Rio Grande do Sul: não é resgate, é descaso!
Já
escrevi algumas vezes sobre os efeitos danosos que a
ganância humana tem causado ao meio ambiente. Na
primeira vez, no segundo livro de minha autoria – “O
espiritismo é pop” – toco no assunto em dois
artigos: em ‘Aflições ecológicas de ontem e hoje’, falo
sobre as cheias que afetaram o Espírito Santo em 2013
devido às fortes chuvas que caíram e encontraram rios
assoreados e ocupação desordenada do solo. Já em “Leis
morais e planejamento urbano”, comento sobre a
descompostura que o Brasil tomou da Organização das
Nações Unidas (ONU) em 2011 por não ter se precavido
para evitar a tragédia que se abateu sobre a Região
Serrana do RJ em janeiro daquele ano.
No
terceiro artigo – “Brumadinho – resgate de vidas
passadas? Devagar com o andor!” – questiono o hábito que
o espírita brasileiro tem de achar que toda tragédia que
acontece tem a ver com resgate de débitos de vidas
pretéritas. Aliás, já havia feito o mesmo nos dois
primeiros artigos, mas aprofundei a questão no terceiro.
Por
fim, no quarto – ‘Rolam as cifras, jorram as águas’ –
critico uma canção espírita edulcorada que enaltece um
Brasil onírico em que não há “terremotos, vulcões,
furacões” ao mesmo tempo em que falo sobre a tromba
d´água que, em março de 2020, vitimou cidades da Baixada
Santista.
Resolvi voltar ao assunto devido ao grave problema que o
Estado do Rio Grande do Sul (RS) enfrentou em maio de
2024. Uma cheia histórica foi alagando várias cidades do
Vale do Taquari, o que resultou no transbordamento tanto
do Rio Guaíba, que margeia a capital, Porto Alegre, como
a Lagoa dos Patos, o que afetou outras cidades. O
estrago foi grande. Cerca de 150 pessoas mortas e outras
tantas desaparecidas; rodoviária e aeroporto submersos;
residências e estabelecimentos comerciais também debaixo
d´água; lama e entulho por todos os lados; gente
desabrigada; rodovias interditadas; aulas suspensas;
doenças como leptospirose e dengue eclodindo... E
prejuízos; incontáveis prejuízos.
Esse resumo se faz importante porque um expositor
espírita declarou que toda essa tragédia ambiental faz
parte do processo de transição do planeta para o patamar
evolutivo conhecido como mundo de regeneração e que quem
padeceu na ocasião tinha de passar por tal experiência a
fim de resgatar dívidas morais de vidas pretéritas e
coisa e tal.
Não
para por aí. Recebi de uma amiga um vídeo de outro
conhecido tribuno espírita do qual não sou fã. Como ela
achou pertinente o que ele diz, achou por bem me enviar.
Nesse vídeo, perguntam ao expositor se o ocorrido em
solo gaúcho seria uma espécie de punição/carma ou se
deveríamos buscar os culpados. O entrevistado fala sobre
a necessidade de o Brasil voltar a ser solidário, chama
atenção para o fato de não podermos nos pautar por ódio
e preconceito (achei bom), salienta que o povo do RS é
forte, que o estado se erguerá com a ajuda de todo o
país e ressaltou a missão do Brasil como – segundo é
comum no movimento espírita federativo – coração do
mundo. Não respondeu, no entanto, à pergunta do
entrevistador. Preferiu tergiversar.
Respondi à minha amiga que a fala desse expositor era
mais um exemplo de discurso “isentão”. Sempre falam
sobre caridade, solidariedade, missão do Brasil...
Faltou tocar no X da questão, que é a
(ir)responsabilidade das autoridades locais ante o
acontecido. Ela, então, observou que, dentro da casa
espírita, segundo recomendações de Allan Kardec, não
devemos tratar de temas “irritantes” (as aspas são
dela).
Esse alerta consta da edição de 1862 da “Revista
Espírita”. Faz parte de uma mensagem que Allan Kardec
enviou aos espíritas da cidade de Lyon. Nela, o
organizador da doutrina espírita atenta para a
necessidade de os seguidores da doutrina perseverarem na
divulgação e vivência do espiritismo, evitarem contendas
com terceiros e não tocarem em assuntos que fujam à
alçada espírita. O parágrafo que transcrevo a seguir
explicita:
“Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas
reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à
política e a questões irritantes. A tal respeito, as
discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém
terá nada a objetar à moral, quando esta for boa.”
É corriqueiro os integrantes do movimento espírita
federativo recorrerem ao dito acima para justificarem o
fato de não falarem sobre política no meio espírita.
Necessitamos, contudo, contextualizar a fala de Kardec.
Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, era quem
governava a França à época do surgimento da doutrina
espírita. Como ele subiu ao poder por ter dado um golpe
após o parlamento tê-lo impedido de concorrer a um
segundo mandato, a situação ficou tensa. Mesmo porque, o
golpe contou com o suporte da burguesia, das forças
armadas e do clero. Além disso, Napoleão III, para obter
o apoio do povo, fundou organizações trabalhistas,
construiu ferrovias e moradias populares, entre outras
melhorias. Só que ele também manteve os opositores
políticos sob rédea curta e cerceou a imprensa. Daí a
recomendação de Kardec para que assuntos tidos como
irritantes como a política da época fossem evitados. Ele
não podia deixar que o nascente movimento espírita
sofresse represálias, sob o risco de ser abafado ou até
mesmo extinto.
Em 1870, um ano depois do falecimento de Kardec,
Napoleão III foi derrotado e posteriormente exilado. O
país pôde, então, respirar ares mais leves. Não tomemos,
portanto, ao pé da letra uma recomendação que dizia
respeito à França de então. Hoje em dia, os tempos são
outros. Tempos de estado democrático de direito cerrando
fileiras contra o radicalismo autoritário da extrema
direita. Tempos também de informação livre e tomada de
posição, a fim de que um mundo mais justo e
ecologicamente sustentável seja construído e mantido por
todos nós.
Falemos, então, sobre o que deve ser falado e sem receio
de sermos irritantes. Mesmo porque, no mesmo parágrafo
transcrito, Kardec assevera que não devemos ter objeções
quanto à moral, caso esta seja boa. Venhamos e
convenhamos, a moral que diz respeito à preservação de
vidas humanas e de animais, ao respeito à natureza e à
necessidade de lutarmos por uma política transparente e
honesta e por justiça social é muito boa.
Eduardo Leite, governador do RS desde 2019, segundo
informaram vários veículos de comunicação de âmbito
nacional, é acusado pela imprensa gaúcha, ambientalistas
e entidades de preservação da natureza de ter mudado
quase 500 normas do código ambiental do estado. Segundo
reportagem publicada pela revista “Veja”, esse novo
código, quando entrou em vigor, em 2020, “estava
alinhado ao enfraquecimento da proteção ambiental
pregada pelo então presidente Jair Bolsonaro e seu
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, assim como a
bancada ruralista do Congresso Nacional”.
A
fim de favorecer o ambiente de negócios, Eduardo Leite e
equipe alegaram que a legislação antiga atrapalhava o
progresso da economia gaúcha. Para tanto, foi criada a
Licença Ambiental por Compromisso (LAC), que é concedida
pelo órgão estadual competente em apenas 48 horas e sem
que haja qualquer análise prévia do projeto. A isso, o
governador se referiu eufemisticamente como
“modernização do Código Ambiental”. O problema é que
essa “modernização” ratificada pela LAC tem como ponto
central o autolicenciamento. Isso significa que a
autorização para desmatar, aterrar e similares é
concedida em apenas 48 horas pelo governo estadual sem
qualquer análise prévia. O empresário precisa somente
preencher um formulário, no qual assegura que está
seguindo as exigências ambientais cabíveis. O governo,
então, libera sem qualquer tipo de verificação.
Além disso, foram revogados 13 itens do Código Florestal
Gaúcho, justamente os que dizem respeito ao sistema de
proteção ao pampa, bioma característico do RS. Foram
afetados os pontos que regulamentam o manejo de
florestas nativas e os que proibiam o corte de árvores
típicas como figueiras, inhanduvás, corticeiras e
algarrobos. Conforme noticiado pela “Veja”, o Rio Grande
do Sul, até a chegada de Eduardo Leite ao governo, era
considerado pioneiro em matéria de preservação
ambiental. O referido Código Florestal, é bom frisar,
havia sido discutido criteriosamente por nove anos antes
de ser aprovado e implantado, fato que se deu em 2000.
O
desmantelamento ambiental infelizmente prosseguiu, pois,
em 2021, Leite flexibilizou a elogiada e pioneira lei
sobre o uso de agrotóxicos. Tida como referência no país
e criada nos anos 1980, ela estipulava que nenhum
defensivo agrícola poderia ser utilizado em solo gaúcho
se não fosse permitido no país de origem. Caiu por
terra. Por fim, em 2024, o governador tornou flexível a
lei que trata da construção de barragens e reservatórios
de água dentro das áreas de proteção. Tudo isso resultou
na formação das enchentes que inundaram o estado.
Por
isso, antes de falarmos em resgates de débitos passados,
reflitamos: toda essa série de descasos e
irresponsabilidades ocorreu desde 2020 para que, quatro
anos depois, cerca de 150 pessoas desencarnassem e
outras tantas perdessem família e bens materiais? Pouco
provável. O que houve foi simplesmente falta de amor ao
próximo e desrespeito à natureza. Tudo em nome do lucro
a qualquer preço. Tanto é assim que o Ministério Público
(MP), junto ao Tribunal de Contas da União (TCU),
resolveu fazer uma minuciosa análise nas mudanças
legislativas e ambientais que Leite promoveu e que muito
provavelmente facilitaram o acontecimento da catástrofe,
conforme reportagem da revista “Carta-Capital”. Em suma:
Eduardo Leite terá de se explicar.
Em
“O Livro dos Espíritos”, no capítulo destinado à
Lei de Igualdade, os benfeitores espirituais deixam
claro na questão 807: os que abusam da superioridade de
suas posições sociais para, em próprio proveito, oprimir
os fracos (no caso, a população e o meio ambiente)
serão, oportunamente, reprimidos. “Renascerão numa
existência em que terão de sofrer tudo o que tiverem
feito sofrer os outros”. Como e quando se dará, foge à
nossa estreita visão. A nós, em situações como a
ocorrida em terras gaúchas, cabe auxiliar e amparar os
flagelados, exigir da Justiça apuração rigorosa e
punição dos culpados, pressionar os políticos para que
tomem tenência e governem em prol do bem coletivo e nos
mobilizarmos para lidarmos e nos adaptarmos às mudanças
climáticas causadas pela nossa irresponsabilidade no
trato com terras, águas, árvores, animais e seres
humanos.
Já
passou da hora de os espíritas (não todos, ressalto)
pararem de afirmar que todo e qualquer desastre
ambiental ou provocado ocorre porque as vítimas são
infratores de existências passadas reunidos em dado
local ou circunstância com o intuito de saldarem tal
infração a fim de evoluírem. Não utilizemos os
pressupostos espíritas como desculpa para justificar o
descaso com o meio ambiente e a vida do próximo. A razão
para tais eventos está mais próxima, é mais profunda do
que parece e requer nossa participação para que as
perdas sejam as menores possíveis.
Até o próximo assunto
irritante!
Bibliografia:
1- CARMO,
Wendal – MP junto ao TCU quer pente-fino sobre
‘desmonte’ de leis ambientais durante o governo Eduardo
Leite. Disponível em LINK-1
2- KARDEC,
Allan – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1984,
Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
3- _____________
- Revista
Espírita – 1862, Federação Espírita Brasileira (FEB), 1ª
edição, 2004, Brasília, DF.
4- NEVES,
Ernesto – Eduardo Leite mudou quase 500 normas do Código
Ambiental do RS. Disponível em LINK-2
5- SOBRE
NAPOLEÃO III – LINK-3
6- TEIXEIRA,
Marcelo – O espiritismo é pop, 1ª edição, 2015,
Editora Ceac, Bauru, SP
7- TEIXEIRA,
Marcelo – Rolam as cifras, jorram as águas. Disponível
em LINK-4
8- TEIXEIRA,
Marcelo – Brumadinho – resgate de vidas passadas?
Devagar com o andor. Disponível em LINK-5