Convencionou-se afirmar, no Movimento Espírita
Brasileiro (MEB), que “aquele que não vem por amor, vem
pela dor”. Esta ideia sugere basicamente que, de uma
forma ou de outra, todos chegarão, mais cedo ou mais
tarde, à Doutrina Espírita e/ou ao MEB.
Divaldo Franco já questionou tal afirmativa, asseverando
que a Providência Divina não impõe ao indivíduo uma
Doutrina/Movimento que, eventualmente, ele rejeite. Na
verdade, o indivíduo é que elege a Doutrina.
A explicação de Divaldo está em concordância com a
análise que Léon Denis faz, na obra “No Invisível”,
sobre o futuro do Espiritismo, quando assevera que “O
Espiritismo não será a religião do futuro, mas o futuro
das religiões”.
De fato, Deus, em sua imutabilidade, impõe à criatura as
suas Leis igualmente imutáveis e perfeitas, mas não
obriga o Espírito imortal a um caminho específico de
harmonização a tais Leis, uma vez que o livre-arbítrio é
fundamento delas (vide Lei de Liberdade).
Se o Espiritismo fosse literalmente a “religião do
futuro”, inevitavelmente nos depararíamos, em algum
momento, com uma tarefa proselitista, o que não é a
proposta apresentada pelos Espíritos Superiores.
Realmente, o Codificador do Espiritismo, Allan Kardec,
recusa qualquer papel da Doutrina Espírita como opositor
a outras correntes espiritualistas. Em sentido
contrário, Kardec enfatiza que o Espiritismo veio
apoiá-las, reforçando as bases racionais e científicas
nas quais os fundamentos gerais da maioria delas estão
assentados.
Fora da caridade não há salvação
A própria utilização da sentença “Fora da caridade não
há salvação” como lema do Espiritismo não deixa de ser
uma forte sinalização dessa atitude não sectária do
pensamento espírita. De fato, Kardec quis ressaltar a
diferença do pensamento espírita em relação ao
pensamento religioso tradicional, o qual defende que
“Fora da Igreja não há salvação”.
Esta visão exclusivista em relação à salvação (“Fora da
Igreja não há salvação”) vem de uma frase de São
Cipriano de Cartago, no século III, a qual foi utilizada
pelos Padres da Igreja e por muitos teólogos na história
do Cristianismo. No tempo de Kardec, século XIX, a
sentença ainda estava muito em voga. Assim sendo, o
Codificador emprega “Fora da caridade não há salvação”,
mesmo o Espiritismo não sendo uma doutrina estritamente
salvacionista (no sentido que os religiosos cristãos
tradicionais atribuem ao termo “salvação”), justamente
para enfatizar o caráter universalista do pensamento
espiritista.
Kardec somente admite para o Espiritismo um papel de
opositor ao materialismo, que é considerado uma
verdadeira chaga da sociedade (vide, por exemplo, os
capítulos I de “O Livro dos Médiuns” e “O Céu e o
Inferno”, além do estudo sobre o materialismo em “Obras
Póstumas”).
Amor e Dor
Ao analisarmos mais atentamente a colocação “aquele que
não vem por amor, vem pela dor”, temos que admitir que
os conceitos que as palavras “amor” e “dor” apresentam
na respectiva sentença merecem ser mais bem aclarados.
A palavra “dor”, no caso, pode representar uma
problemática espiritual traumatizante para os
envolvidos, tais como um processo obsessivo grave ou uma
eclosão desastrada e/ou assustadora de uma faculdade
mediúnica incompreendida. Por conseguinte, como a “dor”
referida não seria bem explicada, justificada e tratada
por denominações religiosas tradicionais ou por serviços
médicos e/ou psicológicos com viés materialista, os
envolvidos tendem a decidir, reticentemente, pela busca
do Espiritismo. Desta forma, mesmo com alguma
resistência inicial às ideias, os envolvidos optam por
procurar o centro espírita, os livros da Codificação ou
os adeptos do Espiritismo visando à obtenção de alguma
alternativa terapêutica.
Temos que admitir, no entanto, que muitos irmãos passam
por experiências obsessivas ou de eclosão mediúnica
dolorosa sem nunca sequer cogitarem do auxílio espírita.
Logo, a decisão por uma busca por assistência espírita
já denota a conquista de alguns pré-requisitos
intelectuais ou, pelo menos, a ausência de preconceito
contra o Espiritismo. Caso contrário, esta opção não
seria nem minimamente aventada.
A palavra “amor”, por sua vez, também apresenta uma
conotação de natureza intelectual na respectiva
sentença. De fato, é raro alguém procurar o centro
espírita em função do trabalho de caridade material ou
assistência social ou moral que o centro apresenta. Por
mais que o reconhecimento social que o movimento
espírita adquiriu em função da caridade material tenha
favorecido a diminuição do preconceito contra o
Espiritismo, dificilmente alguém procura o MEB
sensibilizado, exclusivamente, por essas atividades.
Igualmente, não é comum alguém buscar o Espiritismo
atraído por haver identificado em nossos arraiais uma
atitude de amor e caridade superior no comportamento
médio da sociedade ou de outras religiões. Tais fatores
podem exercer alguma pequena influência, mas não parecem
ser determinantes para a respectiva busca.
Vale registrar que a Igreja católica apresenta muitos
trabalhos altamente meritórios em diversos setores da
caridade material, tal como ocorre com outros diversos
grupos espiritualistas.
Na busca pelo Espiritismo, é mais comum o impacto
causado por algum fenômeno mediúnico ou anímico de
relevo, gerando uma espécie de despertamento intelectual
para as questões espirituais. Outra possibilidade é a
leitura isolada de alguma obra de fôlego, cujo conteúdo
tem o poder de atrair um interesse real pelo pensamento
espírita.
Na história do Espiritismo, há casos notáveis de grandes
trabalhadores que foram atraídos para a Doutrina
Espírita após um primeiro contato despretensioso,
baseado em uma leitura não muito programada do material
espiritista.
Eurípedes Barsanulfo, por exemplo, planejava combater o
Espiritismo em reunião íntima com seu tio espiritista,
quando foi desafiado por ele a conhecer o livro “Depois
da Morte”, de Léon Denis.
Léon Denis, por sua vez, comprou um exemplar de “O Livro
dos Espíritos”, o qual estava exposto em determinada
livraria de sua cidade, Tours. Em princípio, o nome da
obra e algumas poucas informações foram suficientes para
provocar o interesse para a compra do livro.
Bezerra de Menezes, presenteado com um volume de “O
Livro dos Espíritos” recém-traduzido ao português,
folheou algumas páginas enquanto voltava para casa, após
um dia de trabalho.
Os três admiráveis nomes citados foram profundamente
impactados pelas leituras das referidas obras, denotando
preparo espiritual prévio, sobretudo de natureza
intelectual. Realmente, em “O Evangelho Segundo o
Espiritismo”, é afirmado que “as ideias inatas a
respeito do Espiritismo denotam evolução espiritual
previamente adquirida”.
É possível inferir que o chamado “amor”, no caso
analisado, é muito mais um preparo intelectual ou
intelecto-moral para a análise do significado da vida ou
da natureza de uma forma geral, ou de uma ocorrência
específica de caráter paranormal, de conotação positiva
para os envolvidos.
Por conseguinte, tanto o “amor” como a “dor”,
mencionados na famosa sentença presentemente discutida,
denotariam uma espécie de “gota d`água”, dentro de um
processo muito maior de amadurecimento intelecto-moral
do Espírito imortal, o que pode apresentar diferentes
consequências, a depender da atitude de cada indivíduo.
Por outro lado, a chegada de qualquer um a determinado
centro espírita e mesmo a frequência e o acesso a um bom
número de obras espíritas de elevado nível não são
garantias de um interesse mais consistente e
sustentável. Afinal, a decisão pessoal e a perseverança
em uma determinada escolha e/ou atividade são sempre
diariamente reavaliadas, ao utilizarmos de nosso
livre-arbítrio, de nossos pensamentos e de nossa
vontade.
Os próprios exemplos de Eurípedes, Denis e Bezerra
somente são sugestivos pela dedicação posterior que eles
apresentariam no desempenho de suas atividades
espíritas. A magnitude do impacto persuasivo da leitura
inicial do material espírita só pode ser avaliada pela
intensidade da abnegação que os referidos nomes
apresentaram, subsequentemente, em suas respectivas
atuações doutrinárias. Vale lembrar a própria
recomendação de Jesus a Pedro, que teria acontecido no
período final do apostolado evangélico: “Quando te
converteres, confirma teus irmãos”.
Considerações finais
A conhecida frase “aquele que não vem por amor, vem pela
dor”, de autoria desconhecida, consagrou-se em
determinados ambientes de nosso movimento espírita.
Alguns confrades empregam tal afirmação quase que
considerando tal sentença um princípio doutrinário. No
entanto, apesar de a Providência Divina sempre utilizar
de vários processos diferentes para provocar nosso
despertamento espiritual, isso não quer dizer que os
mentores espirituais tendam a impor, mais cedo ou mais
tarde, nossa adesão ao Espiritismo. A própria noção
tradicional de “conversão” requer uma mais profunda
reavaliação, objetivando um entendimento mais
consistente do que seria realmente uma transformação
moral e espiritual representativa, além da simples
mudança de rótulo denominacional ou da simples adesão,
pela frequência, a um determinado movimento
espiritualista.