O paulistano Pedro de Campos entrega ao público
espírita uma nova obra de referência histórica.
Trata-se da mais recente biografia do
codificador: Cidadão Rivail, raízes e vida de
Allan Kardec, publicada pela Casa Editora O
Clarim e tema deste bate-papo. Robusta,
detalhada e com a descrição de vários fatos
pouco conhecidos da história do professor
Rivail, embasados por mais de duas centenas de
documentos, novas iconografias e mais de mil
fontes consultadas, exibe o desenrolar completo
de sua vida profissional, incluindo as
iniciativas empresariais nos vários ramos de
negócios até iniciar pesquisas sobre as mesas
girantes.
RIE - Pedro,
conte-nos como se aproximou do Espiritismo.
Pedro - Foi
minha saudosa mãe Ana de Campos, nascida
Latvenas, que me iniciou na doutrina. Sua
família veio da Lituânia em 1926, Ana com dois
anos de idade. Minha avó Verônica passou a dar
aulas de catecismo no Colégio Santa Inês, em São
Paulo, contraiu uma doença infecciosa e logo
desencarnou, mas pediu à madre superiora
salesiana para cuidar de suas filhas: Sofia e
Ana, de cinco e sete anos. Ambas foram internas
no Colégio do Carmo de Guaratinguetá. Naquelas
dependências, Ana passou a ver freiras e padres
desencarnados e andava sonâmbula à noite pelo
convento. A freira Emilia Borgna, já velhinha, e
que, em Mornese, na Itália, tinha sido aluna de
Madre Mazzarello, fazia novenas e preces para
cessar os feitos. As duas meninas ficaram ali
internas por dez anos até que o tio Antonio
Nieniskis, já casado e em condições de
mantê-las, retirou-as do colégio. Mas os
fenômenos continuaram e Ana procurou a Federação
Espírita do Estado de São Paulo (FEESP), onde
fez todos os cursos; depois, já casada, fundou
um centro espírita. Nesta época, eu estava no
início da adolescência, mas desde criança já
presenciava as manifestações em minha mãe, antes
mesmo de ser fundado, em 1963, nos fundos da
nossa propriedade, em Guarulhos, o Centro
Espírita Ana Beliunas, nome em homenagem ao
Espírito de sua tia.
RIE - Quais as principais dificuldades para a
reconstrução de uma história de vida?
Pedro - O
principal obstáculo é conseguir informações
corretas. A verdade tem de ser buscada de todas
as maneiras legalmente possíveis, mas cada
notícia achada tem um grau de confiança para ser
ou não considerada. Os informes mais precisos
estão em documentos oficiais e academias, depois
em livros, revistas e jornais da época dignos de
crédito. É claro que em todo trabalho literário
há também a interpretação do autor, a qual deve
ser criteriosa. A vida de uma pessoa é complexa
e cheia de detalhes para ser resumida apenas nas
páginas de um livro — por isso há várias obras
biográficas, cada qual dando ênfase a certos
aspectos do biografado.
RIE - Como surgiu o projeto Cidadão Rivail e
quanto tempo levou para reunir o material do
livro?
Pedro - Um
ano antes da pandemia do coronavírus estive
revisitando França, Suíça e Itália. Após a
viagem, o projeto começou a ficar delineado na
minha cabeça. Quando a pandemia chegou ao Brasil
e os resguardos foram aumentados, recebi o
convite da espiritualidade para aproveitar esse
tempo e reabrir a história de vida do
codificador. Teria então de observar o que há de
mais atual nas bibliotecas, em especial nas da
França. Foram três anos de trabalho intenso com
cerca de dez horas por dia em pesquisas,
checagem e redação. Lembro que, no passado,
nenhum dos biógrafos de Kardec o conheceu; a
primeira biografia de porte surgiu somente em
1896, 17 anos após a sua desencarnação. As
dificuldades para obter informes precisos eram
muitas e a organização dos arquivos viria
somente muito depois; era difícil achar o local
certo para pesquisar, dispor de tempo e recursos
financeiros para realizar um trabalho sem
retorno, senão o ideológico. Hoje, com os novos
recursos da informática, as coisas ficaram mais
fáceis, estão disponíveis antigos informes
digitalizados que podem aclarar fatos
intrincados ou obscuros de sua vida. Muita coisa
nova para ser apreciada. Não haveria espaço aqui
para os destaques e comentários, vamos deixar as
surpresas para serem achadas na leitura.
RIE - O
livro reúne um rico e extenso acervo de
ilustrações e documentos. Especificamente sobre
este material, qual a importância da tecnologia
no auxílio à pesquisa?
Pedro - Alguns
anos antes, buscando saber mais sobre a vida de
Kardec, notei que vários sites davam os
endereços das fontes originais sem a precisão
necessária para o leitor seguir os mesmos
passos, fazer a checagem e tirar as próprias
conclusões. Para quem busca a verdade, a
precisão é importante, sem o que paira a
incerteza. Considerei também que o trabalho não
poderia ficar restrito às notícias virtuais,
geralmente de leitura rápida, mas seria preciso
estampá-las para detido estudo. A dificuldade
foi achar as notícias em fontes originais. Mais
de três centenas de ilustrações e documentos
estampados agora demandaram intensa procura em
cartórios, órgãos de governo, academias privadas
e mídia impressa. Hoje, grande parte desse
material está inclusive em manuscritos que
precisam ser lidos e traduzidos, o que exige
enorme trabalho. Sem o auxílio do computador e
da internet, do trabalho anterior de outros
confrades e da digitalização dos originais por
órgãos oficiais e privados, o nosso esforço não
chegaria ao resultado que chegou. Ainda assim,
fatos novos poderão sobrevir, porque o manancial
parece não estar esgotado. Contudo, falar
somente de registros em papéis seria dar a
público apenas o esqueleto da história, era
preciso colocar os protagonistas dentro do
contexto histórico vivido e interpretar os fatos
— não nos furtamos a isso.
RIE - Como
dimensionar a influência de Pestalozzi na
formação de Rivail e, posteriormente, no
trabalho de Codificação Espírita?
Pedro - O
menino Rivail fez o primário em escola comum,
não em Lyon, onde nasceu, mas em
Bourg-en-Bresse, onde morava, comuna da França,
capital do Ain. Os estudos que se seguiram foram
na Suíça, aos cuidados de Pestalozzi. O
prestigioso mestre suíço era o grande educador
da época. Em seu colégio na comuna de
Yverdon-les-Bains, às margens do Lago de
Neuchâtel, Rivail finalizou o hoje curso
fundamental, teve o ensino médio completo,
apreendeu várias línguas, formou-se professor de
nível médio e técnico na área contábil,
preparou-se também para o curso superior. Ficou
interno em Yverdon estudando em tempo integral
todos os dias, exceto aos domingos. O diretor
Pestalozzi contava com a colaboração de uma
equipe emérita de professores — as melhores
cabeças para cada matéria. A escola tinha também
métodos inovadores. Os resultados de sua
formação podem ser vistos nos valores morais que
demonstrou ao longo da vida, nos livros
didáticos que publicou, nas escolas que fundou,
nas demais atividades profissionais que exerceu
com retidão e rara capacidade. Seguiu os
preceitos de Pestalozzi e na maturidade, quando
passou a contatar os Espíritos, renovou o saber
do homem sobre o mundo espiritual, interpretou
os informes ajuizadamente e redigiu a
codificação de modo preciso, usando os subsídios
que tivera em Yverdon.
RIE - Tendo uma visão global da vida do
Codificador, o que pessoalmente mais lhe chama a
atenção?
Pedro - Recordo-me
de que o professor Rivail fez o seu notável Discurso
de Entrega de Prêmios, a 14 de agosto de
1834, no final do ciclo escolar, e afirmou: “A
educação é a obra da minha vida.” Estava
distante vinte anos de suas pesquisas com os
Espíritos, embora já conhecesse as técnicas
anímicas para magnetizar e colocar o sensitivo
em estado sonambúlico, emancipando sua alma para
trazer informes do mundo espiritual, mas ainda
não contatava os Espíritos como o faria mais
tarde. Foi somente na fase espiritista que
compreendeu suas antigas realizações como
preparação para uma tarefa maior. Acompanhei pari
passu o desenrolar de cada fase de sua vida
e considero que ao nascer ele já trazia em
potencial as qualidades para realizar a nobre
tarefa. Mas teve ainda de viver 50 anos para se
preparar e alcançar o esplendor: nasceu no seio
da prestigiosa família Duhamel, estudou em
Yverdon e foi a Paris exercer várias atividades
até o início dos três últimos lustros de vida;
assim preparado, redigiu então os informes dos
Espíritos e assentou a filosofia espírita. A
obra de sua vida foi de fato a educação, mas não
apenas aquela vigente em seu memorável discurso
aos pais de alunos, porque depois foi extensiva
ao homem em geral, com obras que deram origem ao
Espiritismo. Vejo isso como plano de elevação
espiritual levado a efeito.
RIE - O que podemos destacar da relação de
Rivail com a esposa Amélie Boudet?
Pedro - A
senhorita Boudet era uma moça magra, de baixa
estatura, formas definidas, cabelos presos,
aspecto jovial, adornava-se e vestia-se bem, era
séria e muito discreta, de ótima formação
cultural e alto nível intelectual. A atração de
ambos se deu à primeira vista, consolidando-se
em casamento baseado em grande amor. Em 1832,
ano em que se casaram, ela já tinha três livros
publicados de Belas Artes, formação que tivera
enquanto na casa dos pais. Seus conhecimentos
englobavam literatura, desenho, pintura,
escultura, música, dança, artes dramáticas e
outros. O marido, a seu turno, além de
proprietário, juntamente com o tio François
Duhamel da conhecida Instituição Rivail, situada
no centro movimentado de Paris, ao lado da
primeira loja de departamentos do mundo, Le Bon
Marché, já era autor de oito livros dedicados ao
ensino. Ambos estavam afinados na formação
cultural e administrar aquela instituição era
tarefa apenas comum e resultante. Fundar depois
uma escola para moças, tendo à frente madame
Rivail dirigindo as meninas, seria somente uma
questão de tempo e ocasião, como de fato se
observou alguns anos adiante. Os detalhes destes
e de outros episódios, além das novidades sobre
a vida de madame Rivail e de seu período como
madame Kardec foram narrados nesta nova
biografia do codificador que estamos anunciando.
RIE - Suas considerações finais e algo mais que
queira acrescentar.
Pedro - Após
dedicar tempo e empenho neste trabalho penso que
fiquei saudosista. Revendo as práticas da época
de Kardec, lembrei-me do tempo em que eu
presenciava as antigas sessões em torno de uma
mesa, com os médiuns de mãos postas e a
iluminação abaixada, sob o comando de hábil
dirigente. Convidados e adeptos sentavam-se na
sala. As reuniões eram simples, mas organizadas
e bem divididas: abertura, evangelho,
comentários, incorporações e mensagens,
psicografias consoladoras, passes, água
fluidificada e encerramento. Em dias específicos
havia outros tipos de sessões, como a de
desobsessão. O público era cada vez maior e os
adeptos aumentavam; jornais, revistas e livros
eram ofertados e a sociedade crescia a olhos
vistos. Lembro-me de uma pessoa que não era
espírita, mas gostava de assistir à desobsessão;
certa feita, manifestou-se um Espírito que lhe
era familiar e deixou-a emocionada — tivera ali
a prova de que a vida continua; depois,
tornou-se espírita atuante e fez trabalhos
valorosos. Eu fico aqui a recordar que o
Espiritismo nasceu do contato com os Espíritos e
pergunto a mim mesmo: — Não seria o caso de
voltarmos às origens e mostrar mais aquelas
manifestações? A resposta fica por conta de cada
um. Temos um encontro marcado na leitura de Cidadão
Rivail, raízes e vida de Allan Kardec.
Nota da Redação:
Esta entrevista foi publicada
originariamente na Revista Internacional de
Espiritismo, edição de Dezembro 2023.
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