Adágios intrigantes
A chamada sabedoria
popular tem
acertos e desacertos quando cria um ditado, uma
máxima, um pensamento e este passa a ser
repetido com se fosse uma verdadeira lei de
Deus, ou uma verdade inconteste. A partir do
momento em que a frase é aceita pelo povo,
ninguém mais ajuíza se ela seria boa, coerente,
útil, verdadeira ou não. Basta repeti-la,
lembrando-a, sempre que a ocasião for oportuna.
Aliás, em um momento em que se aceitam tantas
inverdades - fake News -, como se fossem fatos,
pedir para refletir sobre estes conceitos,
poderia ser visto como um imenso contrassenso e
perda de tempo.
Se alguém questiona a propriedade do adágio, é
visto como inconveniente ou quem sabe estúpido,
por não compreender a tão propalada sabedoria do
dito popular. Afinal a
voz do povo é a voz de Deus,
certamente um significativo exemplo de um
princípio estranho.
São incontáveis e podemos de imediato lembrar e
comentar alguns:
1- Quando
morremos passamos desta para melhor
As muitas existências terrenas representam
oportunidades dadas por Deus para pormos em
prática as nossas incipientes virtudes,
resgatando, ao mesmo tempo, possíveis faltas
cometidas no passado e durante essa mesma
jornada. Um mecanismo sábio e justo.
Sendo assim, quando desejamos ardentemente
morrer para passar a viver no outro lado,
sugerimos que o método de evolução divino
estaria errado, pois apenas a vida no plano
etéreo nos permitiria alcançar a felicidade tão
desejada, por aqui jamais encontrada.
Indica também que a existência em mundos
materiais nada mais oferece do que um
enfrentamento de dores e tristezas e, no lado
de lá,
finalmente, encontraríamos tudo que nos agrada e
que nos foi impedido de desfrutar durante a
existência na matéria.
Ledo engano!
A vida no plano etéreo será sempre o reflexo do
que vivemos encarnados, desta forma, se nada
fizemos para melhorar a nossa condição moral e
ética, não aproveitamos bem as incontáveis
oportunidades de evolução oferecidas pela
magnanimidade do Criador, semeamos a discórdia,
aqui e ali, buscamos os prazeres e sensações, no
lugar das sadias emoções, ao nos transferirmos
para a vida verdadeira, colheremos o que
semeamos, não encontrando nada além do que por
aqui experimentamos.
Muitos, em função das condutas, nem poderão
encontrar os afeiçoados já desencarnados, desejo
comum de muitos familiares encarnados. Para
esses, transgressores confessos e contumazes dos
princípios divinos, caberia outro ditado: quando
se morre passa-se desta para pior!
2- Quem
quiser gostar de mim tem que ser assim
Este preceito é um dos que mais descortinam a
personalidade egoísta e a mente distorcida da
pessoa. Demonstra o desprezo pela opinião do
próximo, quando afirma que o indivíduo está
satisfeito com a sua intolerância, feliz por ser
talvez rabugento, tranquilo com as suas ideias
retrógradas, em absoluta paz com os seus
preconceitos...
O indivíduo se basta e os outros, se desejarem,
que façam ou vivam como ele, pois é o dono
absoluto da verdade. Não precisa de ninguém.
Orgulho e vaidade, aversão às ideias e propostas
alheias, parece ser a tônica dos que usam este
ditado para justificar que estão bem, consigo
mesmos, e nada precisam dos outros e do mundo.
3- O
futuro a Deus pertence
Este é outro ditado usado com frequência,
transferindo, incondicionalmente, a Deus, toda a
responsabilidade sobre o que nos ocorre, de bom
ou de ruim.
Para os adeptos deste esdrúxulo princípio, tudo
está escrito e nada mais resta a fazer a não ser
assistir o desfecho final de nossas vidas, da
forma como Deus, com antecedência, assim
planejou.
Se assim for, poderíamos perguntar por qual
razão existimos, se tudo já está definido? Qual
seria a expectativa de Deus em relação à nossa
criação!?
Todos os esforços realizados para construir uma
melhor condição de vida seriam infrutíferos,
pois os resultados já estariam deliberados e
mais, todas as vezes em que nos empenhássemos em
uma empreitada para melhorar aspectos de nossa
atual existência e colhêssemos um insucesso na
tentativa, então só poderíamos concluir que
Deus arquitetou este
revés.
4- A
voz do povo é a voz de Deus
Talvez o mais eloquente exemplo de que a voz do
povo nem sempre é a voz de Deus, ocorreu há dois
milênios quando por decisão do povo, Barrabás
foi libertado da prisão e da pena de
crucificação e, em seu lugar, foi colocado
Jesus.
A voz da população, eventualmente, pode estar
correta. Estando alinhada com as diretrizes do fazer
ao próximo o que gostaríamos que nos fosse feito,
já é um bom sinal, contudo, como muitas vezes a
voz do povo desconsidera totalmente este ensino,
se equivoca com frequência.
5- Estou
melhor do que mereço
Quando alguém pergunta se o amigo está bem, é
comum o uso desta intrigante máxima como
resposta, afirmando o interlocutor, de pronto, estar
melhor do que merece.
Ora, se a pessoa não merece as bênções ou
dádivas que supõe estar recebendo, por qual
razão as receberia? Seria Deus injusto com os
outros que não estão tão bem quanto poderiam
supor merecer? Teria a Divindade privilegiado
alguns? Como posso afirmar que estou recebendo
mais do que realmente valho!?
São questões como essas que, de forma clara,
apontam para a impropriedade deste pensamento,
pois ele não se coaduna com a justiça divina.
Se a pessoa entende que está tudo bem na sua
particular vida, que está experimentando
momentos de alegria, satisfação, realização,
tranquilidade, entre outros, todas estas dádivas surgem
como resultado direto das condutas e escolhas
realizadas pelo próprio indivíduo, nesta, bem
como nas existências anteriores e não há nada a
estranhar, tampouco a alardear.
O estado de felicidade e harmonia que
acreditamos desfrutar, representa a lei
de causa e efeito atuando,
de acordo com o objetivo segundo o qual foi
criada por Deus.
6- Não
há nada demais
Esta proposta apresenta duplo sentido. Um deles,
o inadequado, está muito bem exemplificado em
texto de Thereza de Brito na extraordinária
obra Vereda
Familiar,
quando a autora espiritual comenta sobre os
festejos de Momo. Após apresentar as razões dos
perigos e inconvenientes destas festas na forma
como se apresentam nos dias de hoje, ao final,
faz o seguinte comentário:
Se alguém, em
lhes percebendo a atitude perguntar: “o que é
que há demais no carnaval?” Não se preocupem,
nem se agastem, em responder. Saibam, contudo,
que “demais” nada há no carnaval, só há “de
menos”, e sigam adiante [...]1
É evidente existir situações em que o uso desta
expressão apresenta o lado positivo, se
justificando o seu uso. Contudo, o sentido
destacado anteriormente é o que possui primazia
no cotidiano, ou seja: não
há nada demais oferecer
bebidas alcoólicas aos filhos, deixar que eles
experimentem o que a vida oferece sem
preocupação nenhuma, pois eles precisam conhecer
tudo, para no futuro, escolher o que é bom ou
não..., e assim em diante.
O não
há nada demais,
em muitas situações, esconde a leniência dos
pais em bem educar seus filhos, pois educar dá
trabalho!
7- Ladrão
que rouba ladrão tem cem anos de perdão
Certamente, uma das mais lamentáveis máximas.
Defende a ideia de que caso alguém cometa um
desvio – moral ou ético -, seja da lei humana,
ou da lei divina, contra outro que já fez o
mesmo, o autor estaria plenamente justificado e
perdoado, seria uma espécie de compensação.
Representa, seguramente, uma tentativa infeliz
de se justificar perante a sociedade ou mesmo
perante a Deus.
Uma infração, continua sendo uma infração,
independentemente se todos fazem o mesmo ou não.
Não há atenuantes em função do fato de que
outros fazem ou já fizeram o que agora está
sendo feito.
É curioso ao sugerir um perdão de cem anos, pois
acredita-se que o infrator não viverá tanto para
perder o perdão concedido por conta do tempo
passado. Dentro dessa ótica, é oportuno saber
que mesmo que a sociedade civil não puna o
transgressor ainda em vida, ele jamais escapará
das leis de Deus. Mesmo após a morte deverá
ressarcir o que foi lesado, de uma forma ou de
outra.
A propósito, só existe um caminho para cobrir a
multidão dos pecados: a prática irrestrita e
continuada da lei do amor.
8- Deus
escreve certo por linhas tortas
É razoável que se defenda o entendimento de que
Deus escreve por linhas tortas!?
As linhas pelas quais o Criador estabelece seus
desígnios sempre foram perfeitas. Ele,
invariavelmente, escreve certo, contudo, na
nossa óptica materialista e imediatista,
enxergamos as dificuldades, problemas,
contrariedades, aparentes reveses, do nosso
cotidiano, como acontecimentos prejudiciais e
quem sabe injustos à nossa jornada evolutiva.
Entretanto, em qualquer situação, as linhas da
vida são escritas de acordo com a lei de causa
e efeito.
Não há dúvidas de que, de algum modo, tudo dará
certo ao longo do caminho, contudo, este
desfecho que julgamos feliz pode estar reservado
para outra existência, mudando o cenário
sugerido pela máxima que assevera que com
paciência e trabalho pode-se sempre esperar um
final feliz, apesar dos contratempos, ainda
nesta jornada carnal, o que não é verdade.
9- Errar
é humano
Observa-se, também plenamente difundida na
sociedade, a frequente utilização da sentença: Errar
é humano,
diante dos variados insucessos e desvios
enfrentados e praticados no cotidiano.
Embora haja erros comuns e até esperados, por
exemplo, na aprendizagem e no desempenho de um
ofício, esse conceito é frequentemente empregado
quando se cometem deslizes morais. Nesse
sentido, o seu uso busca, em muitos casos,
justificar a fraude, o delito, o crime, o
conluio, a corrupção, não importando o tipo de
conduta indecorosa, em suma, os diversos atos
maldosos, seja quando se consideram os estatutos
e leis sociais ou mesmo os ordenamentos divinos.
É considerada uma boa válvula de escape para não
se incomodar demais com as próprias falhas,
evitando, dentro do possível, a formação do
temido sentimento de culpa, estado consciencial
martirizante e provocador de graves mazelas ao
infrator.
Contudo, se errar é humano e, quem nos fez
passar pela fase humana de evolução foi Deus,
então eu não tenho nenhuma responsabilidade
pelas minhas faltas, afinal, o erro é esperado e
inevitável.
Tudo indica que não pode ser assim.
Nós ainda somos humanos porque optamos pelo erro
– por meio do uso de nosso livre-arbítrio -,
desde a nossa etapa caracterizada pela
simplicidade e ignorância, e, desde então,
continuamos a errar, senão já seríamos anjos ou
em vias de nos tornamos Espíritos puros, sendo
assim, o conceito é ligeiramente diferente.
E foi o próprio Mestre lionês quem assim
registrou:
Por que é que alguns Espíritos seguiram o
caminho do bem e outros o do mal?
“Não têm eles o
livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus;
criou-os simples e ignorantes, isto é, com igual
aptidão para o bem e para o mal. Os que são
maus, assim se tornaram por sua vontade.”2
Uma vez que há Espíritos que, desde o princípio,
seguem o caminho do bem absoluto e outros o do
mal absoluto, haverá, talvez, gradações entre
esses dois extremos?
“Sim, certamente,
e constituem a grande maioria.”3
10- Quem
com ferro fere, com ferro será ferido
Apesar de Jesus ter dito a Pedro: embainha
tua espada, pois quem fere com a espada será
ferido,
ensino original e equivalente à máxima em
análise, Ele mesmo, por meio de Seus muitos
ensinos e exemplos de vida, informou que
poderíamos escapar da aplicação da pena,
equivalente à infração cometida – lei
de talião -,
através do uso sistemático da lei de amor, única
com o poder de anular os efeitos da multidão de
pecados.
Sendo assim, não é verdade que, invariavelmente,
teremos que ser feridos com ferro, quando com
ferro houvermos ferido o próximo.
A propósito, a lei
de talião,
permanece, mesmo nos dias de hoje, contudo, quem
aplica esta medida é o próprio Legislador
Divino:
Disse Jesus: Quem matou com a espada morrerá
pela espada. Estas palavras não consagram a pena
de talião e, assim, a morte imposta ao assassino
não constitui a aplicação dessa pena?
“Cuidado! Estais
equivocados quanto a estas palavras, como sobre
muitas outras. A pena de talião é a Justiça de
Deus; é Ele quem a aplica. [...]”4
Referências:
1 TEIXEIRA,
Raul. Vereda
Familiar.
Pelo Espírito Thereza de Brito. ed. 2. Rio de
Janeiro/Niterói: FRÁTER, 1991. As
folias de Momo.
cap.14.
2 KARDEC,
Allan. O
Livro dos Espíritos.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed.12. imp.
Brasília, DF: FEB, 2022. q. 121.
3 KARDEC,
Allan. O
Livro dos Espíritos.
Trad. Evandro Noleto de Bezerra. 4. ed.12. imp.
Brasília, DF: FEB, 2022. q. 124.
4 KARDEC,
Allan. O
Livro dos Espíritos.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed.12. imp.
Brasília, DF: FEB, 2022. q. 764.