Perante a dor: vantagens do Espiritismo
É
nos momentos em que, inesperadamente a dor nos bate à
porta de forma mais intensa e, de certo modo,
assustadora, que somos acometidos por reflexões mais
profundas sobre o sentido da vida, do nosso destino e
até do sentido da própria dor.
Não
tenho por costume escrever sobre assuntos muito
pessoais, mas acho que há alturas na vida em que
sentimos que as nossas reflexões mais íntimas podem
também servir aos outros e ser fonte de esperança para
quem passa ou possa vir a passar por algo que de alguma
forma se assemelhe. Damos conta que os nossos
sentimentos, tristezas, frustrações, como também as
alegrias e contentamentos, são tão comuns a tanta gente,
em qualquer parte do mundo, que parece que já não são
exclusivamente nossos, mas pertencem ao mundo, porque
são marcas da nossa humanidade.
Por
outro lado, apesar dessa realidade, a dor é algo de
profundamente íntimo. É de todo impossível saber o que o
outro sente, sentir em nós a dor do outro, ou passar a
outro a nossa dor. Por esse motivo, a dor é qualquer
coisa de solitário, única, que se entranha no âmago de
cada ser. Todos, na Terra, sofrem. Faz parte da nossa
realidade, é a forma de nos ajustarmos e crescermos, de
desenvolver a sensibilidade do ser, de equilibrar as
variáveis que nos fazem evoluir. Como diz Léon Denis,
“Fundamentalmente considerada, a dor é uma Lei de
equilíbrio e educação” (O problema do ser, do destino
e da dor, Terceira Parte, Potências da Alma; XXVI, A
Dor). Deixará de existir um dia, quando nos tornarmos
espíritos menos materiais e fizermos parte da realidade
de outros mundos mais evoluídos, ou habitarmos uma Terra
que já não seja de provas e expiação. A dor não é para
sempre, mas é uma realidade atual de todos os seres
terrenos, sejam humanos, animais ou plantas. A dor é de
todos nós, mas, mesmo perante situações semelhantes,
cada um de nós tem sua forma de lhe reagir, de assimilar
os seus aspetos mais íntimos.
Fui, recentemente, há pouco mais de um mês,
diagnosticada com um cancro (câncer em português do
Brasil) do pulmão. Foi algo que me surpreendeu. Nunca
pensamos que nos vai acontecer, pensamos, tão
erradamente, que só acontece aos outros. Quando entra na
nossa realidade pessoal, sentimos um “perder do chão”
completo, entramos em choque e somos impactados de uma
maneira tão profunda que não é explicável para quem
nunca passou por algo semelhante. Depois, passado o
primeiro impacto, vem em catadupa todo o género de
reflexões: Por quê? Por que eu? Não sou fumadora; nunca
fui. Por que logo o cancro do pulmão? O que vai
acontecer comigo? Terei forças para superar? Pelo menos
para enfrentar a dor? E depois? Se não superar, o que
virá depois? E, às vezes, quase como se nunca nos
tivéssemos dado conta antes, percebemos, finalmente, que
não somos imortais aqui na Terra. Que há de chegar o fim
desta existência e que até poderá não estar tão longe
como
desejaríamos. Que, uma coisa é certa, não sabemos quando
será e a qualquer momento poderá surgir, da forma mais
inesperada, como um ladrão que nos assalta a casa pela
calada da noite. Então, a ideia da morte deixa de ser
uma coisa vaga, torna-se uma realidade quase palpável.
Surge o medo.
O
medo não é uma coisa errada. Nem mesmo para quem
alimenta uma Fé fortalecida pela crença, ou melhor, pela
certeza espírita. O medo torna-nos mais humanos, é uma
forma, consciente ou inconsciente, de defesa da vida; é
o nosso instinto mais remoto a fazer-nos lutar pela
preservação da vida. É algo com que Deus nos dotou para
que nos agarremos à existência e possamos levar os
objetivos desta reencarnação avante. Sem o medo, na
certeza da continuidade da vida e das oportunidades,
tornar-nos-íamos descuidados, desleixados da nossa
saúde, da preservação do corpo, templo santo do
espírito, e passaríamos a eternidade num vaivém inútil
entre “a Terra e os céus”, como se estivéssemos em
passeio. E a morte, mesmo apesar de já termos passado um
imenso número de vezes por ela, graças ao esquecimento
temporário das vidas passadas, continua a ser um salto
no desconhecido.
Sou
espírita desde a minha juventude. Já lá vão trinta e
sete anos, desde que entrei em contacto com a Doutrina
abençoada e, pelo estudo das obras da codificação e
outras que o Espiritismo nos oferece, aprofundei
conhecimentos que me têm sido valiosos para entender a
vida e o seu sentido. O conhecimento espírita, que
continuo a tentar aprofundar de todas as maneiras que
consigo, tem-me fortalecido, tem sido o meu esteio
perante as circunstâncias e desafios que a vida me
oferece. Tem-me ajudado também a levar algum consolo a
outras pessoas, que de outra forma não saberia como
ajudar. Já passei por alguns momentos dolorosos e tenho
conseguido manter um equilíbrio e tranquilidade de
espírito que só uma Fé fortalecida pelo raciocínio
poderá explicar.
Mais uma vez, agora de uma forma inesperada e mais
acentuada, estou a ser desafiada por entraves que põem à
prova a minha capacidade de resiliência, e se consigo
manter-me em equilíbrio e sentir-me feliz, devo-o ao
Espiritismo. Ser espírita não é estar isento de
sofrimento. Deus não tem filhos e enteados. A dor visita
a todos de igual forma, ou das formas mais variadas e
intensas, mas sem que ninguém fique isento dela. Ser
espírita não é receber favores dos Espíritos Superiores,
não é esperar mais ajuda da Divindade do que o que é
oferecido aos outros. Mas é ter capacidade para entender
e perceber que nada acontece por acaso, e, assim, ter a
possibilidade de não ser acometido pela revolta, tendo
maior capacidade de aceitação e superação da
infelicidade. É ser capaz de ser feliz onde os outros
poderão só encontrar contradições. Como diz Léon Denis,
na obra mencionada acima, “O prazer e a dor estão muito
menos nas coisas externas do que em nós mesmos; incumbe,
pois, a cada um de nós, regulando suas sensações
disciplinando seus sentimentos, dominar-lhe umas e
outras e limitar-lhes os efeitos”. Esta é uma
aprendizagem que fazemos com o auxílio da dor, que nos
torna mais sensíveis e capazes do autoconhecimento. Com
isso tornamo-nos mais capazes de olhar dentro de nós
mesmos e despreocupamo-nos paulatinamente do que é
puramente material, fútil, supérfluo. O conhecimento é
poder. Da minha parte, sinto que estou em grande
vantagem pelo facto de ter sido abençoada pelo
conhecimento da Doutrina antes que as maiores dores me
batessem à porta.
Segue-se, de tudo isso, que o espírita ame a dor? Que o
Espiritismo faça a apologia do sofrimento? Que busque a
dor como forma de superação? Certamente que não. Nenhum
espírita é masoquista. Todos desejamos, acima de tudo,
ser felizes. Deus criou-nos para a felicidade. A dor é o
resultado do desequilíbrio, do afastamento das Leis
Divinas que gerem a vida física, da Natureza, e morais.
Daí que também a dor pode ser de natureza física ou
moral. O sofrimento é uma chamada de atenção da Lei para
que tentemos reequilibrar-nos e caminhar em direção à
felicidade, que tem de ser construída por nós, através
dos ajustes necessários. Uma das formas mais fortes de
conseguir esse equilíbrio, essa capacidade de aceitação
interior e tornarmo-nos fortes perante os desafios mais
dolorosos da vida é, precisamente, o sintonizar com as
Potências Divinas, que são os Espíritos Superiores que
nos amparam e fortalecem, se nos ligarmos a eles pela
prece, buscando no seu Amor a força de que necessitamos.
E tornarmo-nos mais sensíveis à dor alheia, fortificar a
nossa capacidade de empatia, porque, se é verdade que a
dor, como já referi, é algo íntimo e muito pessoal,
podemos sempre ligar-nos a quem sofre e praticar o
grande ato de caridade que é o consolo e o auxílio moral
ou material. Porque também, e principalmente, perante a
dor, tornamo-nos mais humanos, mais irmãos.
Maria de Lurdes
Duarte reside em Alvarenga, Arouca, Portugal.