Especial

por Paulo da Silva Neto Sobrinho

A visão de Santa Teresa é fundamento contra as colônias espirituais?

 

“As ideias do homem estão na razão do que ele sabe.” (ALLAN KARDEC)

 

Sempre que surge alguma referência ao tema colônias espirituais, os que não concordam com essa ideia invariavelmente apresentam como fundamento contrário a citação que Allan Kardec (1804-1869) fez ao nome de Santa Teresa ([1]) na obra O Céu e o Inferno.

Ainda não nos havíamos interessado em ver o que o Codificador falou, especialmente para vermos todo o contexto e não apenas partes, como muitas vezes se faz por aí. Mas, a ideia de ver “in loco” surgiu – aliás, estava mesmo nos perseguindo, se assim podemos nos expressar.

De O Céu e o Inferno, Primeira parte, cap. IV – O inferno, tópico “Descrição do inferno cristão”, do item 12, merece destaque o seguinte trecho:

[…] Há, contudo, teólogos mais ousados ou mais esclarecidos que dão do inferno descrições mais detalhadas, variadas e completas. E embora não se saiba em que lugar do Espaço está situado esse inferno, há santos que o viram. Eles não foram lá com a lira na mão, como Orfeu ([2]), ou de espada em punho, como Ulisses ([3]), mas transportados em Espírito.

Santa Teresa ([4]) é desse número. De acordo com a narrativa da santa, haveria cidades no inferno; ela aí viu, pelo menos, uma espécie de viela longa e estreita como essas que existem em velhas cidades; percorreu-a horrorizada, caminhando sobre terreno lodoso e fétido, no qual pululavam monstruosos répteis. Foi, porém, detida em sua marcha por uma muralha que interceptava a viela; abrigou-se num nicho da muralha, sem saber explicar a ocorrência. Era, diz ela, o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graças concedidas por Deus em sua cela de Ávila.

Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho de pedra, não podia sentar-se, ou deitar-se, nem se manter de pé. Tampouco podia sair. Essas paredes horríveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na, apertavam-na como se fossem animadas de movimento próprio. Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam viva e a retalhavam em pedaços. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda sorte de angústias. Sem esperança de socorro, tudo eram trevas à sua volta, embora percebesse não sem pavor, através dessas trevas, a hedionda viela em que se achava, com a sua imunda vizinhança. Este espetáculo era-lhe tão intolerável quanto os apertos da prisão. ([5])

Esse não passava, certamente, de um pequeno recanto do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram grandes cidades no inferno completamente tomadas pelo fogo: Babilônia e Nínive, a própria Roma, com seus palácios e templos incendiados e seus habitantes acorrentados. Viram também traficantes em suas bancas, sacerdotes reunidos com cortesãos em salas de festim, chumbados às suas cadeiras e levando aos lábios, em gritos desesperados, rubras taças chamejantes; criados genuflexos em cloacas ([6]) ferventes, braços distendidos, e príncipes de cujas mãos escorria em lava devoradora o ouro derretido. Outros viram no inferno planícies sem-fim, cultivadas por camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos fumegantes, dessas sementes estéreis, se entredevoravam, dispersando-se em seguida, tão numerosos como antes, magros, vorazes e em bando, indo procurar ao longe, em vão, terras mais felizes, sendo logo substituídos por outras colônias errantes de condenados. Há também os que viram no inferno montanhas repletas de precipícios, florestas que gemiam, poços secos, fontes alimentadas de lágrimas, rios de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas tripuladas por desesperados, singrando mares onde a terra nunca surgia. Em suma, viram tudo o que viam os pagãos: um lúgubre reflexo da Terra, com suas misérias grandemente aumentadas, seus sofrimentos naturais eternizados, e até calabouços, patíbulos e instrumentos de tortura forjados por nossas próprias mãos. ([7]) (grifo nosso)

Em princípio, está aí, segundo acreditam os contrários à possibilidade de construções no plano espiritual, o “tiro mortal” na crença em colônias espirituais. Porém, sempre há um “porém”: a coisa não é bem por aí.

Antes de explicarmos, vamos, por curiosidade, consultar a obra de Santa Teresa d’Ávila intitulada Obras de Santa Teresa de Jesus, Tomo I – Livro da Vida, cujo cap. XXXII se inicia no seguinte parágrafo:

Havia já muito tempo que o Senhor me fazia muitas das mercês que referi e outras grandíssimas, quando um dia, estando em oração, achei-me subitamente, ao que me parecia, metida corpo e alma no inferno. Entendi que queria o Senhor dar-me a ver o lugar que aí me haviam aparelhado os demônios, e eu merecera por meus pecados. Durou brevíssimo tempo, mas, ainda que vivesse muitos anos, tenho por impossível olvidá-lo. Pareceu-me a entrada um beco bem longo e estreito, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado. O solo tinha a aparência duma água, ou antes, dum lodo sujíssimo e de pestilencial odor, cheio de répteis venenosos. No fundo havia uma concavidade aberta numa parede, a modo de armário, onde me vi encerrada estreitissimamente. Tudo isto era deleitoso à vista, em comparação do que ali senti. Entretanto o que escrevi está muito aquém da verdade. ([8]) (grifo nosso)

Um pouco à frente, Santa Teresa diz sobre o inferno: “[…] Por toda parte trevas escuríssimas: não há luz. Não entendo como pode ser que, sem haver claridade, se enxerga tudo que à vista causa pena.” ([9]) (grifo nosso) Quem ficou sem entender nada fomos nós, pois se o inferno é de fogo, por lógica, nele não deveria haver escuridão. Ou estamos enganados?

Há algo importante que o Codificador explicou em nota de rodapé, que muitos não leem, uma vez que, quase sempre, não nos preocupamos em verificar o que consta das notas. Ele tratou de deixar claro que “Nesta visão se reconhecem todas as características dos pesadelos, sendo provável que fosse deste gênero de fenômenos o acontecido a Santa Teresa.” (grifo nosso)

Ora, ao usarem a visão de Santa Teresa, por consequência, teriam que provar que todos aqueles que citam alguma construção no mundo espiritual também deveriam as suas informações ou descrições serem tomadas como “características dos pesadelos”.

Cada vez mais vemos a importância de ver o contexto de citações que nos são apresentadas em argumentos, especialmente daqueles que se apoiam no “a lógica diz”. Porém, no caso em questão, essa mesma lógica, a qual apelam, serve de munição fatal para derrubar suas razões, como ficará evidente.

Para ver o contexto, voltemos ao livro O Céu e o Inferno, Primeira parte, cap. IV – O inferno, tópico “Descrição do inferno cristão”, só que agora tomaremos todo o teor do item 15, que finaliza o tópico, é também o final do capítulo:

15. É de perguntar-se como alguns homens foram capazes de ver essas coisas em estado de êxtase, quando elas de fato não existem. Não cabe aqui explicar a origem das imagens fantásticas, tantas vezes reproduzidas com todas as aparências de realidade. Diremos apenas ser preciso considerar, em princípio, que o êxtase é a menos segura de todas as revelações ([10]) porque o estado de superexcitação nem sempre implica um desprendimento tão completo da alma que se imponha à crença absoluta, denunciando muitas vezes o reflexo de preocupações da véspera.

As ideias com que o Espírito se nutre e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório perispiritual que a este corresponde, conserva a forma ou a estampa, se reproduzem amplificadas como em uma miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se confundem e compõem um todo extravagante. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas relacionadas com a fé que possuíam. Nada há, pois, de extraordinário que Santa Teresa e outros, tanto quanto ela saturados de ideias infernais pelas descrições, verbais ou escritas, hajam tido visões, que não são, propriamente falando, mais que reproduções por efeito de um pesadelo. Um pagão fanatizado teria antes visto o Tártaro e as Fúrias, ou Júpiter, no Olimpo, empunhando o raio. ([11]) (grifo nosso)

Ora, ora! Então o caso de Santa Teresa d’Ávila (ou Santa Teresa de Jesus, como é conhecida) é produto de êxtase, portanto algo bem específico, que, por “lógica” (eita, ela aparece novamente) não poderia ser generalizado para todos os que, em algum estado de emancipação da alma, testemunham construções no mundo espiritual. Certamente, que se deve incluir no meio as revelações provindas de inúmeros espíritos a respeito delas.

Como Allan Kardec citou as questões 443 e 444, vejamos, em O Livro dos Espíritos, o teor delas:

443. Há coisas que o extático pensa ver, mas que, evidentemente, resultam de uma imaginação abalada pelas crenças e preconceitos terrenos. Assim, nem tudo o que ele vê é real?

“O que ele vê é real para ele, mas, como o seu Espírito está sempre sob a influência das ideias terrenas, pode ver à sua maneira, ou, melhor dizendo, pode exprimir o que viu numa linguagem condizente com os seus preconceitos e as ideias em que foi criado, ou com os vossos preconceitos, a fim de ser mais bem compreendido. É sobretudo nesse sentido que ele pode errar.”

444. Qual o grau de confiança que se pode depositar nas revelações dos extáticos?

O extático pode enganar-se com muita frequência, sobretudo quando quer penetrar naquilo que deve continuar a ser mistério para o homem, porque, então, se deixa levar por suas próprias ideias, ou se torna joguete de Espíritos enganadores que se aproveitam de seu entusiasmo para o fascinar.” ([12]) (grifo nosso)

Esclarecemos que, em O Livro dos Espíritos, Livro segundo, cap. VIII – Emancipação da alma, essas duas questões estão inseridas no tópico “Êxtase”. Portanto, para interpretar as respostas, não poderemos sair desse limite.

A visão de Santa Teresa d’Ávila como um produto de êxtase pode ser corroborar com este trecho do item 27, do cap. XIV – Os fluidos de A Gênese:

[…] É assim que o pensamento de pessoas fortemente imbuídas de certas crenças religiosas e com elas preocupadas lhes apresenta o inferno, suas fornalhas, suas torturas e seus demônios, tais quais essas pessoas os imaginam. Às vezes, é toda uma epopeia. Os pagãos viam o Olimpo e o Tártaro, como os cristãos veem o inferno e o paraíso. Se, ao despertarem ou saírem do êxtase, conservam lembrança exata de suas visões, tais pessoas as tomam como realidades confirmativas de suas crenças, quando tudo não passa de produto de seus próprios pensamentos. ([13]) É preciso, pois, que se faça uma distinção muito rigorosa nas visões extáticas, antes de se dar crédito a elas. A tal propósito, o remédio para a excessiva credulidade é o estudo das leis que regem o mundo espiritual. ([14]) (grifo nosso)

 

Eis aí o retrato da realidade na qual podemos inserir, sem erro, a Santa Teresa d’Ávila, em quem a ideia de inferno se revelava uma preocupação diuturna.

Encerramos com esta frase de Allan Kardec: “Do momento em que um erro é demonstrado, o amor-próprio tem mais a perder do que a ganhar obstinando-se numa ideia falsa.” ([15])

 

Referências bibliográficas:


D’ÁVILA, T. Obras de Santa Teresa de Jesus, Tomo I – Livro da Vida. Petrópolis (RJ): Vozes, 1961.

KARDEC, A. A Gênese. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, A. O Céu e o Inferno. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013.

WIKIPÉDIA, Teresa d’Ávila, disponível em: LINK. Acesso em: 13 mai. 2023.

 


1    Teresa dʼÁvila, O.C.D., conhecida como Santa Teresa de Jesus (28 de março de 1515 – 4 de outubro de 1582),[5] nascida Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, foi uma freira carmelita, mística e santa católica do século XVI, importante por suas obras sobre a vida contemplativa e espiritual e por sua atuação durante a Contrarreforma. Foi também uma das reformadoras da Ordem Carmelita e é considerada cofundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços, juntamente com São João da Cruz. WIKIPÉDIA, disponível em: LINK 1

[2]       N.E.: Filho de Apolo e da musa Calíope, recebeu de seu pai, como presente, uma lira e aprendeu a tocar com tal perfeição que nada podia resistir ao encontro de sua música.

[3]       N.E.: Filho de Laerte (ou de Sísifo) e de Anticleia, marido de Penépole, pai de Telêmaco, era rei de duas ilhas do mar Jônio, Ítaca e Dulíquio. Elaborou o estratagema do cavalo de Troia.

[4]       N.E.: Teresa d’Ávila (1515-1582). Realizou a reforma da Ordem das Carmelitas. Teresa d’Ávila viveu muitas vezes o fenômeno de levitação.

[5]       Nota de Allan Kardec: Nesta visão se reconhecem todas as características dos pesadelos, sendo provável que fosse deste gênero de fenômenos o acontecido a Santa Teresa.

[6]       N.E.: Lugar imundo, cheio de matérias fecais.

[7]       KARDEC, O Céu e o Inferno, p. 55-57;

[8]       D´ÁVILA, Obras de Santa Teresa de Jesus, Tomo I – Livro da vida, p. 259.

[9]       D´ÁVILA, Obras de Santa Teresa de Jesus, Tomo I – Livro da vida, p. 260.

[10]     Nota de Allan Kardec: Veja-se O Livro dos Espíritos, questões 443 e 444.

[11]     KARDEC, O Céu e o Inferno, p. 61.

[12]     KARDEC, O Livro dos Espíritos, p. 220-221.

[13]     Nota de Allan Kardec: É assim que se podem explicar as visões da irmã Elmerich que, reportando-se ao tempo da paixão do Cristo, diz ter visto coisas materiais que nunca existiram, a não ser nos livros que ela leu; as da Sra. Cantianille B… (Revista espírita, agosto de 1866), e uma parte das visões de Swedenborg.

[14]     KARDEC, A Gênese, p. 249.

[15]     KARDEC, Revista Espírita 1858, p. 301-302.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita