O duelo nosso de cada dia
No capítulo 12 de O Evangelho segundo o Espiritismo (“Amai
os vossos inimigos”), Allan Kardec e os Espíritos que
conduzem a obra tecem oportunas considerações acerca do
duelo, prática que acompanha a humanidade desde priscas
eras.
Já foi comum homens se desafiarem para duelar das mais
variadas formas. No Velho Oeste americano, conforme
mostram as produções cinematográficas que retratam a
época, dois pistoleiros rivais se colocavam frente a
frente na rua principal daquelas pequenas e empoeiradas
cidades. Ambos com as mãos coçando para sacar da arma,
presa ao coldre, e atirar. De repente, um deles dizia:
“Essa cidade é pequena demais para nós dois”. Ato
contínuo, ambos pegavam os revólveres e “pow!”, quem
fosse mais rápido matava o oponente e saía ileso.
Nos filmes de capa e espada não era diferente. Duelistas
brandiam os floretes até que um deles sucumbisse
perfurado pelo oponente. E também havia os duelos mais
nobres, em que dois fidalgos ficavam de costas um para o
outro e de garrucha em punho. O mestre de cerimônias do
“evento” contava, então, até dez enquanto ambos se
afastavam em direções opostas e em passos cadenciados.
Ao final da contagem, ambos se viravam e atiravam. O
mais ágil levava a melhor enquanto o outro perdia a vida
física.
O tempo foi passando e os duelos, mudando de
configuração. Apesar de muitos acharem que eles estão
superados, eles estão aí, dando as caras das mais
variadas e sutis formas.
Podemos observá-los nos embates coletivos. É o caso, por
exemplo, das brigas entre torcidas organizadas de
futebol, o que tem resultado em mortes de torcedores,
infelizmente. E também nas lamentáveis guerras entre
nações, nas brigas entre facções criminosas pela disputa
de território e nas lutas de boxe, MMA (sigla em inglês
cujo significado é “Mixed Martial Arts” – tradução:
Artes Marciais Mistas) e afins, nas quais um ringue
serve de arena para dois competidores lutarem até que um
leve o adversário a nocaute.
Quero falar, no entanto, dos duelos resultantes das
mesquinharias cotidianas. Já presenciei muitos deles.
Silas, amigo de movimento espírita, é especialista na
vida e obra da médium Yvonne Pereira. Certa vez, ele foi
convidado por um centro espírita de uma grande cidade
para fazer um seminário a respeito. O que outro centro
espírita da mesma metrópole fez? Convidou outro
especialista no legado de D. Yvonne e marcou um
seminário para o mesmo dia e horário. Decerto, essa
segunda instituição quis medir forças para ver quem
atraía mais público. Pois é; guerra de egos também é
duelo.
Falando nisso, analisem os fatos a seguir, tão comuns em
famílias que começaram a ascender socialmente porque
membros do clã foram trabalhar em bancos ou repartições
públicas, algo muito comum no Brasil dos anos 70 e 80 do
século passado. Nessa época, bancários e funcionários
públicos eram tidos como ricos e, muitas das vezes, se
sentiam como tais. Cacilda, cujo marido havia sido
promovido no banco estadual em que trabalhava, era uma
dessas pretensas ricas. Como tal, vivia medindo forças
com vários parentes. Se algum deles reformasse o
banheiro da casa, ela se sentia diminuída e corria para
reformar o próprio banheiro, pois não podia ficar para
trás. Quando a filha mais velha ficou noiva de um rapaz
cujo pai era gerente do Banco do Brasil (BB), Cacilda
fazia questão de dizer quanto o futuro sogro da filha
ganhava. Só que Lia, uma parente que também trabalhava
na mesma instituição, retrucou: “Cacilda, o pai do seu
futuro genro não ganha tanto assim. Eu sei qual é faixa
salarial dos gerentes do BB e asseguro que o salário
deles não chega a tanto. Cacilda, enfática, protestou:
“Não! Mas ele ganha tal quantia vultosa sim!” Trocando
em miúdos: o Sr. fulano, por ser o futuro genro da
filha, tinha de ter o maior de todos os salários para
que Cacilda mantivesse a ilusão de que a primogênita era
a mais bem casada de todas. Bem mais que a filha de Lia
ou qualquer outra que se atrevesse a arranjar um bom
partido para namorar e casar.
O suprassumo de Cacilda no quesito duelo foi quando
Ernani – um primo em terceiro grau, vejam vocês –
começou a construir uma bela casa. Nossa atormentada
duelista ficou tão incomodada que chegou a ir escondida
ao local da obra só para ver como a morada iria ficar. E
quando Ernani deu uma festinha em família para inaugurar
a residência, Cacilda, para não ficar para trás, fez uma
das filhas ir à comemoração portando algo que, até
então, era a última palavra em tecnologia: um “walkman”.
Isso para dizer que, apesar de ainda não ter uma casa
tão linda, ela e família também tinham algo novo para
mostrar; no caso, um prosaico fone de ouvido.
Isso é duelo, gente! Típica atitude de quem vive
competindo com os outros e mora na inquietação por isso.
Afinal, quem age assim pensa que todos se comportam da
mesma forma.
Quero ainda falar de uma modalidade de duelo que muito
desgaste tem causado a todos nós: as “fake news” ou
notícias falsas.
Leio no jornal Pragmatismo
político que um estudo conduzido pelo laboratório de
pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (Eco – UFRJ) identificou um
conhecido político de extrema direita e um “coach” como
os maiores propagadores de desinformação no tocante à
tragédia climática que assolou o Estado do Rio Grande do
Sul no início de maio de 2024. Ambos foram responsáveis
por uma onda de notícias falsas envolvendo as doações
que estavam sendo feitas, bem como as iniciativas do
governo federal para lidar com a tragédia e levar
conforto à população atingida. O fato, aliás, rendeu uma
declaração indignada do ministro da Secretaria de
Comunicação Social da Presidência da República, Paulo
Pimenta. Disse ele: “É
difícil de entender que, em um momento de tamanha
fragilidade, pessoas se escondam em suas telas
produzindo conteúdos que sabem ser mentirosos para que
tenham algum tipo de ganho político ou econômico”.
Algumas dessas falsas informações acusavam a Polícia
Rodoviária Federal de impedir que as doações chegassem
às vítimas, que o Governo Federal demorou em autorizar o
envio da Força Nacional ao RS, que o show que a cantora
estadunidense Madonna realizou na cidade do Rio de
Janeiro (RJ) sugou os recursos que deveriam ter ido para
o estado gaúcho, que as enchentes eram um castigo divino
etc.
Voltemos um pouco no tempo. O jornalista Cléberson dos
Santos, divulgou, em agosto de 2020, na coluna Tilt do
portal de notícias UOL, as “fake news” mais absurdas que
circularam pelo mundo, à época assolado pelo pico da
pandemia de Covid. Os países que mais divulgaram
mentiras foram Brasil, Índia e Estados Unidos. Na Índia,
pelo fato de a vaca ser um animal sagrado, propagou-se
que a urina desse animal seria eficaz no combate ao
coronavírus. Nos EUA, muita gente bebeu água sanitária
ou injetou detergente na veia para se imunizar. Já no
Brasil, como sabemos, inverdades como a eficácia da
cloroquina no tratamento contra a Covid fizeram muita
gente adoecer ou morrer, já que tal medicamento se
mostrou ineficaz.
Ainda de acordo com a reportagem, a disseminação de
notícias falsas em torno da pandemia de Covid foi tão
avassaladora que a Organização Mundial de Saúde (OMS)
classificou o fato como “infodemia”, ou seja, uma
epidemia de desinformação que gerou pânico, discórdia,
atrasou e atrapalhou a vacinação, fez muita gente ir a
óbito e levou 80 de veículos de comunicação de mais de
70 países a se unirem por meio de uma grande rede de
verificação de notícias falsas. Iniciativa que, então,
desmentiu mais de 7.000 boatos.
No item 13 do já citado capítulo da obra de Allan
Kardec, o Espírito Francisco Xavier ressalta que o duelo
é fruto da tola vaidade, do estúpido amor próprio e do
orgulho insano. No caso do acontecido em Porto Alegre e
cidades vizinhas, esse trio prejudicou o socorro a um
estado que foi assolado por uma das mais graves
enchentes de que se tem notícia no país. Uma tragédia
cujos impactos levarão um bom tempo para serem
revertidos e que resultarão em grandes remanejamentos
populacionais, reconstrução do que puder ser aproveitado
e até no desaparecimento de bairros e cidades, que terão
de ser reerguidos em outros locais. Um trabalho extenso
que irá requerer paciência, caridade e a colaboração de
todos. Não é hora, portanto (nem nunca será) de duelar
buscando holofotes e semeando contenda e desinformação.
Conforme diz Francisco Xavier no mesmo item, o horror ao
mal precisa fazer morada no coração dos homens. Enquanto
houver quem o adula, esse tipo de duelo moderno tenderá
a causar ainda muitos dissabores.
Kardec aprofunda a questão no item 14 do mesmo capítulo,
em mensagem assinada pelo Espírito Agostinho. Ressalta
ele que o homem que utiliza palavras chocantes para
jogar com a vida do próximo “é cem vezes mais culpado do
que o miserável que, impelido pela cupidez, algumas
vezes pela necessidade, se introduz numa habitação para
roubar e matar os que se lhe opõem aos desígnios”. Isso
quer dizer que o brucutu sem noção de bem e mal que age
impelido pela ambição exacerbada ou por necessidade,
apesar do grave delito que comete, é menos culpado que o
culto e refinado que recorre ao duelo com método,
frieza, cálculo, estratégia... É o que vemos no cenário
atual, em que empresários, políticos, influenciadores
digitais e afins ao redor do mundo se valem de cargos,
redes de contatos, aparato tecnológico, dinheiro e poder
para atrapalhar a marcha do progresso. Ao duelarem com a
verdade utilizando falsas notícias, atingem
principalmente aos mais fracos, ou seja, os que têm
menos acesso à informação de qualidade e são presas
fáceis para esse tipo de manobra.
Prossigo com Agostinho, só que agora no item 12, em que
ele afirma que o duelo, longe de ser uma demonstração de
bravura, é na verdade, uma prova de covardia moral pelo
fato de os duelistas não suportarem ofensas, o que pode
ser entendido como não saber perder, sentir despeito
ante as conquistas alheias, não aceitar a palavra da
ciência, não suportar ter menos lucro devido ao
fechamento temporário de empresas etc. Por isso, apelam
para as ultrajantes “fake news”, mesmo em tempos de
pandemia ou tragédia ambiental.
Em O Livro dos Espíritos, no capítulo referente à
Lei do Progresso, Allan Kardec indaga (questão 781) se o
homem tem o poder de paralisar a marcha do progresso.
Resposta: “Não,
mas tem, às vezes, o de embaraçá-la.”
Difundir notícias falsas é, a meu ver, uma forma de
querer duelar com a evolução humana. Nos casos em
análise, leia-se atrapalhar o trabalho da ciência
mundial, o socorro a pessoas flageladas e também a
circulação de informações verdadeiras, que podem salvar
vidas, aliviar dores e aquietar corações. Quem o faz,
como bem ressalta Kardec, pode até perturbar o
progresso, mas não conseguirá impedi-lo. Afinal, como
esclarece o adendo à questão 781, fabricantes e
propagadores de mentiras serão, cedo ou tarde, levados
de roldão pela torrente de mudanças positivas com as
quais insistem em duelar.
Bibliografia:
1. KARDEC,
Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo, 2ª
edição, 2018, Federação Espírita Brasileira (FEB),
Brasília, DF.
2. _____________ – O Livro dos
Espíritos, 60ª edição, 1984, Federação Espírita
Brasileira (FEB), Brasília, DF.
3. PRAGMATISMO
POLÍTICO – Pablo Marçal e Eduardo Bolsonaro são os
campeões de “fake news” sobre tragédia do RS, revela
estudo da UFRJ. Disponível em LINK-1
4. SANTOS,
Cléberson dos – Conheça as “fake news” mais absurdas já
checadas sobre o coronavírus no mundo. Disponível em LINK-2
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