“As ideias do homem estão na razão do que ele sabe.”
(ALLAN KARDEC)
Sempre que surge alguma referência ao tema colônias
espirituais, os que não concordam com essa ideia
invariavelmente apresentam como fundamento contrário a
citação que Allan Kardec (1804-1869) fez ao nome de
Santa Teresa ()
na obra O Céu e o Inferno.
Ainda não nos havíamos interessado em ver o que o
Codificador falou, especialmente para vermos todo o
contexto e não apenas partes, como muitas vezes se faz
por aí. Mas, a ideia de ver “in loco” surgiu – aliás,
estava mesmo nos perseguindo, se assim podemos nos
expressar.
De O Céu e o Inferno, Primeira parte, cap.
IV – O inferno, tópico “Descrição do inferno cristão”,
do item 12, merece destaque o seguinte trecho:
[…] Há, contudo, teólogos mais ousados ou mais
esclarecidos que dão do inferno descrições mais
detalhadas, variadas e completas. E embora não se saiba
em que lugar do Espaço está situado esse inferno, há
santos que o viram. Eles não foram lá com a
lira na mão, como Orfeu (),
ou de espada em punho, como Ulisses (),
mas transportados em Espírito.
Santa Teresa
()
é desse número. De acordo com a narrativa da
santa, haveria cidades no inferno; ela aí viu,
pelo menos, uma espécie de viela longa e estreita como
essas que existem em velhas cidades; percorreu-a
horrorizada, caminhando sobre terreno lodoso e fétido,
no qual pululavam monstruosos répteis. Foi, porém,
detida em sua marcha por uma muralha que interceptava a
viela; abrigou-se num nicho da muralha, sem saber
explicar a ocorrência. Era, diz ela, o lugar que lhe
destinavam se abusasse, em vida, das graças concedidas
por Deus em sua cela de Ávila.
Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar
esse nicho de pedra, não podia sentar-se, ou deitar-se,
nem se manter de pé. Tampouco podia sair. Essas paredes
horríveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na,
apertavam-na como se fossem animadas de movimento
próprio. Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao
mesmo tempo que a esfolavam viva e a retalhavam em
pedaços. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente,
toda sorte de angústias. Sem esperança de socorro,
tudo eram trevas à sua volta, embora percebesse não
sem pavor, através dessas trevas, a hedionda viela em
que se achava, com a sua imunda vizinhança. Este
espetáculo era-lhe tão intolerável quanto os apertos da
prisão. ()
Esse não passava, certamente, de um pequeno recanto do
inferno. Outros viajantes espirituais foram mais
favorecidos. Viram grandes cidades no inferno
completamente tomadas pelo fogo: Babilônia e Nínive,
a própria Roma, com seus palácios e templos
incendiados e seus habitantes acorrentados. Viram também
traficantes em suas bancas, sacerdotes reunidos com
cortesãos em salas de festim, chumbados às suas cadeiras
e levando aos lábios, em gritos desesperados, rubras
taças chamejantes; criados genuflexos em cloacas ()
ferventes, braços distendidos, e príncipes de cujas mãos
escorria em lava devoradora o ouro derretido. Outros
viram no inferno planícies sem-fim, cultivadas por
camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos
fumegantes, dessas sementes estéreis, se entredevoravam,
dispersando-se em seguida, tão numerosos como antes,
magros, vorazes e em bando, indo procurar ao longe, em
vão, terras mais felizes, sendo logo substituídos por
outras colônias errantes de condenados. Há também
os que viram no inferno montanhas repletas de
precipícios, florestas que gemiam, poços
secos, fontes alimentadas de lágrimas, rios
de sangue, turbilhões de neve em desertos de
gelo, barcas tripuladas por desesperados,
singrando mares onde a terra nunca surgia. Em suma,
viram tudo o que viam os pagãos: um lúgubre reflexo da
Terra, com suas misérias grandemente aumentadas, seus
sofrimentos naturais eternizados, e até calabouços,
patíbulos e instrumentos de tortura forjados por nossas
próprias mãos. ()
(grifo nosso)
Em princípio, está aí, segundo acreditam os contrários à
possibilidade de construções no plano espiritual, o
“tiro mortal” na crença em colônias espirituais. Porém,
sempre há um “porém”: a coisa não é bem por aí.
Antes de explicarmos, vamos, por curiosidade, consultar
a obra de Santa Teresa d’Ávila intitulada Obras de
Santa Teresa de Jesus, Tomo I – Livro da Vida,
cujo cap. XXXII se inicia no seguinte parágrafo:
Havia já muito tempo que o Senhor me fazia muitas das
mercês que referi e outras grandíssimas, quando um dia,
estando em oração, achei-me subitamente, ao que me
parecia, metida corpo e alma no inferno. Entendi que
queria o Senhor dar-me a ver o lugar que aí me haviam
aparelhado os demônios, e eu merecera por meus pecados.
Durou brevíssimo tempo, mas, ainda que vivesse muitos
anos, tenho por impossível olvidá-lo. Pareceu-me a
entrada um beco bem longo e estreito, semelhante a
um forno muito baixo, escuro e apertado. O solo
tinha a aparência duma água, ou antes, dum lodo
sujíssimo e de pestilencial odor, cheio de répteis
venenosos. No fundo havia uma concavidade aberta numa
parede, a modo de armário, onde me vi encerrada
estreitissimamente. Tudo isto era deleitoso à vista, em
comparação do que ali senti. Entretanto o que escrevi
está muito aquém da verdade. ()
(grifo nosso)
Um pouco à frente, Santa Teresa diz sobre o inferno:
“[…] Por toda parte trevas escuríssimas: não há luz.
Não entendo como pode ser que, sem haver claridade, se
enxerga tudo que à vista causa pena.” ()
(grifo nosso) Quem ficou sem entender nada fomos nós,
pois se o inferno é de fogo, por lógica, nele não
deveria haver escuridão. Ou estamos enganados?
Há algo importante que o Codificador explicou em nota de
rodapé, que muitos não leem, uma vez que, quase sempre,
não nos preocupamos em verificar o que consta das notas.
Ele tratou de deixar claro que “Nesta visão se
reconhecem todas as características dos pesadelos,
sendo provável que fosse deste gênero de fenômenos o
acontecido a Santa Teresa.” (grifo nosso)
Ora, ao usarem a visão de Santa Teresa, por
consequência, teriam que provar que todos aqueles que
citam alguma construção no mundo espiritual também
deveriam as suas informações ou descrições serem tomadas
como “características dos pesadelos”.
Cada vez mais vemos a importância de ver o contexto de
citações que nos são apresentadas em argumentos,
especialmente daqueles que se apoiam no “a lógica diz”.
Porém, no caso em questão, essa mesma lógica, a qual
apelam, serve de munição fatal para derrubar suas
razões, como ficará evidente.
Para ver o contexto, voltemos ao livro O Céu e o
Inferno, Primeira parte, cap. IV – O inferno,
tópico “Descrição do inferno cristão”, só que agora
tomaremos todo o teor do item 15, que finaliza o tópico,
é também o final do capítulo:
15. É de perguntar-se como alguns homens foram
capazes de ver essas coisas em estado de êxtase, quando
elas de fato não existem. Não cabe aqui explicar a
origem das imagens fantásticas, tantas vezes
reproduzidas com todas as aparências de realidade.
Diremos apenas ser preciso considerar, em princípio, que
o êxtase é a menos segura de todas as revelações
()
porque o estado de superexcitação nem sempre implica
um desprendimento tão completo da alma que se imponha à
crença absoluta, denunciando muitas vezes o reflexo de
preocupações da véspera.
As ideias com que o Espírito se nutre
e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório
perispiritual que a este corresponde, conserva a forma
ou a estampa, se reproduzem amplificadas como em uma
miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se
confundem e compõem um todo extravagante. Os
extáticos de todos os cultos sempre viram coisas
relacionadas com a fé que possuíam. Nada há, pois, de
extraordinário que Santa Teresa e outros, tanto quanto
ela saturados de ideias infernais pelas descrições,
verbais ou escritas, hajam tido visões, que não são,
propriamente falando, mais que reproduções por efeito de
um pesadelo. Um pagão fanatizado teria antes visto o
Tártaro e as Fúrias, ou Júpiter, no Olimpo, empunhando o
raio. ()
(grifo nosso)
Ora, ora! Então o caso de Santa Teresa d’Ávila (ou Santa
Teresa de Jesus, como é conhecida) é produto de êxtase,
portanto algo bem específico, que, por “lógica” (eita,
ela aparece novamente) não poderia ser generalizado para
todos os que, em algum estado de emancipação da alma,
testemunham construções no mundo espiritual. Certamente,
que se deve incluir no meio as revelações provindas de
inúmeros espíritos a respeito delas.
Como Allan Kardec citou as questões 443 e 444, vejamos,
em O Livro dos Espíritos, o teor delas:
443. Há coisas que o extático pensa ver, mas
que, evidentemente, resultam de uma imaginação abalada
pelas crenças e preconceitos terrenos. Assim, nem tudo o
que ele vê é real?
“O que ele vê é real para ele, mas, como o seu
Espírito está sempre sob a influência das ideias
terrenas, pode ver à sua maneira, ou, melhor
dizendo, pode exprimir o que viu numa linguagem
condizente com os seus preconceitos e as ideias em que
foi criado, ou com os vossos preconceitos, a fim de
ser mais bem compreendido. É sobretudo nesse sentido que
ele pode errar.”
444. Qual o grau de confiança que se pode depositar
nas revelações dos extáticos?
“O extático pode enganar-se com muita frequência,
sobretudo quando quer penetrar naquilo que deve
continuar a ser mistério para o homem, porque, então,
se deixa levar por suas próprias ideias, ou se torna
joguete de Espíritos enganadores que se aproveitam de
seu entusiasmo para o fascinar.” ()
(grifo nosso)
Esclarecemos que, em O Livro dos Espíritos, Livro
segundo, cap. VIII – Emancipação da alma, essas duas
questões estão inseridas no tópico “Êxtase”. Portanto,
para interpretar as respostas, não poderemos sair desse
limite.
A visão de Santa Teresa d’Ávila como um produto de
êxtase pode ser corroborar com este trecho do item 27,
do cap. XIV – Os fluidos de A Gênese:
[…] É assim que o pensamento de pessoas fortemente
imbuídas de certas crenças religiosas e com elas
preocupadas lhes apresenta o inferno, suas fornalhas,
suas torturas e seus demônios, tais quais essas pessoas
os imaginam. Às vezes, é toda uma epopeia. Os pagãos
viam o Olimpo e o Tártaro, como os cristãos veem o
inferno e o paraíso. Se, ao despertarem ou saírem do
êxtase, conservam lembrança exata de suas visões,
tais pessoas as tomam como realidades confirmativas de
suas crenças, quando tudo não passa de produto de seus
próprios pensamentos. ()
É preciso, pois, que se faça uma distinção muito
rigorosa nas visões extáticas, antes de se dar crédito a
elas. A tal propósito, o remédio para a excessiva
credulidade é o estudo das leis que regem o mundo
espiritual. ()
(grifo nosso)
Eis aí o retrato da realidade na qual podemos inserir,
sem erro, a Santa Teresa d’Ávila, em quem a ideia de
inferno se revelava uma preocupação diuturna.
Encerramos com esta frase de Allan Kardec: “Do momento
em que um erro é demonstrado, o amor-próprio tem mais a
perder do que a ganhar obstinando-se numa ideia falsa.”
()
Referências
bibliográficas:
D’ÁVILA, T. Obras de Santa Teresa de Jesus, Tomo I –
Livro da Vida. Petrópolis (RJ): Vozes, 1961.
KARDEC, A. A Gênese. Brasília:
FEB, 2013.
KARDEC, A. O Céu e o Inferno.
Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos.
Brasília: FEB, 2013.
WIKIPÉDIA, Teresa d’Ávila, disponível em:
LINK. Acesso
em: 13 mai. 2023.