a vingança, pois, não se deve
pagar o mal com o mal.
Neste contexto, nos parece que a sociedade contemporânea
com relação aos criminosos tem adotado atitude diversa
da informada pela moral cristã, ao legitimar a violência
como resposta justa da vítima e do Estado contra o
infrator.
A sugestão social, em um cenário de medo construído
principalmente pela mídia, que fomenta o imaginário
coletivo a respeito do que deve ser visto como crime;
quem é o criminoso e a solução que deve ser tomada, é a
declaração de guerra à criminalidade tendo o Estado, a
vítima e seu grupo como solucionadores do problema.
Sob este entendimento o criminoso sofre do Estado e da
sociedade, com a benção da população, cruel processo de
despersonalização e objetificação, através da mitigação
de direitos e liberdades, reafirmando que os fins
justificam os meios.
O réprobo, ser histórico, produto e produtor no cenário
sociocultural, tem a sua individualidade negligenciada
pelo aparelho estatal e pelo organismo coletivo, que o
reposicionam nas margens das relações, restringindo-lhes
os acessos às trocas sociais fundamentais para a sua
reforma e progresso.
Michel Misse, festejado pesquisador e estudioso da área
de crime e violência no Brasil, a esse respeito afirmou:
“Em todas as instâncias de apuração dos “autos de
resistência” notou-se um consenso sobre a legitimidade
de se matar “bandidos”, estando o problema dos autos de
resistência” na morte dos chamados “inocentes”. Há um
senso comum generalizado, não apenas entre policiais,
mas entre atores das demais instituições do Sistema de
Justiça Criminal e na opinião pública como um todo, de
que matar um criminoso não constitui crime, pois se
acredita que eles “merecem” morrer. A crença na
impunidade vinculada ao fantasma da violência urbana e
ao descrédito na capacidade punitiva do Estado,
fundamenta o apoio de significativa parcela da população
à prática do extermínio de criminosos, expresso no lema
“bandido bom é bandido morto”. (MISSE et al. 2011, p.
115)”
A assertiva bandido bom é bandido morto representa
a atitude da sociedade contemporânea em relação ao
delinquente a lhe revelar verdadeira repudia e, por
conseguinte, legitimar um tratamento degradante e
inferiorizado a ele dispensado.
O professor Guilherme de
Souza Nucci, jurista brasileiro, assevera que:
“(...) o longo dos anos, pudemos perceber que a referida
frase é um grito de desprezo de uns em relação a outros,
em atitude puramente maniqueísta, demonstrativa de que
os bons são os honestos e não cometem crimes; os maus são
os bandidos da sociedade, autores de delitos dos mais
diversos tipos. Há um interesse – consciente ou
inconsciente – para separar a sociedade em grupos, em
turmas, em comunidades estanques ou nichos
estratificados. Eis o mal da discriminação, que provoca
a segregação.”
A sociedade ainda não se
depurou da barbárie, eis que a vingança,
sob a roupagem de proteção e higienização de seus
quadros, é autorizada como reação justificada à conduta
criminosa.
Em muitas ocasiões se vê pessoas comuns e supostamente
bem-intencionadas, cometendo crimes mais bárbaros do que
os praticados pelos criminosos que desejavam punir.
Ocorrências como o vigilantismo e o linchamento surgem
como instrumento de um justiçamento popular.
José de Souza Martins,
estudando casos de linchamento no Brasil, reforça a
selvageria humana ao indicar que em muitas ocasiões o
propósito dos linchadores é mais do que matar o linchado
(sua vítima).
Trata-se de impor ao criminoso expiação e suplício reais
ou, no caso do que já está morto, expiação e suplício
simbólicos, como é próprio dos ritos de vingança e
sacrifício. E, além disso, eliminá-lo simbolicamente
como pessoa.
Essas práticas indicam que estamos em face de rituais de
exclusão ou desincorporação e dessocialização de pessoas
que, pelo crime cometido, revelaram-se incompatíveis com
o gênero humano, como se tivessem exposto, por meio
dele, que nelas prevalece a condição de não-humanas. As
mutilações e queimas de corpos praticadas nesses casos
são desfigurações que reduzem o corpo da vítima a um
corpo destituído de características propriamente
humanas. São, portanto, rituais de desumanização
daqueles cuja conduta é socialmente imprópria.
Eis a lógica
contemporânea: Criminoso é quem comete o crime primeiro.
Aquele que se vinga é a vítima criminosa, que
será sempre vítima, pois, sua resposta (delito/vingança)
é “culpa” do primeiro autor, que é mais malfazejo do que
ela, sua “vítima” (nunca ofensor).
É moralmente defeso
advogar em defesa da violência contra o infrator penal
sob a orientação ideológica de que bandido bom é
bandido morto, mesmo porque “(...) se amais os que
vos amam, que recompensa tendes?”.
Nós espíritas não podemos
olvidar que por detrás de todos os ensinos de Jesus há
um princípio geral, segundo o qual devemos proceder para
com os outros como queiramos que os outros procedam
conosco. Da mesma forma se dá com o tema caridade
para com os criminosos tratado no Evangelho
Segundo o Espiritismo pelo Espírito de Isabel
de França:
“Completa fraternidade deve existir entre os verdadeiros
seguidores da sua doutrina. Deveis amar os desgraçados,
os criminosos, como criaturas, que são, de Deus, às
quais o perdão e a misericórdia serão concedidos, se se
arrependerem, como também a vós, pelas faltas que
cometeis contra sua Lei. Considerai que sois mais
repreensíveis, mais culpados do que aqueles a quem
negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes,
eles não conhecem Deus como o conheceis, e muito menos
lhes será pedido do que a vós.”
De nossa natureza gregária e de nossa atribuição comum
de auxiliar o progresso um do outro, surge sublime
dívida de amor que nos conduz ao exercício da humildade
acolhedora e da compreensão inclusiva. Estas virtudes
deverão direcionar o tratamento a ser dispensado aos
criminosos, filhos de nosso Pai e instrumentos de Seu
ensino ministrado a todos nós.
Acautelemos o coração das reproduções hodiernas do
segregacionismo farisaico, que não tolerava o amor do
Cristo pelos publicanos e as pessoas de má vida, figuras
marginalizadas na sociedade da época.
Ajamos com o criminoso
recordando que há muitas condutas do homem que, apesar
de passarem ao largo de suas leis, são verdadeiros
crimes perante as de Deus.
Referências bibliográficas:
DIAS, Haroldo Dutra (Trad.), 1971- O
novo testamento, tradução de Haroldo Dutra Dias. –
1. ed. – 11. imp. – Brasília: FEB, 2020.
KARDEC Allan. O Evangelho segundo o
Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB,
2018.
KARDEC Allan. O livro dos espíritos.
Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2013.