Especial

por Jorge Gomes

Vidas sucessivas: espaços de aprendizagem

 

Se uma criança de tenra idade lhe dissesse ter sido outra pessoa, que morava alguns anos antes noutra cidade… o que lhe diria?

Que era fantasia? Ou que queria saber mais sobre isso?

A resposta, apesar do uso do livre-arbítrio, poderia ser condicionada quer pelo ambiente cultural quer pela curiosidade.

No mundo ocidental a reencarnação é combatida pelas religiões tradicionais, embora seja verdade que o cristianismo na sua origem tivesse como habitual a crença na pluralidade das existências. O próprio evangelho regista isso, como se sabe, e tão bem explica essa realidade "O Evangelho Segundo o Espiritismo" de Allan Kardec.

Próximo dos dias que correm, o que pensam os europeus da reencarnação no final da segunda década do século XXI?

O Atlas de Valores Europeus (EVALUE) é uma fonte estatística que pode desenhar ideias de como andava em 2017 o conceito de vidas sucessivas nos países da velha Europa. Se nos reportarmos a Portugal, lemos uma percentagem de 33% de pessoas que creem na reencarnação. Ao lado, em Espanha, os valores apontam 26%. Na França 26,9%. Curiosamente, ao contrário do que se pensa sobre o século XIX no Reino Unido, encontramos 29%. Países que revelaram números mais expressivos foram a Lituânia com 42% e a Estónia com 46%.*


Pesquisas diversas


Ainda assim, segundo variadas pesquisas, há muitos casos de crianças que se lembram de vidas passadas no mundo ocidental, se bem que inicialmente, com o brilhante pioneiro deste campo de investigação, o professor doutor Ian Stevenson, da Universidade de Virgínia (EUA), a maioria aparecesse em países onde a reencarnação era crença comum, portanto no Oriente.

Um caso publicado pelo professor doutor Jim Tucker, médico psiquiatra da mesma universidade, por altura de 2008, ilustra a casuística que estamos a referir.

Exemplo disso é o caso de uma criança chamada Chanai Choomalaiwong, da Tailândia, que dizia ter sido um professor chamado Bua Kai.

O facto é que fornecia detalhes sobre a vida do professor desconhecido de que, nem ele nem a família, tinham ouvido alguma vez falar. Dizia ter sido baleado, quando professor, ao percorrer de bicicleta o caminho de casa para a escola. Mencionou os nomes dos pais, esposa, filhos do tal professor, e referiu o nome da aldeia em que morava.

O pequeno Chanai pedia por esses dias à avó que o levasse a essa povoação. Quando tinha três anos de idade, por fim a avó levou-o a esse sítio tão desejado: a deslocação contou cerca de 19 km.

Na povoação, Chanai guiou efetivamente a avó até à casa dos pais de uma pessoa que se chamara Bua Kai. As referências assertivas da criança correspondiam à realidade que encontraram. Chanai reconheceu inclusive os pais de Bua Kai e outros familiares, bem como objetos que lhe pertenceram.

Outro detalhe interessante é que Chanai nasceu com duas marcas de nascença que correspondiam ao ferimento de bala que matara Bua Kai.


Crianças de Mianmar


Conheci pessoalmente de passagem pela cidade do Porto, em Portugal, Ian Stevenson, em 2002. Tinha sido convidado para participar num evento no auditório da Ordem dos Médicos organizado pela Fundação Bial e houve oportunidade de realizar uma entrevista com um colega para uma revista de grande tiragem do principal jornal diário da região. Durante a conversa notei que Stevenson estava tenso. A entrevista decorreu e no final cumprimentei-o. Disse-lhe em inglês que por vezes trocava missivas com Hernani Guimarães Andrade, alguém que sabia ser do seu conhecimento. Quando Stevenson escutou esse nome, por fim, abriu um sorriso muito afável. Disse-me: "Ele é uma pessoa muito simpática".

Percebi que terá havido diversos contactos anteriores com a imprensa em que o resultado final terá sido uma manipulação pejorativa por supostos jornalistas com défice de ética profissional.

Recordo que na altura Stevenson referiu um caso diferente. Em vez de apenas uma criança com memórias de vidas passadas, havia um grupo delas em Mianmar (Birmânia) que alegava recordar uma vida anterior em que eram soldados japoneses mortos nesse território na II Grande Guerra Mundial.

Curiosamente reencontrei esse apontamento no livro "Ciência da vida após a morte", de Alexander Moreira-Almeida, Humberto Schubert Coelho e Marianna Costa.

As ditas crianças apresentavam comportamentos típicos de japoneses, apesar da história de opressão do exército japonês na Birmânia, em que reduziam ao mínimo o contacto com a população.

Algumas das características eram estas: exprimiam desejo de regressar ao Japão; tinham preferência por roupas japonesas; apreciavam peixe cru ou parcialmente cozido, ovos crus, alimentos doces, chá forte; queixavam-se da comida birmanesa, achavam que era muito apimentada; tinham resistência a aprender birmanês; possuíam um "sotaque" estrangeiro; sentavam-se de maneira incomum, no chão com as nádegas apoiadas nos calcanhares, como japoneses.

Embora sem pesquisa científica, em Portugal e Espanha, temos encontrado casualmente pais preocupados com a fixação dos filhos desde tenra idade com a Alemanha e o nazismo, sem perceberem onde vão buscar essa tendência indesejada pelos progenitores.

São muitos casos. Até 2005 contavam-se mais de 2500 casos de crianças que alegavam lembrar-se de vidas passadas nos arquivos da Divisão de Estudos da Personalidade da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos.

Os investigadores mais conhecidos destes casos sugestivos de reencarnação são Ian Stevenson (médico psiquiatra de origem canadiana, EUA, 1918/2007), Jim Tucker (médico psiquiatra, EUA), Herlendur Haraldson (psicólogo islandês, 1931/2020), entre outros, devendo ser lembradas as pesquisas realizadas no Brasil por Hernani Guimarães Andrade (1913/2003), algumas delas centralizadas no livro "Reencarnação no Brasil".


Esquecimento


Para o cidadão comum o facto de não se recordar de uma vida passada aparece como o maior argumento para descartar a pluralidade das existências.

Esquece-se de que não se recorda de inúmeros factos desde que nasceu. A dada altura deverá também recordar-se que na sua família ou perto de si verificou que há quem perca memória recente, em avançada idade, e nega a realidade simplesmente porque... não se lembra. Os casos de demência por traumatismo craniano e a doença de Alzheimer são frequentes e sublinham o quanto o cérebro condiciona a memória.

Em termos espirituais, o cérebro do corpo físico só começa a sonhar formar-se depois da fecundação. Passado um tempo, uma vez normalizado, funciona como uma válvula que regista eventos e a interpretação dos mesmos no dia a dia de fora para dentro: em sentido inverso, impede que memórias de outras vidas passem para a consciência da vida material. O facto de deixar fluir dados no sentido inverso, para arquivo na sede da consciência, o próprio Espírito, tem tudo a ver com a finalidade da reencarnação.

Há muitas vantagens em passar pela vida na Terra sem recordar vidas passadas e as experiências da erraticidade ou do espaço intervidas, como se quiser designar.

A primeira passa por otimizar a aprendizagem decorrente das vivências da vida terrena, que podem ser expiação ou prova. Com um passado turbulento, na vida espiritual muitos de nós acabamos por sentir necessidade de compensar outrem por atos danosos decorrentes de práticas abusivas. Sem esquecimento do passado isso tornar-se-ia bem mais difícil. O ruído seria recorrente na convivência e por vezes ensurdecedor.

Além das considerações teóricas que possam ser descritas, há um aspeto experimental que deve ser destacado. O desconforto para os pais é evidente em casos estudados por exemplo por Jim Tucker, nomeadamente em dois casos bem estudados.

O primeiro é o da criança que parecia uma enciclopédia de duas pernas especializada em aviões: James Lanniger. Em criança tinha pesadelos. Sentia-se fechado num compartimento incendiado. Exteriorizava o momento traumático da sua desencarnação de vida anterior, durante a II Grande Guerra Mundial, na batalha de Iwo Jima, quando era conhecido por James Huston Jr., piloto nessa altura agregado ao navio "Natoma Bay". Mais tarde, já adulto, ao conversar com o investigador referido, diz que procura não recordar essas memórias de vida passada. Não é confortável a confusão que resulta de parecer que há "duas pessoas a viver dentro de mim".

Cheio também de detalhes de memória de vida passada é o caso de Ryan Hammons. Esta criança recordava vários cenários da sua vida anterior, quando fora Marty Martin, e trabalhava em Hollywood. No final da adolescência, sente-se frustrado e triste pela recordação. Em criança teve também uma fase de pesadelos. A mãe disse que "ele parecia em luto permanente pela sua vida passada". Não gosta de falar disso.


Como surge a ideia da reencarnação na doutrina espírita?


Aparece nas respostas dos Espíritos. Através da mediunidade, Allan Kardec colocava a diversos médiuns em transe numerosas perguntas, muito bem organizadas. Como compreender tanta desigualdade no mundo? Uns nascem alienados, outros sãos, alguns em meios tão distintos de outros noutras partes do planeta etc.

Os Espíritos explicam que existe a pluralidade das existências. É o curso das vidas sucessivas, pelas quais o ser espiritual atravessa vários cenários de experiências de vida no plano mais denso na construção da sua sabedoria progressiva.

"O Livro dos Espíritos" espelha todos esses diálogos esclarecidos no seu capítulo IV, onde encontramos a pergunta 166 e seguintes: "A alma que não atingiu a perfeição durante a vida corpórea, como acaba de depurar-se?

– Submetendo-se à prova de uma nova existência.

166-b. A alma tem muitas existências corpóreas?

– Sim, todos nós temos muitas existências. Os que dizem o contrário querem manter-vos na ignorância em que eles mesmos se encontram...".

Adiante elucida: "A cada nova existência o Espírito dá um passo na senda do progresso".

Mas não sem previamente, na pergunta 134, ter pedido um esclarecimento indispensável:

"O que é a alma?

– Um Espírito encarnado".

Na verdade, não somos corpos materiais que têm Espírito. Pelo contrário, somos seres espirituais que possuem temporariamente corpo físico. Por outras palavras, somos Espírito, mas temos corpo espiritual (perispírito) e corpo material.

Quando perdemos o corpo material definitivamente desencarnamos, desligamo-nos dele. Quando recomeçamos o processo de renascimento no horizonte denso da Terra reencarnamos.

Configura uma verdadeira bolsa de estudo, ajustada às necessidades evolutivas de cada um, poder voltar à Terra em corpo material. Viabiliza recolher novas experiências, corrigir ou atenuar erros antigos, compensar aqueles que prejudicamos, sempre com a finalidade de aprender mais nas coordenadas das várias inteligências e da educação da afetividade. A finalidade transversal das vidas sucessivas é a morosa aprendizagem do amor incondicional que Jesus de Nazaré reflete na boa nova, no evangelho.

Na erraticidade, na vida espiritual, aprendemos sobretudo ideias dinâmicas, firmamos propósitos de uma vida melhor, entre múltiplas atividades práticas inspiradas no amor ao próximo. Ao regressarmos à Terra surge a componente experimental, os testes que nos levarão à avaliação da nossa própria consciência sobre nós mesmos.

Vem a pergunta 167 no livro já citado:

"Qual é a finalidade da reencarnação?

– Expiação, melhoramento progressivo da humanidade. Sem isso, onde estaria a justiça?".

Expiar não significa sofrer por sofrer, pagar, mas sim e tão só reparar erros.

Quem ainda não pensou bem no assunto facilmente entra em negação. Isso nunca perturba o funcionamento das leis da natureza. Elas não querem saber das crenças de ninguém para simplesmente funcionarem da mesma maneira para todos.

É interessante referir que a compreensão das linhas de força inerentes às vidas sucessivas dilui vícios como o racismo, o nacionalismo exacerbado, a indiferença, a intolerância, privilégios sociais ou profissionais, e muitas outras fontes de dificuldades que a atual humanidade gera sobre si própria nos circuitos da lei de causa e efeito.

Fica um pórtico de esperança, luminoso e sempre aberto. É o caminho estreito, no dia a dia, de que Jesus de Nazaré fala na boa nova. A vida pede que o melhor de nós próprios venha à superfície da consciência para que os poderosos potenciais iluminativos adormecidos em cada um venham a brilhar mais cedo do que tarde com as luzes fulgurantes do amor e da sabedoria.


* European Statistics About Reencarnation – para acessar, clique neste LINK


Jorge Gomes, ex-vice-presidente da Federação Espírita Portuguesa, escritor e membro da ADEP - Associação de Divulgadores de Espiritismo de Portugal, reside na cidade do Porto, Portugal.

    

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita