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por Marcelo Teixeira

 

O duelo nosso de cada dia


No capítulo 12 de O Evangelho segundo o Espiritismo (“Amai os vossos inimigos”), Allan Kardec e os Espíritos que conduzem a obra tecem oportunas considerações acerca do duelo, prática que acompanha a humanidade desde priscas eras.

Já foi comum homens se desafiarem para duelar das mais variadas formas. No Velho Oeste americano, conforme mostram as produções cinematográficas que retratam a época, dois pistoleiros rivais se colocavam frente a frente na rua principal daquelas pequenas e empoeiradas cidades. Ambos com as mãos coçando para sacar da arma, presa ao coldre, e atirar. De repente, um deles dizia: “Essa cidade é pequena demais para nós dois”. Ato contínuo, ambos pegavam os revólveres e “pow!”, quem fosse mais rápido matava o oponente e saía ileso.

Nos filmes de capa e espada não era diferente. Duelistas brandiam os floretes até que um deles sucumbisse perfurado pelo oponente. E também havia os duelos mais nobres, em que dois fidalgos ficavam de costas um para o outro e de garrucha em punho. O mestre de cerimônias do “evento” contava, então, até dez enquanto ambos se afastavam em direções opostas e em passos cadenciados. Ao final da contagem, ambos se viravam e atiravam. O mais ágil levava a melhor enquanto o outro perdia a vida física.

O tempo foi passando e os duelos, mudando de configuração. Apesar de muitos acharem que eles estão superados, eles estão aí, dando as caras das mais variadas e sutis formas.

Podemos observá-los nos embates coletivos. É o caso, por exemplo, das brigas entre torcidas organizadas de futebol, o que tem resultado em mortes de torcedores, infelizmente. E também nas lamentáveis guerras entre nações, nas brigas entre facções criminosas pela disputa de território e nas lutas de boxe, MMA (sigla em inglês cujo significado é “Mixed Martial Arts” – tradução: Artes Marciais Mistas) e afins, nas quais um ringue serve de arena para dois competidores lutarem até que um leve o adversário a nocaute.

Quero falar, no entanto, dos duelos resultantes das mesquinharias cotidianas. Já presenciei muitos deles.

Silas, amigo de movimento espírita, é especialista na vida e obra da médium Yvonne Pereira. Certa vez, ele foi convidado por um centro espírita de uma grande cidade para fazer um seminário a respeito. O que outro centro espírita da mesma metrópole fez? Convidou outro especialista no legado de D. Yvonne e marcou um seminário para o mesmo dia e horário. Decerto, essa segunda instituição quis medir forças para ver quem atraía mais público. Pois é; guerra de egos também é duelo.

Falando nisso, analisem os fatos a seguir, tão comuns em famílias que começaram a ascender socialmente porque membros do clã foram trabalhar em bancos ou repartições públicas, algo muito comum no Brasil dos anos 70 e 80 do século passado. Nessa época, bancários e funcionários públicos eram tidos como ricos e, muitas das vezes, se sentiam como tais. Cacilda, cujo marido havia sido promovido no banco estadual em que trabalhava, era uma dessas pretensas ricas. Como tal, vivia medindo forças com vários parentes. Se algum deles reformasse o banheiro da casa, ela se sentia diminuída e corria para reformar o próprio banheiro, pois não podia ficar para trás. Quando a filha mais velha ficou noiva de um rapaz cujo pai era gerente do Banco do Brasil (BB), Cacilda fazia questão de dizer quanto o futuro sogro da filha ganhava. Só que Lia, uma parente que também trabalhava na mesma instituição, retrucou: “Cacilda, o pai do seu futuro genro não ganha tanto assim. Eu sei qual é faixa salarial dos gerentes do BB e asseguro que o salário deles não chega a tanto. Cacilda, enfática, protestou: “Não! Mas ele ganha tal quantia vultosa sim!” Trocando em miúdos: o Sr. fulano, por ser o futuro genro da filha, tinha de ter o maior de todos os salários para que Cacilda mantivesse a ilusão de que a primogênita era a mais bem casada de todas. Bem mais que a filha de Lia ou qualquer outra que se atrevesse a arranjar um bom partido para namorar e casar.

O suprassumo de Cacilda no quesito duelo foi quando Ernani – um primo em terceiro grau, vejam vocês – começou a construir uma bela casa. Nossa atormentada duelista ficou tão incomodada que chegou a ir escondida ao local da obra só para ver como a morada iria ficar. E quando Ernani deu uma festinha em família para inaugurar a residência, Cacilda, para não ficar para trás, fez uma das filhas ir à comemoração portando algo que, até então, era a última palavra em tecnologia: um “walkman”. Isso para dizer que, apesar de ainda não ter uma casa tão linda, ela e família também tinham algo novo para mostrar; no caso, um prosaico fone de ouvido.

Isso é duelo, gente! Típica atitude de quem vive competindo com os outros e mora na inquietação por isso. Afinal, quem age assim pensa que todos se comportam da mesma forma.

Quero ainda falar de uma modalidade de duelo que muito desgaste tem causado a todos nós: as “fake news” ou notícias falsas.

Leio no jornal Pragmatismo político que um estudo conduzido pelo laboratório de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Eco – UFRJ) identificou um conhecido político de extrema direita e um “coach” como os maiores propagadores de desinformação no tocante à tragédia climática que assolou o Estado do Rio Grande do Sul no início de maio de 2024. Ambos foram responsáveis por uma onda de notícias falsas envolvendo as doações que estavam sendo feitas, bem como as iniciativas do governo federal para lidar com a tragédia e levar conforto à população atingida. O fato, aliás, rendeu uma declaração indignada do ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta. Disse ele: “É difícil de entender que, em um momento de tamanha fragilidade, pessoas se escondam em suas telas produzindo conteúdos que sabem ser mentirosos para que tenham algum tipo de ganho político ou econômico”.

Algumas dessas falsas informações acusavam a Polícia Rodoviária Federal de impedir que as doações chegassem às vítimas, que o Governo Federal demorou em autorizar o envio da Força Nacional ao RS, que o show que a cantora estadunidense Madonna realizou na cidade do Rio de Janeiro (RJ) sugou os recursos que deveriam ter ido para o estado gaúcho, que as enchentes eram um castigo divino etc.

Voltemos um pouco no tempo. O jornalista Cléberson dos Santos, divulgou, em agosto de 2020, na coluna Tilt do portal de notícias UOL, as “fake news” mais absurdas que circularam pelo mundo, à época assolado pelo pico da pandemia de Covid. Os países que mais divulgaram mentiras foram Brasil, Índia e Estados Unidos. Na Índia, pelo fato de a vaca ser um animal sagrado, propagou-se que a urina desse animal seria eficaz no combate ao coronavírus. Nos EUA, muita gente bebeu água sanitária ou injetou detergente na veia para se imunizar. Já no Brasil, como sabemos, inverdades como a eficácia da cloroquina no tratamento contra a Covid fizeram muita gente adoecer ou morrer, já que tal medicamento se mostrou ineficaz.

Ainda de acordo com a reportagem, a disseminação de notícias falsas em torno da pandemia de Covid foi tão avassaladora que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou o fato como “infodemia”, ou seja, uma epidemia de desinformação que gerou pânico, discórdia, atrasou e atrapalhou a vacinação, fez muita gente ir a óbito e levou 80 de veículos de comunicação de mais de 70 países a se unirem por meio de uma grande rede de verificação de notícias falsas. Iniciativa que, então, desmentiu mais de 7.000 boatos.

No item 13 do já citado capítulo da obra de Allan Kardec, o Espírito Francisco Xavier ressalta que o duelo é fruto da tola vaidade, do estúpido amor próprio e do orgulho insano. No caso do acontecido em Porto Alegre e cidades vizinhas, esse trio prejudicou o socorro a um estado que foi assolado por uma das mais graves enchentes de que se tem notícia no país. Uma tragédia cujos impactos levarão um bom tempo para serem revertidos e que resultarão em grandes remanejamentos populacionais, reconstrução do que puder ser aproveitado e até no desaparecimento de bairros e cidades, que terão de ser reerguidos em outros locais. Um trabalho extenso que irá requerer paciência, caridade e a colaboração de todos. Não é hora, portanto (nem nunca será) de duelar buscando holofotes e semeando contenda e desinformação. Conforme diz Francisco Xavier no mesmo item, o horror ao mal precisa fazer morada no coração dos homens. Enquanto houver quem o adula, esse tipo de duelo moderno tenderá a causar ainda muitos dissabores.

Kardec aprofunda a questão no item 14 do mesmo capítulo, em mensagem assinada pelo Espírito Agostinho. Ressalta ele que o homem que utiliza palavras chocantes para jogar com a vida do próximo “é cem vezes mais culpado do que o miserável que, impelido pela cupidez, algumas vezes pela necessidade, se introduz numa habitação para roubar e matar os que se lhe opõem aos desígnios”. Isso quer dizer que o brucutu sem noção de bem e mal que age impelido pela ambição exacerbada ou por necessidade, apesar do grave delito que comete, é menos culpado que o culto e refinado que recorre ao duelo com método, frieza, cálculo, estratégia... É o que vemos no cenário atual, em que empresários, políticos, influenciadores digitais e afins ao redor do mundo se valem de cargos, redes de contatos, aparato tecnológico, dinheiro e poder para atrapalhar a marcha do progresso. Ao duelarem com a verdade utilizando falsas notícias, atingem principalmente aos mais fracos, ou seja, os que têm menos acesso à informação de qualidade e são presas fáceis para esse tipo de manobra.

Prossigo com Agostinho, só que agora no item 12, em que ele afirma que o duelo, longe de ser uma demonstração de bravura, é na verdade, uma prova de covardia moral pelo fato de os duelistas não suportarem ofensas, o que pode ser entendido como não saber perder, sentir despeito ante as conquistas alheias, não aceitar a palavra da ciência, não suportar ter menos lucro devido ao fechamento temporário de empresas etc. Por isso, apelam para as ultrajantes “fake news”, mesmo em tempos de pandemia ou tragédia ambiental.

Em O Livro dos Espíritos, no capítulo referente à Lei do Progresso, Allan Kardec indaga (questão 781) se o homem tem o poder de paralisar a marcha do progresso. Resposta: “Não, mas tem, às vezes, o de embaraçá-la.”

Difundir notícias falsas é, a meu ver, uma forma de querer duelar com a evolução humana. Nos casos em análise, leia-se atrapalhar o trabalho da ciência mundial, o socorro a pessoas flageladas e também a circulação de informações verdadeiras, que podem salvar vidas, aliviar dores e aquietar corações. Quem o faz, como bem ressalta Kardec, pode até perturbar o progresso, mas não conseguirá impedi-lo. Afinal, como esclarece o adendo à questão 781, fabricantes e propagadores de mentiras serão, cedo ou tarde, levados de roldão pela torrente de mudanças positivas com as quais insistem em duelar.

 

Bibliografia:

1. KARDEC, Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo, 2ª edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

2. _____________ – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.

3. PRAGMATISMO POLÍTICO – Pablo Marçal e Eduardo Bolsonaro são os campeões de “fake news” sobre tragédia do RS, revela estudo da UFRJ. Disponível em LINK-1

4. SANTOS, Cléberson dos – Conheça as “fake news” mais absurdas já checadas sobre o coronavírus no mundo. Disponível em LINK-2      


 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita