Especial

por Leonardo Mormo Moreira

Aquele que não
vem por amor?

 

 

Convencionou-se afirmar, no Movimento Espírita Brasileiro (MEB), que “aquele que não vem por amor, vem pela dor”. Esta ideia sugere basicamente que, de uma forma ou de outra, todos chegarão, mais cedo ou mais tarde, à Doutrina Espírita e/ou ao MEB.

Divaldo Franco já questionou tal afirmativa, asseverando que a Providência Divina não impõe ao indivíduo uma Doutrina/Movimento que, eventualmente, ele rejeite. Na verdade, o indivíduo é que elege a Doutrina.

A explicação de Divaldo está em concordância com a análise que Léon Denis faz, na obra “No Invisível”, sobre o futuro do Espiritismo, quando assevera que “O Espiritismo não será a religião do futuro, mas o futuro das religiões”.

De fato, Deus, em sua imutabilidade, impõe à criatura as suas Leis igualmente imutáveis e perfeitas, mas não obriga o Espírito imortal a um caminho específico de harmonização a tais Leis, uma vez que o livre-arbítrio é fundamento delas (vide Lei de Liberdade).

Se o Espiritismo fosse literalmente a “religião do futuro”, inevitavelmente nos depararíamos, em algum momento, com uma tarefa proselitista, o que não é a proposta apresentada pelos Espíritos Superiores. Realmente, o Codificador do Espiritismo, Allan Kardec, recusa qualquer papel da Doutrina Espírita como opositor a outras correntes espiritualistas. Em sentido contrário, Kardec enfatiza que o Espiritismo veio apoiá-las, reforçando as bases racionais e científicas nas quais os fundamentos gerais da maioria delas estão assentados.

 

Fora da caridade não há salvação

A própria utilização da sentença “Fora da caridade não há salvação” como lema do Espiritismo não deixa de ser uma forte sinalização dessa atitude não sectária do pensamento espírita. De fato, Kardec quis ressaltar a diferença do pensamento espírita em relação ao pensamento religioso tradicional, o qual defende que “Fora da Igreja não há salvação”.

Esta visão exclusivista em relação à salvação (“Fora da Igreja não há salvação”) vem de uma frase de São Cipriano de Cartago, no século III, a qual foi utilizada pelos Padres da Igreja e por muitos teólogos na história do Cristianismo. No tempo de Kardec, século XIX, a sentença ainda estava muito em voga. Assim sendo, o Codificador emprega “Fora da caridade não há salvação”, mesmo o Espiritismo não sendo uma doutrina estritamente salvacionista (no sentido que os religiosos cristãos tradicionais atribuem ao termo “salvação”), justamente para enfatizar o caráter universalista do pensamento espiritista.

Kardec somente admite para o Espiritismo um papel de opositor ao materialismo, que é considerado uma verdadeira chaga da sociedade (vide, por exemplo, os capítulos I de “O Livro dos Médiuns” e “O Céu e o Inferno”, além do estudo sobre o materialismo em “Obras Póstumas”).

 

Amor e Dor

Ao analisarmos mais atentamente a colocação “aquele que não vem por amor, vem pela dor”, temos que admitir que os conceitos que as palavras “amor” e “dor” apresentam na respectiva sentença merecem ser mais bem aclarados.

A palavra “dor”, no caso, pode representar uma problemática espiritual traumatizante para os envolvidos, tais como um processo obsessivo grave ou uma eclosão desastrada e/ou assustadora de uma faculdade mediúnica incompreendida. Por conseguinte, como a “dor” referida não seria bem explicada, justificada e tratada por denominações religiosas tradicionais ou por serviços médicos e/ou psicológicos com viés materialista, os envolvidos tendem a decidir, reticentemente, pela busca do Espiritismo. Desta forma, mesmo com alguma resistência inicial às ideias, os envolvidos optam por procurar o centro espírita, os livros da Codificação ou os adeptos do Espiritismo visando à obtenção de alguma alternativa terapêutica.

Temos que admitir, no entanto, que muitos irmãos passam por experiências obsessivas ou de eclosão mediúnica dolorosa sem nunca sequer cogitarem do auxílio espírita. Logo, a decisão por uma busca por assistência espírita já denota a conquista de alguns pré-requisitos intelectuais ou, pelo menos, a ausência de preconceito contra o Espiritismo. Caso contrário, esta opção não seria nem minimamente aventada.

A palavra “amor”, por sua vez, também apresenta uma conotação de natureza intelectual na respectiva sentença. De fato, é raro alguém procurar o centro espírita em função do trabalho de caridade material ou assistência social ou moral que o centro apresenta. Por mais que o reconhecimento social que o movimento espírita adquiriu em função da caridade material tenha favorecido a diminuição do preconceito contra o Espiritismo, dificilmente alguém procura o MEB sensibilizado, exclusivamente, por essas atividades. Igualmente, não é comum alguém buscar o Espiritismo atraído por haver identificado em nossos arraiais uma atitude de amor e caridade superior no comportamento médio da sociedade ou de outras religiões. Tais fatores podem exercer alguma pequena influência, mas não parecem ser determinantes para a respectiva busca.

Vale registrar que a Igreja católica apresenta muitos trabalhos altamente meritórios em diversos setores da caridade material, tal como ocorre com outros diversos grupos espiritualistas.

Na busca pelo Espiritismo, é mais comum o impacto causado por algum fenômeno mediúnico ou anímico de relevo, gerando uma espécie de despertamento intelectual para as questões espirituais. Outra possibilidade é a leitura isolada de alguma obra de fôlego, cujo conteúdo tem o poder de atrair um interesse real pelo pensamento espírita.

Na história do Espiritismo, há casos notáveis de grandes trabalhadores que foram atraídos para a Doutrina Espírita após um primeiro contato despretensioso, baseado em uma leitura não muito programada do material espiritista.

Eurípedes Barsanulfo, por exemplo, planejava combater o Espiritismo em reunião íntima com seu tio espiritista, quando foi desafiado por ele a conhecer o livro “Depois da Morte”, de Léon Denis.

Léon Denis, por sua vez, comprou um exemplar de “O Livro dos Espíritos”, o qual estava exposto em determinada livraria de sua cidade, Tours. Em princípio, o nome da obra e algumas poucas informações foram suficientes para provocar o interesse para a compra do livro.

Bezerra de Menezes, presenteado com um volume de “O Livro dos Espíritos” recém-traduzido ao português, folheou algumas páginas enquanto voltava para casa, após um dia de trabalho.

Os três admiráveis nomes citados foram profundamente impactados pelas leituras das referidas obras, denotando preparo espiritual prévio, sobretudo de natureza intelectual. Realmente, em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, é afirmado que “as ideias inatas a respeito do Espiritismo denotam evolução espiritual previamente adquirida”.

É possível inferir que o chamado “amor”, no caso analisado, é muito mais um preparo intelectual ou intelecto-moral para a análise do significado da vida ou da natureza de uma forma geral, ou de uma ocorrência específica de caráter paranormal, de conotação positiva para os envolvidos.

Por conseguinte, tanto o “amor” como a “dor”, mencionados na famosa sentença presentemente discutida, denotariam uma espécie de “gota d`água”, dentro de um processo muito maior de amadurecimento intelecto-moral do Espírito imortal, o que pode apresentar diferentes consequências, a depender da atitude de cada indivíduo.

Por outro lado, a chegada de qualquer um a determinado centro espírita e mesmo a frequência e o acesso a um bom número de obras espíritas de elevado nível não são garantias de um interesse mais consistente e sustentável. Afinal, a decisão pessoal e a perseverança em uma determinada escolha e/ou atividade são sempre diariamente reavaliadas, ao utilizarmos de nosso livre-arbítrio, de nossos pensamentos e de nossa vontade.

Os próprios exemplos de Eurípedes, Denis e Bezerra somente são sugestivos pela dedicação posterior que eles apresentariam no desempenho de suas atividades espíritas. A magnitude do impacto persuasivo da leitura inicial do material espírita só pode ser avaliada pela intensidade da abnegação que os referidos nomes apresentaram, subsequentemente, em suas respectivas atuações doutrinárias. Vale lembrar a própria recomendação de Jesus a Pedro, que teria acontecido no período final do apostolado evangélico: “Quando te converteres, confirma teus irmãos”.

 

Considerações finais

A conhecida frase “aquele que não vem por amor, vem pela dor”, de autoria desconhecida, consagrou-se em determinados ambientes de nosso movimento espírita. Alguns confrades empregam tal afirmação quase que considerando tal sentença um princípio doutrinário. No entanto, apesar de a Providência Divina sempre utilizar de vários processos diferentes para provocar nosso despertamento espiritual, isso não quer dizer que os mentores espirituais tendam a impor, mais cedo ou mais tarde, nossa adesão ao Espiritismo. A própria noção tradicional de “conversão” requer uma mais profunda reavaliação, objetivando um entendimento mais consistente do que seria realmente uma transformação moral e espiritual representativa, além da simples mudança de rótulo denominacional ou da simples adesão, pela frequência, a um determinado movimento espiritualista.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita