Entrevista

por Orson Peter Carrara

Livro sobre saúde mental  homenageia a Fundação Espírita Allan Kardec

Graduado em Psicologia e Serviço Social, mestre em Psicologia e doutor em Ciência Política, atuando profissionalmente como Coordenador do Serviço Residencial Terapêutico (SRT) do município de Franca (SP), onde nasceu e reside, Bruno Ricardo Bérgamo Florentino (foto) vincula-se à Fundação Espírita Judas Iscariotes e à Fundação Espírita Allan Kardec, ambas na cidade onde reside. Tornou-se espírita por volta de 1992, aos 8 anos de idade, quando os pais começaram a frequentar um Centro Espírita. Acompanhava-os nas reuniões, participou da evangelização infantil, integrou-se com os pais em trabalhos voluntários e filantrópicos realizados por agrupamentos espíritas nas comunidades carentes da cidade. Com o recente lançamento de seu livro Saúde Mental no Brasil, buscamo-lo para a presente entrevista:

 

Seu livro Saúde Mental no Brasil, em homenagem ao centenário da Fundação Espírita Allan Kardec, surge em momento de intensas transformações sociais, inclusive na legislação específica sobre o tema. Como foi juntar a homenagem atual, incluindo a história vivida pela instituição e a realidade brasileira sobre o assunto nos últimos cem anos?

Os diretores da Fundação Espírita Allan Kardec, em meados de 2020, tiveram a brilhante ideia de homenagear a instituição através da publicação de um livro. A instituição estava em via de comemorar seu primeiro centenário, logo decidiram pela publicação de um livro capaz de resgatar ou recontar os principais acontecimentos sucedidos ao longo das décadas, sem desconsiderar a sua inserção e relação com o contexto nacional da saúde mental. Foi um processo muito gratificante pela oportunidade de conhecer melhor a história de uma das principais instituições de saúde mental do Brasil. O contato com os textos também foi muito entusiasmante. Eu diria que a publicação desse livro definitivamente marcou minha vida, pela constatação de que os pioneiros do Espiritismo conseguiram fazer tanto, com tão pouco.

Temos historicamente no Brasil o surgimento de vários hospitais psiquiátricos, inspirados pelo ideal espírita da caridade, atendendo essa faixa da população atingida pelos distúrbios mentais, hoje totalmente modificados em sua estrutura de atendimento. Analisadas historicamente, como pesquisador, como você vê essa mudança ao longo das décadas?

No passado, o ideal espírita da caridade fomentou a abertura de inúmeras casas de amparo e atendimento aos sujeitos que padeciam de algum tipo de sofrimento mental. Alguns centros espíritas inauguraram casas de saúde que, posteriormente, se transformaram em hospitais psiquiátricos de origem ou natureza não governamental, isto é, dirigidos por agrupamentos espíritas. Ainda que essas obras caritativas tenham surgido em contextos de pouca regulamentação do setor, com o passar dos anos, inevitavelmente, tiveram que ajustar sua atuação às legislações vigentes. Uma grande parte das mudanças foram positivas e benéficas aos sujeitos-pacientes que buscavam tais serviços. Mas, infelizmente, nas últimas décadas, algumas narrativas e diretrizes acabaram sufocando e extinguindo a maior parte dos hospitais.

Especificamente no caso de Franca com a instituição fundada pelo Sr. José Marques Garcia, dadas as pesquisas, o que lhe ocorre dizer aos leitores, considerando as lutas, obstáculos, dificuldades de todo gênero e hoje uma nova realidade?

Certamente estamos falando de tempos completamente diferentes. No passado, se por um lado não havia tantas regulamentações, diretrizes e normativas para o atendimento deste público, também não havia quase nenhum tipo de apoio financeiro por parte dos setores públicos. Os hospitais psiquiátricos de natureza não governamental sobreviviam à sua própria revelia e sorte. Hoje eles podem contar com algumas linhas de financiamento, mas acabaram tornando-se – injustamente, a meu ver – os grandes vilões da história da saúde mental. O modelo hospitalocêntrico deu lugar a novas modalidades de atendimento, valorizando atenções de menor complexidade, como os Hospitais Dia, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências Terapêuticas e outras ações desenvolvidas na comunidade.

De suas pesquisas em jornais e arquivos, documentos e cartas, o que mais lhe chamou atenção?

A história da Fundação Espírita Allan Kardec é inspiradora e repleta de acontecimentos que merecem ser destacados pela bravura, perseverança e ternura dos seus dirigentes. Diante de tantos fatos e narrativas interessantes, confesso ser uma tarefa difícil elencar algo que mais me chamou a atenção. Contudo, o texto “Não houve milagre!”, de autoria do Sr. José Russo, fez com que eu passasse a admirar e respeitar, ainda mais, a história da Fundação Espírita Allan Kardec. Isto porque, no ano de 1973, num contexto de caos e tragédia na maior parte dos hospitais psiquiátricos, o Hospital Allan Kardec registrou apenas um óbito dentre suas centenas de moradores. Este pode ser considerado um verdadeiro feito histórico, símbolo de todo o trabalho realizado de forma humanizada, acolhedora e qualificada.

Com sua formação em Psicologia e Serviço Social, mestre em Psicologia e doutorado em Ciência Política, como foi defrontar-se com a realidade e história da instituição, de vez que tais atividades ao longo do século se enquadram em todos os estudos acadêmicos que realizou e títulos que conquistou? Afinal, Psicologia, Serviço Social e Política adentram expressivamente a área da saúde mental.

A imersão que tive na história da FEAK foi realmente extraordinária. Qualquer estudante ou pesquisador do campo da saúde mental compreende que a história da saúde mental, no Brasil ou no mundo, representa uma tragédia de grandes proporções, sobretudo pelo sofrimento que a maior parte dos hospitais impunha aos seus pacientes. Na literatura da Psicologia e do Serviço Social é possível encontrarmos o termo “holocausto brasileiro”, utilizado para comparar os hospitais psiquiátricos aos campos de concentração nazistas. No entanto, o livro revela que a história possui suas exceções, e também abre caminho para que outros estudos comparativos sejam realizados, especialmente investigações das principais diferenças entre os hospitais psiquiátricos de natureza governamental e os de natureza não governamental, dirigidos por grupos e entidades espíritas.

Por outro lado, a formação e vivência espírita trouxe-lhe que panorama na pesquisa e conclusão da obra?

A vivência espírita possui uma relação forte com os pressupostos da caridade, considerada uma das virtudes mais elevadas, capaz de inspirar os seres humanos à prática do bem. Ainda que a pesquisa não se tenha debruçado sobre o tema específico da caridade, esta discussão está presente do início ao fim da obra. No livro, percebemos que a verdadeira caridade é desinteressada, não mede esforços, apoia os necessitados indistintamente. Neste sentido, o diálogo estabelecido entre a história da instituição e o contexto nacional foi-me despertando, ao longo do processo, uma hipótese que fica bastante evidente ao concluir a obra: a de que existem diferenças significativas entre a assistência psiquiátrica empreendida por instituições espíritas e o atendimento prestado por equipamentos públicos dirigidos pelo Estado (setor não estatal e setor estatal).

O que mais o comoveu na pesquisa?

O que mais me comoveu, no processo da pesquisa, foi a dimensão do altruísmo, convicção e abnegação dos precursores da Fundação Espírita Allan Kardec. A resiliência que os diversos dirigentes da instituição tiveram ao longo das décadas, mesmo diante de situações aparentemente incontornáveis, é algo realmente impressionante e comovente. Por outro lado, o que mais me incomodou, se assim posso dizer, foi o fato de que uma boa parte dos hospitais psiquiátricos, especialmente os de natureza não estatal, que em grande parte estavam vinculados a instituições espíritas, acabaram sofrendo algumas consequências indesejadas da reforma psiquiátrica e tiveram que cessar suas atividades. Essa realidade, a meu ver, acabou sendo uma injustiça contra instituições que por décadas se dedicaram a realizar um trabalho digno e humanitário.

Percebe-se na obra a enorme ascendência moral do fundador da instituição nos enfrentamentos variados. Como gostaria de situar para o leitor essa ocorrência?

O Sr. José Marques Garcia, fundador da instituição, foi uma liderança sem igual para a Doutrina Espírita. Mesmo sem ter uma formação específica, acabou sendo pioneiro, especialista e referência em diferentes áreas do Espiritismo: aprendeu a arte da homeopatia, fundou uma farmácia, um centro espírita, uma casa de saúde – que posteriormente se transformou em hospital psiquiátrico – e uma gráfica que tinha um amplo alcance. Descrito como um espírito de amor e sacrifício, dedicou a vida aos enfermos da razão e do espírito. Sua personalidade congregou um grupo de espíritas que não apenas deram continuidade ao seu legado, como também implementaram outras majestosas obras sociais no campo da filantropia e do Espiritismo. Dentre essas personalidades, vale ressaltar a atuação do seu sucessor, o Sr. José Russo, que com muito esforço conseguiu manter de pé e ampliar as obras iniciadas pelo Sr. José Marques. Fora um grupo de notáveis que realmente estivera à frente de seu tempo.

O índice do seu livro é muito atraente, motivando o leitor. Das histórias reunidas há alguma bem especial?

Todos os ensaios foram cuidadosamente preparados e revisados. São histórias interessantes, de personagens reais, que se debruçaram sobre a missão de edificar uma obra de grandes proporções no campo da caridade. O livro é composto de várias histórias especiais, sobretudo as que se referem ao início de todo o trabalho, nos tempos dos Srs. José Marques Garcia e José Russo, isto é, os primeiros 50 anos da instituição. Uma história que considero especial é a de Dalila Pereira dos Santos, conhecida como a “filha da casa”.

O que gostaria de dizer sobre a personagem "filha da casa"?

A Dalila Pereira dos Santos foi uma figura para lá de especial na história da instituição. A vida de Dalila reunia todos os componentes de uma tragédia a ser caída no esquecimento. Filha de uma paciente internada, cuja mãe fora abandonada pelo pai, Dalila nasceu no hospital. E ao invés de ser encaminhada para a adoção, o que seria o habitual em qualquer outra circunstância ou instituição, Dalila foi batizada como “a filha da casa” pelo Sr. José Marques Garcia e posteriormente apadrinhada pelo Sr. José Russo. Assim, Dalila cresceu no hospital e dedicou sua vida a ele, assumindo funções importantes nos diferentes setores. Considero Dalila uma personagem singular na história da FEAK, o símbolo de que o hospital era um ambiente fraterno e acolhedor. 

Deslocando-se da instituição e analisando o cotidiano do país, como considera que está a saúde mental do brasileiro? Alguma sugestão para preservação ou conquista de uma melhor saúde mental?

A saúde mental do brasileiro sempre demandou cuidado e atenção. A meu ver, nossa saúde mental sempre esteve na berlinda, enfrentando os desafios inerentes a cada contexto histórico. No entanto, a contemporaneidade tem produzido alguns desafios mais persistentes e até mesmo preocupantes, como a dependência de certas tecnologias, o uso excessivo das redes sociais, a emergência de transtornos até então inexistentes (ex.: coronafobia), a preponderância da indústria farmacêutica sobre a homeopatia e o distanciamento de pessoas da religiosidade. Acredito que muitos problemas atuais poderiam ser minimizados, ou até mesmo resolvidos, se as pessoas adotassem um pouco mais o cultivo da gratidão e o exercício da caridade.

Algo mais a acrescentar?

Sim, gostaria de acrescentar que a imersão na pesquisa e escrita do livro “Saúde Mental no Brasil” foi tão profunda que o contato que tive com os textos da época me motivaram a escrever um novo livro, o qual, de certo modo, está completamente relacionado a este que estamos discutindo. Pude perceber que os pioneiros da Fundação Espírita Allan Kardec trabalharam tão intensamente, de modo tão vibrante, que, mesmo perante os inúmeros obstáculos, conseguiram reunir coragem e disposição para inaugurar mais uma frente de trabalho inspirado pelo ideal espírita, desta feita, no campo da assistência social. Fundaram, em meados de 1946, a Fundação Espírita Judas Iscariotes, uma instituição que também enfrentou inúmeros desafios, mas, com muita dedicação, e o passar dos anos, superou cada obstáculo colocado em seu caminho e hoje se tornou uma das maiores referências no Estado de São Paulo.

Suas palavras finais.

Gostaria de deixar registrado o meu sincero agradecimento aos atuais dirigentes da Fundação Espírita Allan Kardec, especialmente a Mário Arias Martinez e Fernando Palermo, pela oportunidade única de poder participar deste momento tão singular na história da instituição. Poder ter contribuído com este registro, no contexto do primeiro centenário da instituição, foi uma experiência muito enriquecedora, especialmente pelo fato de que atualmente estou trabalhando no campo da saúde mental. Foi um processo de muito estudo e leitura, mas também de muito aprendizado sobre a história da saúde mental no Brasil e, especialmente, a história da FEAK neste contexto. Agradeço também à Revista “O Consolador”, pelo espaço e pela oportunidade de conversar com os leitores deste valioso periódico. Um forte abraço.

 

Nota do Entrevistador:  

A Fundação Espírita Allan Kardec foi fundada em 1922. O livro citado na entrevista foi publicado pela Intelitera Editora.

 
 

 

     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita