Uma qualquer
No desfile da escola de samba Mangueira em 2024, em
homenagem à cantora Alcione, que completou cinquenta
anos de carreira, na abertura do desfile na Sapucaí, a
“marrom” deu um show particular e bradou firmemente:
"Muito prazer, galera. Sou Alcione. A negra voz do
amanhã. E não sou uma qualquer!"
A fala rapidamente viralizou, principalmente pela
sinceridade da cantora, que, sendo uma mulher negra e
nordestina, chegou aonde chegou, mostrando nessa
trajetória a sua força interior, não sendo uma qualquer
realmente. Mas para além dessa notícia no carnaval
carioca, esse é um caso interessante e que merece uma
reflexão sobre o ser ou não ser um qualquer.
Seremos especiais, ou seremos mais um? Há problema em
ser um qualquer? Ou em que ótica importa sermos mais
especiais ou não? Indagações em uma sociedade
competitiva e hierarquizada, na qual pululam mecanismos
de aferição de popularidade, estruturas para que se
revelem pessoas mais hábeis ou não em algo, e todos
buscam seus minutos de fama e alguns se impõem como
medalhões nas diversas áreas do saber, da arte, da
cultura e dos negócios.
A verdade é que essa luta frenética por não ser um
qualquer, e para que possamos no fim da trajetória
mostrar a todos que chegamos lá, que superamos as
promessas de catástrofe anunciada, nos pressiona muito.
E nos faz uma sociedade fatigada e permeada por essa
competitividade causticante, em especial pelo fenômeno
das redes sociais.
Certamente o sucesso, a vitória, a realização, são
valores interessantes e que motivam o ser humano a ser
mais e melhor, mas ao mesmo tempo toda essa coisa é por
vezes carregada de doses cavalares de egoísmo, de
recalque e, ainda, de uma ambição insana e desmedida,
que nos leva à cegueira e à ilusão.
Sim, em alguma medida somos todos especiais, e trazemos
sementes potenciais das lutas reencarnatórias até
determinado momento e que podem despertar. Somos
especiais como pais para nossos filhos, somos especiais
alguns pela voz que encanta multidões, mas também pelo
gesto humilde e silencioso que ajuda o próximo.
Importante saber que somos especiais sempre para alguém.
E para esse alguém fazemos diferença. Assim como as
pessoas especiais de grande destaque na sociedade
inspiram e impulsionam muitos, e têm responsabilidade em
alguma medida pela forma com que esse carisma é
utilizado. Não ser um qualquer em um sentido terreno é
uma meta de muitos, mas para aqueles que chegam lá por
vezes é um fardo pesado de carregar.
Ao reencarnarmos, como um propósito, ali já deixamos de
ser um qualquer, e passamos a ser um ser específico.
Mas, a forma como nos conduzimos nessa luta, como
enfrentamos os desafios, revelarão o que de especial que
existe em nós, suplantando as circunstâncias e fazendo a
diferença.
Espíritos evoluídos, que, pela sua trajetória, são seres
especiais, se reencarnados em condições ditas normais,
logo se fazem notar pela grandeza de suas atitudes. Não
somos um qualquer, nos fazemos especiais pelas nossas
escolhas e trajetórias, e essa é a beleza da
reencarnação.
A velha história do homem que devolve estrelas do mar e,
ao ser indagado, indica que para aquela ali que ele
salvou, ele fez diferença, nos mostra que ser especial é
uma relação interpartes, cotidiana, e que alguns, pelos
seus compromissos e potencialidades, tornam esse brilho
mais radial. Mas, ao fim, é só luz, que espalhamos de
nossos lábios e de nossos olhos.
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