Se uma criança de tenra idade lhe dissesse ter sido
outra pessoa, que morava alguns anos antes noutra
cidade… o que lhe diria?
Que era fantasia? Ou que queria saber mais sobre isso?
A resposta, apesar do uso do livre-arbítrio, poderia ser
condicionada quer pelo ambiente cultural quer pela
curiosidade.
No mundo ocidental a reencarnação é combatida pelas
religiões tradicionais, embora seja verdade que o
cristianismo na sua origem tivesse como habitual a
crença na pluralidade das existências. O próprio
evangelho regista isso, como se sabe, e tão bem explica
essa realidade "O Evangelho Segundo o Espiritismo" de
Allan Kardec.
Próximo dos dias que correm, o que pensam os europeus da
reencarnação no final da segunda década do século XXI?
O Atlas de Valores Europeus (EVALUE) é uma fonte
estatística que pode desenhar ideias de como andava em
2017 o conceito de vidas sucessivas nos países da velha
Europa. Se nos reportarmos a Portugal, lemos uma
percentagem de 33% de pessoas que creem na reencarnação.
Ao lado, em Espanha, os valores apontam 26%. Na França
26,9%. Curiosamente, ao contrário do que se pensa sobre
o século XIX no Reino Unido, encontramos 29%. Países que
revelaram números mais expressivos foram a Lituânia com
42% e a Estónia com 46%.*
Pesquisas diversas
Ainda assim, segundo variadas pesquisas, há muitos casos
de crianças que se lembram de vidas passadas no mundo
ocidental, se bem que inicialmente, com o brilhante
pioneiro deste campo de investigação, o professor doutor
Ian Stevenson, da Universidade de Virgínia (EUA), a
maioria aparecesse em países onde a reencarnação era
crença comum, portanto no Oriente.
Um caso publicado pelo professor doutor Jim Tucker,
médico psiquiatra da mesma universidade, por altura de
2008, ilustra a casuística que estamos a referir.
Exemplo disso é o caso de uma criança chamada Chanai
Choomalaiwong, da Tailândia, que dizia ter sido um
professor chamado Bua Kai.
O facto é que fornecia detalhes sobre a vida do
professor desconhecido de que, nem ele nem a família,
tinham ouvido alguma vez falar. Dizia ter sido baleado,
quando professor, ao percorrer de bicicleta o caminho de
casa para a escola. Mencionou os nomes dos pais, esposa,
filhos do tal professor, e referiu o nome da aldeia em
que morava.
O pequeno Chanai pedia por esses dias à avó que o
levasse a essa povoação. Quando tinha três anos de
idade, por fim a avó levou-o a esse sítio tão desejado:
a deslocação contou cerca de 19 km.
Na povoação, Chanai guiou efetivamente a avó até à casa
dos pais de uma pessoa que se chamara Bua Kai. As
referências assertivas da criança correspondiam à
realidade que encontraram. Chanai reconheceu inclusive
os pais de Bua Kai e outros familiares, bem como objetos
que lhe pertenceram.
Outro detalhe interessante é que Chanai nasceu com duas
marcas de nascença que correspondiam ao ferimento de
bala que matara Bua Kai.
Crianças de Mianmar
Conheci pessoalmente de passagem pela cidade do Porto,
em Portugal, Ian Stevenson, em 2002. Tinha sido
convidado para participar num evento no auditório da
Ordem dos Médicos organizado pela Fundação Bial e houve
oportunidade de realizar uma entrevista com um colega
para uma revista de grande tiragem do principal jornal
diário da região. Durante a conversa notei que Stevenson
estava tenso. A entrevista decorreu e no final
cumprimentei-o. Disse-lhe em inglês que por vezes
trocava missivas com Hernani Guimarães Andrade, alguém
que sabia ser do seu conhecimento. Quando Stevenson
escutou esse nome, por fim, abriu um sorriso muito
afável. Disse-me: "Ele é uma pessoa muito simpática".
Percebi que terá havido diversos contactos anteriores
com a imprensa em que o resultado final terá sido uma
manipulação pejorativa por supostos jornalistas com
défice de ética profissional.
Recordo que na altura Stevenson referiu um caso
diferente. Em vez de apenas uma criança com memórias de
vidas passadas, havia um grupo delas em Mianmar
(Birmânia) que alegava recordar uma vida anterior em que
eram soldados japoneses mortos nesse território na II
Grande Guerra Mundial.
Curiosamente reencontrei esse apontamento no livro
"Ciência da vida após a morte", de Alexander
Moreira-Almeida, Humberto Schubert Coelho e Marianna
Costa.
As ditas crianças apresentavam comportamentos típicos de
japoneses, apesar da história de opressão do exército
japonês na Birmânia, em que reduziam ao mínimo o
contacto com a população.
Algumas das características eram estas: exprimiam desejo
de regressar ao Japão; tinham preferência por roupas
japonesas; apreciavam peixe cru ou parcialmente cozido,
ovos crus, alimentos doces, chá forte; queixavam-se da
comida birmanesa, achavam que era muito apimentada;
tinham resistência a aprender birmanês; possuíam um
"sotaque" estrangeiro; sentavam-se de maneira incomum,
no chão com as nádegas apoiadas nos calcanhares, como
japoneses.
Embora sem pesquisa científica, em Portugal e Espanha,
temos encontrado casualmente pais preocupados com a
fixação dos filhos desde tenra idade com a Alemanha e o
nazismo, sem perceberem onde vão buscar essa tendência
indesejada pelos progenitores.
São muitos casos. Até 2005 contavam-se mais de 2500
casos de crianças que alegavam lembrar-se de vidas
passadas nos arquivos da Divisão de Estudos da
Personalidade da Universidade de Virgínia, nos Estados
Unidos.
Os investigadores mais conhecidos destes casos
sugestivos de reencarnação são Ian Stevenson (médico
psiquiatra de origem canadiana, EUA, 1918/2007), Jim
Tucker (médico psiquiatra, EUA), Herlendur Haraldson
(psicólogo islandês, 1931/2020), entre outros, devendo
ser lembradas as pesquisas realizadas no Brasil por
Hernani Guimarães Andrade (1913/2003), algumas delas
centralizadas no livro "Reencarnação no Brasil".
Esquecimento
Para o cidadão comum o facto de não se recordar de uma
vida passada aparece como o maior argumento para
descartar a pluralidade das existências.
Esquece-se de que não se recorda de inúmeros factos
desde que nasceu. A dada altura deverá também
recordar-se que na sua família ou perto de si verificou
que há quem perca memória recente, em avançada idade, e
nega a realidade simplesmente porque... não se lembra.
Os casos de demência por traumatismo craniano e a doença
de Alzheimer são frequentes e sublinham o quanto o
cérebro condiciona a memória.
Em termos espirituais, o cérebro do corpo físico só
começa a sonhar formar-se depois da fecundação. Passado
um tempo, uma vez normalizado, funciona como uma válvula
que regista eventos e a interpretação dos mesmos no dia
a dia de fora para dentro: em sentido inverso, impede
que memórias de outras vidas passem para a consciência
da vida material. O facto de deixar fluir dados no
sentido inverso, para arquivo na sede da consciência, o
próprio Espírito, tem tudo a ver com a finalidade da
reencarnação.
Há muitas vantagens em passar pela vida na Terra sem
recordar vidas passadas e as experiências da
erraticidade ou do espaço intervidas, como se quiser
designar.
A primeira passa por otimizar a aprendizagem decorrente
das vivências da vida terrena, que podem ser expiação ou
prova. Com um passado turbulento, na vida espiritual
muitos de nós acabamos por sentir necessidade de
compensar outrem por atos danosos decorrentes de
práticas abusivas. Sem esquecimento do passado isso
tornar-se-ia bem mais difícil. O ruído seria recorrente
na convivência e por vezes ensurdecedor.
Além das considerações teóricas que possam ser
descritas, há um aspeto experimental que deve ser
destacado. O desconforto para os pais é evidente em
casos estudados por exemplo por Jim Tucker, nomeadamente
em dois casos bem estudados.
O primeiro é o da criança que parecia uma enciclopédia
de duas pernas especializada em aviões: James Lanniger.
Em criança tinha pesadelos. Sentia-se fechado num
compartimento incendiado. Exteriorizava o momento
traumático da sua desencarnação de vida anterior,
durante a II Grande Guerra Mundial, na batalha de Iwo
Jima, quando era conhecido por James Huston Jr., piloto
nessa altura agregado ao navio "Natoma Bay". Mais tarde,
já adulto, ao conversar com o investigador referido, diz
que procura não recordar essas memórias de vida passada.
Não é confortável a confusão que resulta de parecer que
há "duas pessoas a viver dentro de mim".
Cheio também de detalhes de memória de vida passada é o
caso de Ryan Hammons. Esta criança recordava vários
cenários da sua vida anterior, quando fora Marty Martin,
e trabalhava em Hollywood. No final da adolescência,
sente-se frustrado e triste pela recordação. Em criança
teve também uma fase de pesadelos. A mãe disse que "ele
parecia em luto permanente pela sua vida passada". Não
gosta de falar disso.
Como surge a ideia da reencarnação na doutrina espírita?
Aparece nas respostas dos Espíritos. Através da
mediunidade, Allan Kardec colocava a diversos médiuns em
transe numerosas perguntas, muito bem organizadas. Como
compreender tanta desigualdade no mundo? Uns nascem
alienados, outros sãos, alguns em meios tão distintos de
outros noutras partes do planeta etc.
Os Espíritos explicam que existe a pluralidade das
existências. É o curso das vidas sucessivas, pelas quais
o ser espiritual atravessa vários cenários de
experiências de vida no plano mais denso na construção
da sua sabedoria progressiva.
"O Livro dos Espíritos" espelha todos esses diálogos
esclarecidos no seu capítulo IV, onde encontramos a
pergunta 166 e seguintes: "A alma que não atingiu a
perfeição durante a vida corpórea, como acaba de
depurar-se?
– Submetendo-se à prova de uma nova existência.
166-b. A alma tem muitas existências corpóreas?
– Sim, todos nós temos muitas existências. Os que dizem
o contrário querem manter-vos na ignorância em que eles
mesmos se encontram...".
Adiante elucida: "A cada nova existência o Espírito dá
um passo na senda do progresso".
Mas não sem previamente, na pergunta 134, ter pedido um
esclarecimento indispensável:
"O que é a alma?
– Um Espírito encarnado".
Na verdade, não somos corpos materiais que têm Espírito.
Pelo contrário, somos seres espirituais que possuem
temporariamente corpo físico. Por outras palavras, somos
Espírito, mas temos corpo espiritual (perispírito) e
corpo material.
Quando perdemos o corpo material definitivamente
desencarnamos, desligamo-nos dele. Quando recomeçamos o
processo de renascimento no horizonte denso da Terra
reencarnamos.
Configura uma verdadeira bolsa de estudo, ajustada às
necessidades evolutivas de cada um, poder voltar à Terra
em corpo material. Viabiliza recolher novas
experiências, corrigir ou atenuar erros antigos,
compensar aqueles que prejudicamos, sempre com a
finalidade de aprender mais nas coordenadas das várias
inteligências e da educação da afetividade. A finalidade
transversal das vidas sucessivas é a morosa aprendizagem
do amor incondicional que Jesus de Nazaré reflete na boa
nova, no evangelho.
Na erraticidade, na vida espiritual, aprendemos
sobretudo ideias dinâmicas, firmamos propósitos de uma
vida melhor, entre múltiplas atividades práticas
inspiradas no amor ao próximo. Ao regressarmos à Terra
surge a componente experimental, os testes que nos
levarão à avaliação da nossa própria consciência sobre
nós mesmos.
Vem a pergunta 167 no livro já citado:
"Qual é a finalidade da reencarnação?
– Expiação, melhoramento progressivo da humanidade. Sem
isso, onde estaria a justiça?".
Expiar não significa sofrer por sofrer, pagar, mas sim e
tão só reparar erros.
Quem ainda não pensou bem no assunto facilmente entra em
negação. Isso nunca perturba o funcionamento das leis da
natureza. Elas não querem saber das crenças de ninguém
para simplesmente funcionarem da mesma maneira para
todos.
É interessante referir que a compreensão das linhas de
força inerentes às vidas sucessivas dilui vícios como o
racismo, o nacionalismo exacerbado, a indiferença, a
intolerância, privilégios sociais ou profissionais, e
muitas outras fontes de dificuldades que a atual
humanidade gera sobre si própria nos circuitos da lei de
causa e efeito.
Fica um pórtico de esperança, luminoso e sempre aberto.
É o caminho estreito, no dia a dia, de que Jesus de
Nazaré fala na boa nova. A vida pede que o melhor de nós
próprios venha à superfície da consciência para que os
poderosos potenciais iluminativos adormecidos em cada um
venham a brilhar mais cedo do que tarde com as luzes
fulgurantes do amor e da sabedoria.
* European
Statistics About Reencarnation –
para acessar, clique neste LINK
Jorge Gomes,
ex-vice-presidente da Federação Espírita Portuguesa,
escritor e membro da ADEP - Associação de Divulgadores
de Espiritismo de Portugal, reside na cidade do Porto,
Portugal.