O princípio do mérito encontra-se identificado com o
modo espírita de pensar, e parece adequar-se aos
conceitos usuais da Justiça Divina. Tal ordem de
pensamento encontra-se em consonância com os evangelhos:
A cada um segundo as suas obras.[1]
Quem comete o pecado é escravo do pecado.[2]
Quem com ferro fere, com o ferro será ferido. [3]
E, também, com a obra de Kardec:
Depende dos Espíritos apressarem o seu progresso rumo à
perfeição. [4]
Não há arrastamento irresistível, desde que se tenha
vontade de resistir [...] querer é poder. [5]
O homem sempre poderia vencer suas más tendências
mediante seus próprios esforços. [6]
Reproduzindo o pensamento hegemônico da generalidade dos
espíritas, Joanna de Ângelis coloca:
Aqueles que encontram menos dificuldades, fazem jus às
circunstâncias, em razão do seu comportamento em
reencarnações passadas. Os mais atribulados, da mesma
forma, procedem dos seus atos infelizes. [7]
O princípio do mérito, todavia, tem sido alvo de alguns
questionamentos:
01- Não são todos
os que se esforçam que conseguem o que almejam. Muitas
pessoas fizeram tudo certinho na vida, seguiram as
regras, deram o seu melhor, renunciaram a muitas coisas
em prol de um objetivo, mas nunca conseguiram
alcançá-lo.
02- Talento não é garantia de sucesso. Nem sempre são os
talentosos que se destacam na vida.
03- O princípio do esforço pessoal não se aplica para
todos, em todos os contextos. Há pessoas que não possuem
a energia necessária para
atingir o fim pretendido.
04- A meritocracia, ao alimentar comportamentos voltados
para o
sucesso
e o fracasso, contribui para sentimento da soberba, em
uns, e
de humilhação e revolta em outros.
05- O conceito de mérito ignora a existência de forças
que estão fora do nosso controle, as quais, em grande
parte, independem de nosso esforço e da nossa vontade,
como a inteligência, as influências sociais e as
circunstancias da vida.
06- O ideal meritocrático está relacionado à mobilidade,
não
à igualdade, portanto, não é remédio para a
desigualdade; ele é justificativa para ela. [8]
Os questionamentos em torno do princípio do mérito
colocam em suspeição os conceitos relacionados à Justiça
Divina, pelo menos como tem sido entendida. Como
explicar:
Que o universo “conspire” a favor de uns e não de
outros.
Que nem sempre o talento e o esforço sejam
recompensados.
Que o sucesso sorri para muitos que pouco fizeram por
merecê-lo.
Que muitos que desfrutam do poder, do prestígio e da
riqueza sejam espertalhões e trapaceiros.
Procurando um pensamento que concilie satisfatoriamente
as ideias apresentadas, sugerimos que a Justiça Divina
se compõe de três princípios fundamentais: o princípio
da RESPONSABILIDADE, o princípio da NECESSIDADE e o
princípio da CASUALIDADE.
Princípio da Responsabilidade
Relaciona-se com a obrigação de responder pelas ações
próprias. As
ações humanas são consequenciais, e os agentes tornam-se
responsáveis por seus atos.
O princípio da responsabilidade, amplamente reconhecido
como lei de causa e efeito, lei de ação e reação, ou lei
do carma, encontra-se bem evidente neste texto de
Kardec:
Sendo a justiça de Deus infinita, é mantida uma conta
rigorosa do bem e do mal; se não há uma única má ação,
um único mau pensamento que não tenha suas consequências
fatais, não há uma única boa ação, um único bom
movimento da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que
seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um
começo de progresso. [9]
Esse princípio pode ser assim exemplificado:
01- Ao nos valermos de hábitos higiênicos inadequados
nos inserimos em enfermidades fisiologicamente
relacionadas a eles.
02- Ao usurpamos bens que não nos pertencem, a
consciência culpada nos insere em situações de perdas e
prejuízos.
03- Ao cultivarmos empatia e compaixão, granjeamos
amizades, que interferem em nosso favor, em situações
desfavoráveis.
Princípio da Necessidade
Este princípio não se relaciona com a conduta do agente
envolvido. Tem a ver com suas necessidades reais; com um
cenário de vida ou com intervenções específicas que o
auxiliem a superar as próprias dificuldades e a realizar
o que precisa em prol de si mesmo e da coletividade. De
acordo com Kardec, a Justiça
divina quer o bem para todos.[10] Em
síntese, o princípio da necessidade consiste em receber
o que precisa, capacitando-o a fazer o que lhe compete.
Nos textos de Kardec podemos identificar pensamentos que
se identificam com o princípio da necessidade. Kardec
admite, por exemplo, que nem todas as aflições da vida
estão relacionadas a comportamentos inadequados. São
situações difíceis ou afligentes que não se relacionam
com o princípio da responsabilidade, mas devem ser
compreendidas como necessidades evolutivas.
Vejamos:
Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de
nós.[11]
E também:
Não há crer, no entanto, que todo sofrimento suportado
neste mundo denote a existência de uma determinada
falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo
Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu
progresso. [12]
Ao examinar a possibilidade de que o princípio do mérito
não esteja presente nos sucessos financeiros da vida,
Kardec coloca:
Por que Deus favorece, com os dons da riqueza, certos
homens que
não parecem tê-los merecido?
- É um favor aos olhos dos que apenas veem o presente.
Mas,
sabei-o bem, a riqueza é, quase sempre, uma prova mais
perigosa
do que a
miséria. [13]
Alguns exemplos relacionados ao princípio da
necessidade:
01- Ser cuidado, amparado e acolhido quando em situações
afligentes, decorrentes, ou não, de conduta inadequada.
02- Ser inserido em um contexto social que lhe permita
viver experiências de crescimento.
03- Deparar-se com obstáculos ou facilidades que possam
contribuir em seu aprimoramento intelecto-moral.
Para ilustrar os dois primeiros princípios, examinamos
a Parábola do filho pródigo.
Trata-se,
em resumo, de um homem que tinha dois filhos. O filho
mais novo pediu sua parte da herança e foi embora para
“curtir a vida”. O
jovem gastou tudo nos seus prazeres e acabou na pobreza. Para
sobreviver, foi cuidar de porcos, e a fome era tanta que
teve vontade até mesmo de comer a comida dos porcos.
Então ele se lembrou da casa de seu pai, onde até os
servos comiam bem. Ele se
arrependeu e decidiu voltar para casa,
pedir perdão a seu pai e pedir um emprego como um servo.
Quando o pai viu seu filho chegando de longe, correu ao
seu encontro e o recebeu com alegria, determinando aos
servos que preparassem uma festa.
Ao retornar do trabalho, o filho mais velho deparou-se
com toda a comemoração e ficou zangado! Seu irmão
irresponsável não merecia nada disso.[14]
O princípio da responsabilidade pode ser
identificado na miséria, na fome e na humilhação do
jovem pródigo, que vivendo na abundância, no luxo e
desfrutando dos maiores prazeres da época, caiu na
modesta condição de cuidador de porcos. Tudo em
decorrência dos próprios excessos e da
irresponsabilidade.
O princípio da necessidade será visto na atitude
do pai, que o acolheu com afeto e consideração.
Desconsiderando os erros do filho – que já estava
respondendo por eles – o traz para junto de si, não como
servo, mas como filho. Era o que ele necessitava naquele
momento.
O personagem do pai compreendia que a justiça divina
estava presente também na empatia e na compaixão. O
irmão mais velho, ao apresentar o argumento de que “ele
não merece”, demonstrava estar cristalizado na ideia de
que a Justiça divina apenas se ocupa em responsabilizar,
punir e condenar, sem considerar que a justiça não
exclui a bondade. [15]
Jesus talvez se referisse ao princípio da necessidade
quando afirmou que teria o poder de perdoar os
pecados.[16] Ora,
se prevalecesse na Justiça divina apenas um princípio
punitivo-retributivo, não faria sentido o pensamento de
Jesus. O perdão das faltas não caberia na ordem divina.
Também no seguinte diálogo entre Paulo e Barnabé
(extraído do livro Paulo e Estevão) essa ideia
está presente. Barnabé convida Saulo a acompanhá-lo à igreja
do Caminho.
Saulo hesitou:
— Receio — disse o moço de Tarso —, pois já ofendi muito
a Simão Pedro e demais companheiros. Só por acréscimo de
misericórdia do Cristo consegui uma réstia de luz, para
não perder totalmente meus dias.
— Ora essa! — exclamou Barnabé, — quem não terá errado
na vida? Se Jesus nos tem valido a todos, não é porque o
mereçamos, mas pela necessidade de nossa condição de
pecadores. [17]
Princípio da casualidade
Ao nos inserirmos em um mundo de provas e expiações,
onde predominam a ignorância e a perversidade, estamos
sujeitos às vicissitudes desse mundo, que podem atingir
a qualquer um, independentemente de necessidades
prementes ou de comportamentos éticos inadequados. São
condições inerentes à corporeidade e podem afetar a
todos. Obviamente, o envolvido pode tirar lições do
sucedido, aprimorando-se do ponto de vista
intelecto-moral, mas não se pode afirmar que as
situações foram previstas ou provocadas.
Kardec reconhece essa possibilidade, ao referir-se aos
sofrimentos humanos:
Há males que independem da maneira de agir e que atingem
o homem
mais justo. O
homem deve resignar-se e sofrê-los sem
murmurar,
se quer progredir. Entretanto, sempre encontra
consolação na própria
consciência, que lhe dá
a esperança de um futuro melhor, desde que
faça o que é preciso para obtê-lo.[18]
E ao estudar os flagelos humanos, admite que possam se
dar sem relação de causalidade:
Mas as vítimas desses flagelos, apesar disso não são
vítimas?
- Se
considerássemos a vida no que ela é, e quanto é
insignificante em relação ao infinito, menos importância
lhe daríamos. Essas vítimas terão noutra existência uma
larga compensação para os seus sofrimentos, se souberem
suportá-los sem murmurar. [19]
De forma também casual, podemos ser beneficiados por
condições que surgem inesperadamente, sem que nada fosse
previsto.
Kardec se posiciona a esse respeito:
[...] não escolhestes e previstes tudo o que vos sucede
no mundo, até às mínimas coisas. Escolhestes apenas o
gênero das provações. As particularidades correm por
conta da posição em que vos achais [...] os
acontecimentos secundários se originam das
circunstâncias e da força mesma das coisas. Previstos só
são os fatos principais, os que influem no destino. Se
tomares uma estrada cheia de sulcos profundos, sabes que
terás de andar cautelosamente, porque há muitas
probabilidades de caíres; ignoras, contudo, em que ponto
cairás e bem pode suceder que não caias, se fores
bastante prudente. Se, ao percorreres uma rua, uma telha
te cair na cabeça, não creias que estava escrito,
segundo vulgarmente se diz.[20]
Kardec reconhece que as condições desfavoráveis
inerentes aos mundos menos evoluídos são transitórias;
tendem a desaparecer paulatinamente à medida que os
Espíritos que habitam esses mundos evoluírem:
Nos mundos onde a existência é menos material do que
neste, menos grosseiras são as necessidades e menos
agudos os sofrimentos físicos.[21]
O princípio
da casualidade pode ser assim exemplificado:
01- Ter sua residência furtada durante a semana de
viagem de férias.
02- Ser obrigado a adiar um programa há muito esperado,
em decorrência de chuva torrencial.
03- Faturar uma graninha ao ser sorteado com um bilhete
de loteria.
Finalmente, podemos identificar os elementos que
caracterizam a justiça nos três princípios sugeridos. No
princípio da responsabilidade, a justiça se encontra na
livre escolha dos atos e nas consequências dos mesmos
atos, cujo mecanismo atinge a todos indistintamente.
No princípio da necessidade, se mostra nas
oportunidades, no cuidado, no amparo e na possibilidade
de superação e reparação que se apresenta igualmente a todos.
E no princípio da casualidade, a justiça pode ser
identificada no fato de vivermos em um mundo que condiz
com a nossa natureza, permitindo que todos vivam
experiências em sintonia com a sua evolução.
Lembrando, ao concluir, que, segundo Kardec, a Justiça
divina se embasa no modo de criação dos Espíritos –
todos com as mesmas marcas de nascença: simplicidade,
ignorância e perfectibilidade -, e na reencarnação,
que oferece a todos igualmente as experiências
necessárias ao seu pleno desenvolvimento.
Podemos conferir isso nos seguintes textos de Kardec:
[...] a Justiça divina patenteia-se na igualdade
absoluta que preside à criação dos Espíritos; todos têm
o mesmo ponto de partida e nenhum se distingue em sua
formação por melhor aquinhoado; nenhum cuja marcha
progressiva se facilite por exceção: os que chegam ao
fim, têm passado, como quaisquer outros, pelas fases de
inferioridade e respectivas provas. [22]
A Justiça divina não poderia consagrar semelhante
injustiça [a unicidade das existências]. Com a
pluralidade das existências, o direito à felicidade é
igual para todos, porque ninguém fica deserdado do
progresso. Como aqueles que viveram no tempo da barbárie
podem voltar, na época da civilização, a viver no seio
do mesmo povo, ou de outro, é claro que todos se
beneficiam da marcha ascensional.[23]
[8] Sociedades
enfermas: Chrystian Barros, Ely Matos e
Ricardo Baesso de Oliveira (no prelo)
[9] O
céu e o inferno, parte I, cap. 7
[12] E.S.E
cap. 5, item 9
[17] Paulo
e Estêvão, Parte II, cap. 3